João Rendeiro nunca viveu no nosso mundo. Nem vive agora. Está numa realidade paralela, da cor da camisa com que saiu este sábado do quarto escoltado pela polícia. Acordou do sonho de uma noite de verão para as sombras de uma cela.
Foi sempre tudo cor-de-rosa. Foi primeiro banqueiro de ricos, projetando uma imagem de superestrela da banca enquanto martelava as contas do BPP, defraudava o Estado e burlava clientes – e tudo isto foi provado em tribunal. Era outro mundo, o mundo da banca-sombra.
Cor-de-rosa continuou, brindando nas festas das fracas elites Lisboa-Cascais para as revistas sociais, vivendo num condomínio com um nome a fingir, a Quinta Patino, que perdeu o til porque a família Patiño não autorizara a utilização do nome. O nome faz-de-conta é uma bela metáfora para um furão que projetou uma reputação imerecida, sempre forjando uma máscara, a de banqueiro e colecionador de arte na sua Fundação Elipse, com quadros que, depois de arrestados, mandou falsificar como falsificou a sua imagem. Tudo se vende, nem tudo se compra.
O cor-de-rosa manteve-se mesmo depois da queda do BPP. Na mesmíssima semana em que o Banco Privado Português ruiu, nos idos de 2008, obrigando o Estado a emprestar 450 milhões de euros, Rendeiro apresentava-se nessa sua realidade paralela, apresentando publicamente um livro sobre si mesmo intitulado “A história de quem venceu nos mercados”. De quem venceu nos mercados… A sala estava cheia, cheia daqueles notáveis que ainda não sabiam se haviam de ficar do lado dele ou de cair para o outro lado. Cairiam pouco depois, sem surpresa, belas elites as nossas.
A cor desta realidade paralela acompanhou todo o processo judicial, em ataques no blogue ou em defesas públicas. Vitimizou-se sempre, de tudo e de todos, fugiu “em legítima defesa”, ameaçou processar o Estado. Foi detido este sábado de manhã num quarto de um hotel-boutique, estava ainda de pijama. Vestiu-se e saiu para a cela da esquadra. De camisa cor-de-rosa. A elipse concluiu o percurso da sua forma definitiva.
A operação espetacular, feita em coordenação com as autoridades sul-africanas, reabilita a imagem da justiça portuguesa que o deixou fugir, e qualifica a Polícia Judiciária aos olhos dos portugueses. Dêem-lhe mais meios, esta polícia faz o que sabe e sabe o que faz. Mas sobretudo: a detenção de Rendeiro torna o ar mais respirável, suprimindo do ar o insuportável gozo de Rendeiro. Não goza mais. Passará provavelmente os próximos meses a responder em tribunal na África do Sul e no fim poderá ser extraditado para Portugal. Será preso à chegada.
Estamos no princípio do fim, supomos. Para que finalmente tenhamos o primeiro banqueiro preso em Portugal depois de mais de uma década de escândalos financeiros. Faltam os outros, diremos. Mas já não faltará levarmos a sério uma justiça que, sendo lenta, demasiado lenta, não é brincadeira nem milho aos pardais.
João Rendeiro foi sempre tratado pelas autoridades judiciais portuguesas com a dignidade, os direitos e os recursos que qualquer cidadão merece. Abusou desses direitos. O “fugitivo nº 1” do país será apresentado como troféu de caça. Acaba humilhado, não pelas autoridades, mas por si próprio. Pelo que disse, pelo que fez, pelo desplante com que se achou a salvo de algemas, acabando no espaço reservado no nosso mundo para os ladrões e os burlões, a prisão, como uma fera de peluche, acabando como uma pantera cor-de-rosa.