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Diretor executivo CNN Portugal

Um brinde a ti, Guerra!

5 ago, 15:21
João Paulo Guerra e Luis Afonso

Quando eu comecei nos jornais, o João Paulo Guerra era um velho do Diário Económico. Era um velho porque tinha uns distantíssimos cinquenta e tais, e os cinquentas são uma inconcebível Sibéria no mapa de quem está no trópico dos vintes. Ora, nem eu nem metade da juveníssima redação do Diário Económico tínhamos metade dos anos dele, nem, diga-se, metade de metade do seu saber - ou do seu sabor.

Porque ele tinha sempre sabor, de ácido como as pilhas a suave como os mares das ilhas, ter sabor é não ser anódino nem montra de joalheria, e o João Paulo escrevia, como sói dizer-se, “de gancho”.

Refiro-me àquela tripa diária de milena e meia de carateres em página interior do Diário Económico, que o João Paulo assinaria preenchendo o lugar do bonsai deixado pelo Leonardo Ferraz de Carvalho. O digital não tem "página interior", o que é uma pena também porque sem página interior não há coluna da página interior, e aquelas colunas são como a maçã-por-dia dos médicos mas com concentrados de álcool, sal, pimenta ou até de açúcar, são shots de toma diária contra os vermes cerebrais, de autores que sabem dizer muito escrevendo pouco, quase sempre com a inteligência do humor, em escritos, prescritos e até proscritos daqueles de quem nos tornamos primeiro leitores e depois desconhecidos íntimos. Assim foi aquela coluna diária do João Paulo Guerra no DE, como antes a do Leonardo, e a do Victor Cunha Rego no DN, como em dias parecidos a do Manuel António Pina no JN, a do Ferreira Fernandes no DN, a do Fernando Sobral no nosso Jornal de Negócios, depois as do João Pereira Coutinho e Manuel Fonseca no CM, isto de escrever todos os dias num jornal é da ordem do infinito, o Francisco José Viegas ou o Miguel Esteves Cardoso que o contem, estão há anos nessa ginástica de alta competição.

A do João Paulo chamava-se "Coluna Vertebral" e representava, ademais, o pluralismo dentro do próprio jornal, por aquele ser muito pouco liberal ao contrário do periódico, e sempre um defensor-ao-ataque das lutas históricas de esquerda num jornal debruçado sobre o progresso. Não era contradição, era complementaridade com vontades de completude. E era mais que o humor, que a razão, que a ironia, o sarcasmo ou a tropelia do jogo de palavras, era o uso de todos os recursos incluindo o nonsense e a provocação. Como daquela vez sobre Timor – onde ele estivera em reportagem entre as milícias - quando o primeiro-ministro António Guterres nomeou o padre Vítor Melícias como Comissário para a Transição. Título da notícia do João Paulo: “Guterres envia Melícias para Timor”... 

O João Paulo não escrevia só aquela coluna, claro. Eu nunca estive no Diário Económico, nunca trabalharíamos juntos, mas eu lia mais ou menos todas as palavras largadas sobre economia e, portanto, também as dele, que era então editor de Política, e a Política nos jornais económicos era diversa da dos generalistas, era um animal talvez de corpo menor e olhos maiores, mais furtivo e com colmilhos.

Sou um mau biógrafo do João Paulo, já se percebeu, até porque só o li a partir do seu mais de dobro da minha idade, já ele havia sido jovem, já ele escrevera obra, carreira e ativismo, peço desculpa por não vo-las relatar, mas este texto não é sobre isso, é só um canto de um leitor e por isso vos digo que o li todos aqueles anos, como depois o ouvi na revista de imprensa todas manhãs na Antena 1, um primor de jornalismo e de rádio como ninguém –  ninguém - soubera nem saberia fazer simile. Mais tarde, ele continuaria em publicar em blogues, onde assinava como “João Paulo Guerra. Jornalista há: 20 primeiros ministros 11 PR's e 8 Papas”. A contagem ficaria desatualizada até à publicação do último texto já nos seus oitentas, e eu já velho como ele era quando comecei a lê-lo.

Conheci-o pelo Sérgio e pelo Fernando, a última vez que jantámos foi em casa do António e da Isabel, eles sim seus amigos grandes entre tantos dos seus grandes amigos, muitos fundados nesta profissão apenas crível para quem nela bem vive mesmo se dela mal vive.

É pena não haver páginas interiores nem últimas páginas, e é pena os arquivos dos jornais perecerem nas nuvens, hoje quereria reler e republicar texto seus. Recupero este excerto, de um dia em que um polícia de choque português “espancou uma fotojornalista portuguesa da France Press, no Chiado, em Lisboa”, numa manifestação associada à greve geral - para relembrar os seus instintos – o combate aos abusos de poder –  e sentir o seu sabor: “… por mais voltas que se deem à língua e aos dicionários não há maneira de vislumbrar qualquer espécie de confronto entre um polícia de choque armado até aos dentes e de chanfalho em riste e uma jornalista carregada de máquinas fotográficas e com uma carteira profissional na mão. Sendo que a relação entre ambos é que um espanca a outra (…) Espero que a foto [que registou a agressão] tenha corrido mundo para vergonha de quem espanca, manda espancar ou assegura a impunidade de bestialidades como esta”.

Já vai longo o texto e, na verdade, era só um canto para mandar um abraço e dizer que, nisto da vida, como nisto dos jornais, como nisto da democracia, vivemos um bocadinho juntos e morremos um bocadinho juntos, mesmo quando pouco nos vemos mas muito nos lemos. E assim nos temos. Sem uma última última página, com um sorriso no adeus, para o João Paulo Guerra, 1942-2024, juveníssimo, “Jornalista há: 20 primeiros ministros 11 PR's e 8 Papas”.

 

Primeira página de uma "edição especial" que os amigos de João Paulo Guerra lhe ofereceram nos seus 80 anos, a 16 de abril de 2022. É desta edição que é retirada a vinheta de Luís Afonso no topo deste texto, e que lhe é dedicada. É desta vinheta que é retirado o título deste artigo, em memória de João Paulo Guerra.

 

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