Caso BES: "A supervisão não funcionou, a justiça não funciona". E "não pode haver só uma pessoa culpada nesta história, não é possível"

4 mar, 07:00

O MISTÉRIO DAS FINANÇAS || Presidente executivo do BPI critica "memória curta" e lentidão da justiça. E frisa que, depois dos milhões injetados pelo Estado no Novo Banco e na CGD, se o banco público comprar o Novo Banco, será quase "uma nacionalização". Nos vários modelos de venda, a hipótese de partir o Novo Banco aos pedaços seria "um erro total". Mesmo que disso gostassem "as hienas e os leões"

"Alguma lição tem que haver daqui. E uma das lições, para mim, é: a supervisão não funcionou, a justiça não funciona." Falamos do caso Espírito Santo e do que ainda falta apurar - e é muito. Até o tempo parece estar a afunilar numa só pessoa o que tem de ter sido feito por muitos. "Não pode haver só uma pessoa culpada no meio desta história, eu não acredito. Não é possível." O nome da "uma só pessoa" não é citado, mas todos o percebem: Ricardo Salgado. "O tempo vai acabar por nos curar. O português realmente tem fraca memória. E é uma pena".

As declarações são de João Pedro Oliveira e Costa, presidente executivo do BPI, numa entrevista rica - talvez mesmo, uma rica entrevista - ao programa O Mistério das Finanças. A gravação foi feita no final da semana passada e a transmissão no final de semana. 

Gabado amiúde pela frontalidade - por vezes até pela brutalidade -, este antigo praticante de rugby placa perguntas com respostas diretas, por vezes desconcertante no conservador mundo da banca. 

Sobre o caso BES. E sobre o que vai ser a venda de uma participação do seu "filho bom", o Novo Banco, que o acionista Lone Star anunciou mas ainda sem concretizar o modelo. Teoricamente, há três possibilidades: venda direta a um outra banco; dispersão em Bolsa; ou partir em unidades de negócio a vender aos pedação - o que João Pedro Oliveira e Costa considera "um erro total".

O BPI não está interessado em comprar o Novo Banco, até porque "não tem capital". Mas já o seu acionista, o catalão CaixaBank, pode ser outra história, pela qual só outros podem responder. 

E se for a Caixa Geral de Depósitos a comprar o Novo Banco? Bom, isso "poderá ser encarado quase como uma nova nacionalização, depois de nós termos enfiado um montante muito significativo": a injeção de capital de 3,9 mil milhões de euros na CGD aprovada em 2017, além das perdas no universo Espírito Santo

Leia de seguida a transcrição da primeira parte da entrevista. Ela foi editada por razões de dimensão e clareza. Pode ver o episódio de O Mistério das Finanças na íntegra no vídeo em cima ou ouvi-lo em podcast no Eco e nas plataformas habituais. 

Pedro Santos Guerreiro (PSG) - Comecemos por tirar o elefante da sala: o BPI quer comprar o Novo Banco?
João Pedro Oliveira e Costa (JPOC) -
 Eu não sei se o elefante já está na sala. Admito que possa entrar em breve. Mas daquilo que eu tenho escutado, daquilo que eu tenho percebido, há uma intenção do acionista do Novo Banco, para já, de vender. Este é o primeiro ponto, e anunciou-o de uma forma muitíssimo clara. A segunda é que anunciou claramente o movimento para o IPO.

PSG - Uma dispersão em bolsa.
JPOC -
E depois há um conjunto enorme de notícias e de movimentações interessantes, que vamos vendo em vários locais, penso eu que com algumas motivações que vamos ver ao longo dos próximos tempos quais serão.

No nosso caso - eu tenho dito isto diversas vezes -, nós estamos completamente focados naquilo que é o crescimento orgânico. Eu penso que todos dirão o mesmo, enfim, ouvi o presidente [executivo] do BCP dizer exatamente a mesma coisa, e por isso esse será o caminho que vai prosseguir.

