"Pensa-se em mim e pensa-se em dinheiro, poder, casas, carros. Mas eu sou uma pessoa simples": João Rendeiro 1952-2022

13 mai 2022, 15:25

Da vida de luxo à morte na prisão. João Rendeiro, criador do BPP, o "fazedor de dinheiro" que acabou em tragédia

"Desistir é morrer. Para quê desistir? Mais vale uma pessoa morrer. A pessoa estar viva e não tentar, não faz sentido. As pessoas podem reconfigurar-se, reagir à adversidade de múltiplas maneiras, não necessariamente repetindo os modelos anteriores. Pensa-se em mim e pensa-se em dinheiro, poder, casas, carros. Mas eu sou uma pessoa muito simples".

Quando fez estas declarações, numa entrevista à jornalista Anabela Mota Ribeiro publicada no Jornal de Negócios, João Rendeiro estava no pico da sua notoriedade, da sua carreira, da sua influência. Corria o ano de 2006, a banca portuguesa estava prestes a entrar numa década de escândalos e o sistema financeiro ocidental somava lucros pujantes, antes de explodir com estrondo na crise financeira de 2008.

"O dinheiro permite escolher, mas não permite a variável mais crítica de todas estas, que é o tempo", prosseguia João Rendeiro, que a jornalista caracterizava como "um orgulhoso self made man”, além do mais "imensamente rico". E se o não fosse? "Se não fosse rico e poderoso? Não faço a mínima ideia. Eu não tenho filhos. É uma questão que não me coloco: como é que seria, se não fosse o que sou." 

Depois veio a guerra no BCP, em 2006, em que Rendeiro se envolveu. Depois começou o rastilho da crise do "subprime" nos Estados Unidos em 2007. E depois a falência do Lehman Brothers, que criou um furacão mundial, em 2008. No final do ano, cairia o BPN. Logo depois, o BPP. Começava a desgraça de João Rendeiro.

O fim do estado de graça

"A história de quem venceu nos mercados". Era esta a síntese de João Rendeiro sobre feita por ele próprio ainda nesse ano. Na apresentação do livro "João Rendeiro - Testemunho de um banqueiro", o ambiente na sala era estranho. Estávamos a 24 de novembro de 2008 e muitas personalidades não haviam ainda tomado posição sobre a queda do Banco Privado Português, que ocorrera semanas antes. Muitos estavam lá, na sala, incluindo Francisco Pinto Balsemão, que apresentou o livro. 

VEJA AQUI A REPORTAGEM 2008 DA TVI DA APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE RENDEIRO

Foi o canto público do cisne privado. Seguiu-se a abertura de processos judiciais, condenações, a fuga para África do Sul, a captura. Mais do que uma história de "ascensão e queda", esta é a história de um apogeu que derrocou numa tragédia. O homem "que venceu nos mercados" até aos seus 56 anos perdeu a vida numa prisão perto dos seus 70.

Rendeiro não gostava que chamassem ao Banco Privado Português (BPP) "o banco dos ricos", mas quando fundou o BPP, em 1996, vocacionou-o precisamente para a gestão de grandes fortunas. A queda do banco, segundo dados da Comissão Liquidatária do BPP, deixaria seis mil credores com 1600 milhões de euros a receber. Hoje são menos, porque um desses credores recebeu entretanto quase tudo. Esse credor é o Estado Português.

O BPP perdeu a licença para operar em 2010, mesmo depois de ter recebido um empréstimo com aval do Estado de 450 milhões de euros, ainda em 2008, depois da crise financeira precipitada pelo colapso do Lehman Brothers e das ondas de choque globais que isso provocou. No BPP, a crise financeira de então destapou as fraquezas da instituição, a falta de liquidez e várias irregularidades que seriam julgadas anos mais tarde: desde 2009 que o BPP estava sob investigação. Rendeiro, o presidente, queixava-se de que estava na mira dos poderosos, que não queriam mais do que afastá-lo do "sonho de uma vida".

Foi isto que escreveu no livro "Em Defesa da Honra", publicado em 2021, e em que contava a sua leitura dos acontecimentos que o levaram à saída do BPP, em 2008. Rendeiro apontava ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, ao antigo presidente do BES Ricardo Salgado e ao então ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, procurando passar a mensagem de que o Governo de Sócrates não quis salvar o "banco dos ricos" - aí, já sem pejo de usar a expressão que antes quis combater.

Nascido a 22 de maio de 1952 - faria 70 anos daqui a poucos dias - João Oliveira Rendeiro era filho de um sapateiro com loja em Campo de Ourique, que chegara a Lisboa vindo da zona de Aveiro. Apesar das origens modestas, Rendeiro estudou nas melhores escolas lisboetas e formou-se em economia no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG). Doutorou-se em Inglaterra com uma bolsa, onde se lhe juntaria a companheira de todas as horas, Maria de Jesus, com quem se casou aos 21 anos.