Agora, não fugindo à questão, eu penso que é muito importante para a Europa pensar que tipo de bancos vamos querer, qual a sua dimensão, qual a sua dimensão crítica para ser relevantes. Nós não vamos nunca conseguir ter um banco relevante em Portugal - mesmo que fosse, como já ouvi falar, a Caixa Geral de Depósitos [a comprar o Novo Banco], que enfim, que é um tema que eu acho que era muito interessante e [podemos], mais à frente, falar sobre esse assunto, apesar de que eu não quero comentar, como vocês podem entender, um concorrente, como é o caso da Caixa, do qual eu respeito não só a sua equipa, como a instituição em si, mas...

António Costa (AC) – A Caixa que disse que estava a avaliar a possibilidade de fazer essa operação.
JPOC -
Certo..

AC - Parece-lhe normal que um banco público possa ir à compra de mais um banco?
JPOC –
Acho que é completamente legítimo. A posição que eu tenho é um pouco difícil para fazer esse comentário, porque eu teria que ou falar como português, onde nós todos tivemos que suportar um custo excessivo por uma situação anómala, onde houve, no meu ponto de vista, uma falha de supervisão grave…

PSG – Está a falar do BES.
JPOC -…
e que provocou uma perda para todos nós muito significativa, e para várias pessoas, infelizmente, também: as pessoas que acabaram por ser, de certa forma, enganadas com alguns produtos, etc. E por isso que tivemos esse ponto, e eventualmente poderá ser encarado quase como uma nova nacionalização, depois de nós termos enfiado um montante muito significativo.

AC - Milhares de milhões.
JPOC -
Diria até nas duas organizações.

AC - Exato, também tivemos na Caixa.
JPOC-
Também tivemos na Caixa. Mas essa é uma posição como português. Eu terei muita dificuldade, e até me parece pouco elegante, eu fazer algum tipo de comentário em relação à gestão da Caixa. E, além do mais, quer a administração da Caixa, quer o próprio acionista, que é o Estado, é completamente soberano de seguir o caminho e entender.

PSG – Dizia que temos que pensar na dimensão dos bancos europeus. Está a sugerir que há bancos a mais em Portugal?
JPOC -
Eu pelo menos entendo que há mínimos para conseguir ter uma competição cada vez mais, enfim, mais razoável para o serviço ao cliente. Reparem, se há concorrência, basta ver o que é que é hoje em dia os spreads do crédito à habitação, os spreads nas empresas e a oferta de serviços. Além do mais, o mercado não está fechado. Nós temos muitos entrantes a operar em Portugal com serviços muitíssimo avançados - o que é uma preocupação para nós e nós temos que nos mexer para conseguir dar um serviço semelhante - e por isso não haverá um problema de concorrência. Agora, eu penso que...

AC - Mas quando temos cinco bancos a dominar 80% do mercado, é razoável que esse peso de quota de mercado diminua para quatro bancos?
JPOC -
Eu não vejo nenhum problema nesse sentido. Sinceramente, eu não vejo nenhum problema, até porque eu não vi até agora qualquer dificuldade, mesmo com o financiamento de grandes obras em Portugal, que não apareçam instituições internacionais para o fazer.

O tema aqui é a capacidade financeira para apoiar a economia portuguesa. E a concorrência que pode acontecer. E a verdade é que, hoje em dia, por exemplo, muitas vezes me falam sobre acesso ao crédito. Enfim, eu quero crescer para o dobro no crédito, por isso apresentem-me propostas.

AC - É por falta de projetos, não é por falta de disponibilidade do BPI de financiar o crédito.
JPOC -
Eu penso que o desafio que o empresário hoje em dia tem é muito grande, o mercado é muito em si mais complexo, o mercado português é relativamente estreito, 50% da nossa fronteira é água, por isso há uma distância significativa. 