Como economista, trabalhou em Londres na área da banca e seguros. Havia de criar em 1986 o Gestifundo, com mais dois sócios. Um investimento de 25 mil euros que, dez anos depois, vendeu ao Banco Totta, então presidido por José Roquette, e onde ainda trabalhou durante cinco anos. Fundou empresas na área financeira e foi membro da Fundação Luso-Brasileira e da EPIS - Empresários pela Inclusão Social. 

No BPP, reuniu uma lista de clientes de topo que ali aplicavam as suas poupanças e a quem os investimentos de alto risco de Rendeiro garantiam alta rentabilidade. Os amigos chamavam-lhe "o fazedor de dinheiro", parecendo confirmar o vaticínio que o próprio fizera para si na infância: queria ser o melhor aluno, construir uma carreira a pulso e singrar na vida a fazer dinheiro. “Rendeiro tinha uma ambição desmedida de se tornar um dos mais relevantes homens de negócios em Portugal e em Espanha e, como tal, ser socialmente reconhecido e respeitado", escreveu no seu livro de memórias Francisco Pinto Balsemão sobre Rendeiro. 

No livro apresentado em 2008, "João Rendeiro - Testemunho de um banqueiro", escrito por Myriam Gaspar, era apresentada a história de um banqueiro "filho de um casal de proprietários de uma sapataria em Campo de Ourique, que do nada chegou ao topo no mundo das Finanças, com negócios em Portugal, Espanha, Brasil e África". O prefácio era assinado pelo socialista João Cravinho. 

Vida de luxo 

Quando saiu do BPP, em 2008, passou a fazer consultoria internacional. Em Portugal, era poucas vezes visto, normalmente na zona do Guincho ou Cascais, onde vivia com a mulher, no condomínio da Quinta Patino. Faltava às audiências dos julgamentos em que estava acusado por falsidade informática e falsificação, burla qualificada, fraude fiscal ou abuso de confiança. 

Apesar dos processos judiciais, vivia uma vida considerada de luxo e a arte era uma das grandes paixões do casal Rendeiro. O ex-banqueiro conseguiu criar uma coleção pessoal e decorar a sede do BPP com obras de arte, que a justiça acredita terem sido compradas com dinheiro do banco. Além da coleção pessoal e da coleção do BPP, Rendeiro criou ainda em 2006 a Ellipse Foundation, com um grupo de cerca de 20 colecionadores, e onde o antigo banqueiro e o BPP tinham posição maioritária. 

O Art Center da Ellipse foi inaugurado em Alcoitão e, segundo o relatório do BPP de 2008, citado pelo Expresso, tinha como acervo 783 obras, incluindo trabalhos de artistas estrangeiros e portugueses de Julião Sarmento a José Pedro Croft ou Pedro Cabrita Reis.

São precisamente as obras de arte que hoje mantêm em prisão domiciliária com pulseira eletrónica Maria de Jesus Rendeiro, por suspeita de crime de descaminho de obras de arte da coleção do seu marido, das quais era fiel depositária. Maria de Jesus está na Quinta Patino, onde a Polícia Judiciária já esteve para apreender todos os bens de valor da família Rendeiro, com o objetivo de os vender para que as verbas revertam a favor dos lesados do BPP. Para além do lote na Quinta Patino, os Rendeiro teriam ainda outros imóveis em seu nome, para além de cerca de 1,5 milhões em contas e ativos bancários entretanto apreendidos. 

Sabe-se também que Rendeiro chegou a dedicar-se a projetos na restauração, que muito apreciava: era um dos investidores do Eleven, um dos mais exclusivos restaurantes de Lisboa, com uma estrela Michelin. Ia passando temporadas fora do país e deslocava-se normalmente em jatos privados. Tinha presença assídua em várias capitais mundiais, nomeadamente Nova Iorque, onde chegou, com a mulher, a ser mecenas de exposições artísticas.   


"Sou um reformado"

João Rendeiro estava detido em África do Sul desde 11 de dezembro de 2021, depois de três meses fugido à Justiça portuguesa, pela qual foi condenado em três processos diferentes relacionados com a queda do Banco Privado Português. Ao todo, o ex-banqueiro foi condenado a mais de 16 anos de prisão efetiva e acabaria por fugir de Portugal em setembro passado, passando por vários países antes de se estabelecer na África do Sul. Ser foragido e procurado para cumprir pena de prisão não lhe alterou os padrões nem estilo de vida: foi detido num hotel de luxo na cidade de Durban, depois de passar por vários hotéis de cinco estrelas em Joanesburgo durante a fuga. 

"Não tinha disfarces, mas tinha muitos cuidados e não circulava livremente", revelou Luís Neves, diretor da PJ, na CNN Portugal

A 28 de setembro de 2021, dia em que Rendeiro foi condenado a mais três anos e seis meses de prisão efetiva num processo por crimes de burla qualificada, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa já tinha "emitido uma notícia vermelha" e a Polícia Judiciária já tinha entrado em campo para "procurar e prender" o ex-banqueiro. Mas Rendeiro já estava em contactos com a África do Sul: tinha informado a Justiça portuguesa de que iria fazer uma viagem ao Reino Unido entre 12 e 30 de setembro, partira a 12 de Lisboa e saiu do Reino Unido dois dias depois.  A 18 de setembro chegava a África do Sul, de onde já não saiu vivo. 

“Não agia como alguém que estivesse a fugir da polícia. Aliás, fiquei surpreso quando me disseram que a polícia estava à procura dele", contou o gerente do hotel sul-africano Forest Manor Boutique guest House, numa das zonas mais ricas de Durban, onde o ex-banqueiro foi apanhado e de onde deu uma entrevista à CNN Portugal. “O sr. João para mim, na minha experiência, foi um homem muito simpático. Não estava stressado. Era apenas uma pessoa normal. Saía, ia dar um passeio até à vila, fazia exercício, saía para beber café, ir ao restaurante... Diria que não tinha qualquer comportamento suspeito”", repetia o gerente Alfred Mabonde.

Na entrevista que deu a Júlio Magalhães, em novembro passado, Rendeiro garantia que dormia bem e não tinha pesos na consciência, anunciando que iria pedir ao Estado português uma indemnização de 30 milhões de euros e que esta seria doada se a recebesse. "Eu durmo bem, embora, como disse, o tema da Maria, é um tema que me preocupa profundamente", dizia, referindo-se à mulher. Nesta altura, afiançou que não regressaria a Portugal, nem mesmo num cenário em que a mulher fosse detida. Dizia-se injustiçado e voltava a criticar Salgado, que considerava "protegido pelo sistema", definindo-se como um "poderoso fraco sem segredos de Estado".  Não estava preocupado com dinheiro: dizia que precisva apenas de três a cinco mil euros por mês para se sustentar e que continuava a tabalhar.

Em abril do ano passado, Rendeiro já falara na TVI24, a propósito da publicação do livro "Em Defesa da Honra", onde quis dar o relato, na sua perspetiva, da ascenção e queda do BPP.

"Eu sou um reformado neste momento", dizia na altura. "As pessoas estão muito preocupadas com o meu património, se é que estão, eu devo-lhe dizer que eu não estou. A única coisa que me preocupa é que a minha mulher esteja bem", destacava.

Vítima de extorsão na cadeia

Depois de ter sido detido em Durban, João Rendeiro ficou preso na cadeia de Westville, uma das maiores e mais perigosas de África do Sul, onde há relato de agressões e esfaqueamentos entre detidos e guardas prisionais. Apresentava-se em tribunal de cabeça erguida e recusava a extradição para Portugal, onde cumpriria pena pelos crimes a que já fora condenado por três vezes: em 2018, a uma pena de cinco anos e oito meses de prisão efetiva, pelos crimes de falsidade informática e falsificação de documentos; em maio de 2021, a uma pena de dez anos de prisão efetiva, pelos crimes de fraude fiscal qualificada, de abuso de confiança qualificado e de branqueamento; em setembro de 2021, a uma pena de três anos e seis meses de prisão efetiva por crimes de burla. A decisão relativa à primeira pena já transitara em julgado, depois de esgotados todos os recursos. 

June Marks, a advogada que o defendeu nos tribunais sul-africanos, chegou a enviar à ONU uma carta onde denunciava as condições de "insalubridade" da prisão onde Rendeiro estava detido: June Marks escreveu a António Guterres dizendo que Rendeiro fora vítima de tentativas de extorsão e que a situação se tornava "incontrolável" quando o antigo presidente do BPP era obrigado a conviver com outros prisioneiros. 

Explicando que o seu cliente tinha quase 70 anos e sofria de “um problema cardíaco causado por febre reumática”, a advogada de João Rendeiro sublinhava que não havia na cadeia "reais" instalações médicas.

O julgamento do processo de extradição de João Rendeiro fora marcado para junho deste ano: a audiência devia decorrer entre 13 e 30 de junho. Em Portugal, a Polícia Judiciária tem vindo a apreender património do ex-banqueiro, desde roupa até faqueiros, continuando a minuciosa tarefa de localizar, por exemplo, as obras de arte que deveriam estar em Portugal como garantia: uma das últimas apreensões foi um quadro que estava em exposição numa galeria de arte de Bruxelas, Bélgica, da autoria de Frank Stella. Segundo a PJ, a obra foi vendida em março de 2021 por mais de 100 mil dólares através de uma leiloeira de Nova Iorque.

João Rendeiro foi encontrado morto na sua cela na prisão de Westville esta sexta-feira, aos 69 anos. 

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