Depois outro assunto que eu acho que é um grande elogio à nossa economia, aos nossos empresários, foi a desalavancagem que houve durante este processo desde a última crise financeira, por isso neste momento o peso que a dívida tem é muito menor. Agora, faltava incentivar o capital. Nós não temos mercado de capitais suficientemente desenvolvido. Mas não é em Portugal, é na Europa. Comparem com os Estados Unidos. E muito do movimento é porque nós centramo-nos em empresas tradicionais. Os Estados Unidos centraram-se muito em empresas de novas tecnologias. Nós temos que reinventar também o nosso formato do tecido empresarial.

PSG - Falámos dos milhares de milhões de euros que injetámos, quer no Novo Banco, quer na Caixa de Geral de Depósitos - que hoje já paga dividendos -, quer no “banco mau”, o Ex-BES. Se somarmos tudo, estamos a falar de 10 a 15 mil milhões de euros. Valeu a pena este dinheiro injetado no Novo Banco?
JPOC -
É muito difícil responder a essa pergunta, se valeu a pena. Nós optarmos por seguir um caminho e o caminho trouxe-nos até aqui. Como eu não sei qual é o outro [caminho], tudo o que eu for dizer carece de prova.

Acho que há aqui um tema importante, houve uma enorme vontade de quem decidiu, que foi proteger os depositantes. E eu acho que esse tema nós não devemos menosprezar. Não que eu entenda que houvesse um pânico, eu por acaso não tenho essa visão, tudo se adapta, mas penso que houve aí uma grande preocupação na defesa dos depositantes.

Agora, alguma lição tem que haver daqui. E uma das lições, para mim, que surge neste momento é uma, a supervisão não funcionou, a justiça não funciona.

Estas duas coisas são claras, para mim.

Não pode haver só uma pessoa culpada no meio desta história, eu não acredito. Não é possível. E no meio da história toda, o tempo vai acabar por nos curar. O português realmente tem fraca memória. E é uma pena.

É uma pena não porque eu vá à procura de alguém para crucificar, mas nós temos que aprender alguma lição. Porque houve alguém no meio desta história toda que se portou bem. E, sistematicamente, não estamos todos dentro do mesmo saco e depois acabamos por pôr as pessoas todas dentro do mesmo saco, ou as instituições todas dentro do mesmo saco. Isso não acho razoável.

AC - Quero insistir nesse ponto, porque acabou por deixar implícito que o BPI também está a olhar, como os outros bancos, para o que está a passar no mercado, neste processo de venda. Não será banca espanhola a mais na banca portuguesa?
JPOC -
É uma provocação interessante. Em primeiro lugar, eu acho que… Vou pôr numa outra perspetiva, mais uma vez, porque obviamente tudo o que eu disser sobre este caso e sobre a situação, porque o meu acionista é 100% um banco espanhol, não sou levado tão a sério como se fosse outra pessoa que não estivesse na mesma circunstância.

AC - A declaração de interesse está feita. O BPI é controlado a 100% por um banco espanhol [o catalão CaixaBank].
JPOC -
O que é que eu sei? Eu sei que eu tomo todas as decisões de crédito em Portugal. Todas.

AC - Não vai a Madrid nem a Barcelona?
JPOC -
Não. Agora, há regras em todos os bancos. Também a Caixa Geral de Depósitos, se tiver que tomar uma decisão de uma determinada dimensão, terá que ir ao Conselho de Administração e depois terá que consultar o acionista. Espero bem que haja regras, que isto não seja na base de como foi no passado… Nós todos temos regras e às vezes é bom ter regras de instituições que são supervisionadas. Este é um primeiro ponto.

O segundo ponto tem a ver com a intervenção de um banco, neste caso espanhol, na nossa economia. Que eu saiba, até agora, tanto o BPI, como é o caso, como o Santander, foram os dois bancos que passaram incólumes durante a última crise financeira. Por isso temos também aí um bom exemplo.

AC - Mas também nos lembramos que os bancos espanhóis, e até os ingleses, por exemplo, na crise financeira, foram os primeiros a apertar o crivo e a dizer, vamos sair. Lembro-me, por exemplo, do Barclays, fechou mesmo as portas e foi embora.
JPOC -
Nós não fomos embora. Além do mais, outra coisa, também talvez um pormenor, no nosso caso, nós somos BPI, continuamos a ser BPI. Não mudámos a marca. Nós não mudámos a marca. Em 4300 funcionários, eu tenho três espanhóis.

Só que eu acho que é um pouco ofensivo para os nossos parceiros comerciais… O maior parceiro comercial é a Espanha. Quase que nós estamos a tratar “os espanhóis”.

Também já ouvi umas estatísticas de que ficaria, se fosse o caso do BPI [a comprar o Novo Banco] ou fosse outro caso, ficaria 60% do mercado espanhol. Onde é que essa conta surge, que eu não consigo lá chegar? No máximo seria 40% [do mercado português] dominado [por espanhóis].

Agora, o problema é assim: nós estamos a falar de um setor que é um setor de capital intensivo e com capacidade de intervenção na economia. Ninguém vai estar em Portugal que não seja para apoiar as famílias portuguesas ou para apoiar a economia portuguesa, porque senão vai fazer negócio no outro lado qualquer. A haver algum interesse será aqui e eu penso que este é um importantíssimo. importantíssimo. Além do mais, a intervenção que estas instituições podem ter.

E deixem-me só vender aqui um pouco o meu ponto sobre este tema da importância de nós atrairmos instituições grandes: o CaixaBank é detido pela terceira maior fundação do mundo [a Fundação La Caixa]. Gasta em obra social, apoio à saúde e ao desenvolvimento e à inovação e à ciência muito mais do que todas as outras fundações juntas em Portugal. Foi de facto fantástico nós termos a Gulbenkian connosco e termos a Fundação Champalimaud e temos outras fundações. Aqui é a mesma coisa.

Por isso, o que é que esta organização aporta a Portugal? Que inovação traz? Além do mais, competir hoje em dia no mercado internacional não é só uma questão de dimensão. É uma questão de cibersegurança, um tema de investimento em tecnologia, atração de talento jovem. Por isso, há aqui vários aspetos.

Eu não punha tanto no tema se são espanhóis, se são isto ou se são aquilo. Nós temos que ser mais europeus e temos que entender que haverá setores que nós temos que claramente pôr é regras. Eu, como nacional, nós temos é que pôr regras, não é qualquer um que vem.

E uma última coisa: eu lembro-me uma vez de estar a ver televisão, há muitos anos, e ver um grupo de empresários entrar na residência do Sr. Primeiro-Ministro para pedir o centro de decisão em Portugal. E havia uma pessoa que liderava isso, que vendeu a empresa a espanhóis, 15 dias depois.

PSG - Diogo Vaz Guedes.
AC - Todos nos lembramos. Só mesmo para terminar este tema, porque é importante que fique claro: o BPI está a olhar para a venda do novo banco?

JPOC – Resposta: não. Resposta: não. Não, neste sentido. O BPI não tem capital para comprar o Novo Banco e não tem no meu mandato esse movimento. Agora, cabe ao acionista do BPI tomar uma decisão relativamente a esse assunto.

AC - E dividir o novo banco?  Comprar a meias com o outro banco?
JPOC -
É um erro total. Para mim, é um erro total. É um erro total.

AC – Partir o Novo Banco…
JPOC -
É um erro total. Para mim, é um erro total. Eu já ouvi essas versões… Eu vejo logo as figuras das hienas e dos leões. Eu acho altamente negativo. Por trás, há pessoas. Às vezes diz-se estas coisas, mas há funcionários dos bancos, há clientes dos bancos, há empresas que dependem do Novo Banco. E houve uma administração, deixem-me dizer, que fez um excelente trabalho. A atual administração do Novo Banco fez um excelente trabalho. Isto no final não é uma carniça.

 

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