De onde vêm os poemas? Da vida, claro. João Luís Barreto Guimarães, poeta em “Movimento”

9 mai 2022, 18:00
O poeta João Luís Barreto Guimarães (Direitos reservados)

João Luís Barreto Guimarães vence prémio 27.ª edição do Grande Prémio de Literatura DST, com o livro “Movimento”.

"A primeira coisa que fiz foi ver quem foi o júri". João Luís Barreto Guimarães, poeta, médico, portuense, 54 anos, acordou hoje com (mais) um prémio. O seu livro “Movimento” é o vencedor da 27.ª edição do Grande Prémio de Literatura DST, atribuído pela empresa de engenharia e construção com o mesmo nome, controlada pela família Silva Teixeira.

"Tenho consciência da importância do prémio e dos bons poetas e prosadores que já o ganharam, mas saber que o júri é composto por pessoas que respeito dá-me uma grande alegria”, conta João Luís Barreto Guimarães à CNN Portugal. Vítor Manuel de Aguiar e Silva (professor, escritor e Prémio Camões 2020), José Manuel Mendes (presidente da Associação Portuguesa de Escritores) e Carlos Mendes de Sousa (professor da Universidade do Minho) foram os membros do júri, que recebeu quase “centena e meia de inscritos”, participação recorde de que emergiu este prémio, escolhido pelo "sentido de rigor, concisão e problematização do quotidiano”.  O prémio, com o valor de 15 mil euros, será entregue a 2 de julho, na abertura da Feira do Livro de Braga.

"Movimento" foi publicado pela Quetzal, no final de 2020, em plena pandemia, que o marca tanto como a crise económica: "Cada livro corresponde a um momento, a um olhar. Há uma linha condutora na obra, claro, mas cada livro é único", explica João Luís Barreto Guimarães. Daqui a nada editará outro, lá para 2023, e esse será definitivamente mais "solar".

“A Alegria faz parte da forma como vivo a poesia”

Barreto Guimarães já publicou 11 livros de poesia, ao mesmo tempo que mantém a sua carreira profissional como médico cirurgião. É um leitor ávido: "Estou sempre a ler, mais do que a escrever. Acompanho a vida literária com grande atenção, li muitos dos livros que saíram nos últimos dois anos e sei que há autores muito bons, pessoas que admiro, alguns amigos meus", diz. "Não tenho uma atitude muito circunspecta em relação à poesia e não tenho uma correia que me prenda à seriedade com que se deve viver estes momentos", admite o escritor. A alegria "faz parte da forma como vivo a poesia diariamente, o modo como vejo a poesia nas coisas, no quotidiano, num processo permanente de dar e receber".

O processo de escrita é, no seu caso, longo: "Começo um livro imediatamente após a última revisão das provas finais do livro anterior", conta. "Depois disso, normalmente, no meu processo quotidiano de viver e de escrever, vão surgindo poemas, que vou escrevendo, e selecionando quais os que são para destruir e quais os que são para preservar."

De onde vêm os poemas? Da vida, claro. Do quotidiano. Do que o poeta vê, do que o poeta ouve, do que pensa e sente sobre o que está à sua volta. "Não é o impulso mental que me faz escrever, é geralmente alguma coisa da vida. Como a vida quase sempre se repete, as ideias também se repetem. Tenho de analisar bem cada ideia, às vezes não vale a pena mexer o braço para escrever", admite. "À medida que se vai escrevendo livros, começa a assaltar-nos uma questão: e se as ideias se esgotam? De livro para livro, é preciso um pouco mais de tempo, e de vida e escrita, para que se consiga uma obra com qualidade suficiente para publicar. O autor tem de trabalhar mais para não cair naquela coisa terrível que é a repetição", confidencia. "O truque é dar mais tempo e trabalhar mais."

"Trabalho geralmente da imagem para a linguagem. Primeiro, percebo sobre o que quero falar e depois como vou pôr isso em papel, e vou trabalhar mais a oficina do poema."

"Quando tenho uns 25 a 30 poemas, o que geralmente leva mais de um ano, olho para eles e tento encontrar o mínimo denominador comum, lendo aqueles poemas de acordo com o ar do tempo e percebendo como podem eles formar uma unidade. Perante isso, surge-me o título do livro. A partir daí, os novos poemas já surgem para esse nome e para esse objetivo, ainda que uns possam ser mais contemplativos e outros mais assertivos."

É então que leva ao seu editor - que atualmente é Francisco José Viegas - "uma hipótese de livro", a que se segue o trabalho de edição, que pode demorar mais de um ano, de revisão, de aperfeiçoamento. "Uma coisa é escrever poemas, outra coisa é fazer um livro de poesia. Não é só uma coleção de poemas, procuro uma harmonia, um equilíbrio do conjunto, que seja conceptual." É "um trabalho de muita minúcia”, em que “é preciso garantir a sequência narrativa" A cada leitura, pode mudar-se só um verso ou um poema inteiro. "Quando de uma leitura para outra se percebe que já não se muda nada, o livro está pronto para ser entregue. É o livro que nos diz quando está completo."

"Movimento" - um livro sobre os dias que passam

"Movimento" começou a ser escrito em 2018, muito marcado pela crise económica. Barreto Guimarães tinha já a ideia de organizar o livro segundo os dias da semana, "porque sabemos que os dias têm tensões diferentes, há dias mais criativos, outros mais amorosos, outros indicados para resolver problemas... e isso também tem a ver com o modo como os antigos denominavam os dias da semana, ligando-os aos astros e aos deuses, algo que se perdeu na língua portuguesa mas que se mantém de alguma forma no francês ou no italiano. A segunda-feira é o dia da Lua [lundi em francês, por exemplo] que está relacionada com a melancolia; depois vem o dia de Marte, o deus da guerra; a seguir Mercúrio, que está relacionado com a negociação, a diplomacia; quinta-feira é o dia de Júpiter, que representa a lei; Vénus é a deusa do amor; e, por fim, sábado, dia de descanso que vem de Saturno, e domingo, o dia do sol, é a criação. Então, reparei numa curiosidade: a ordem dos dias não corresponde à ordem dos planetas. Alteraram a ordem para criar uma narrativa de tensão, conflito, resolução e acalmia para dar acesso à semana seguinte."

A proposta para "Movimento" era, precisamente, "organizar os poemas de acordo com estas tensões de cada dia". "Nada é explicado no livro mas é isto que acho que acontece neste livro e que é uma forma de problematizar o quotidiano", diz. Também é por isso que o livro se chama "Movimento", mesmo se "ironicamente a imagem de capa não tenha qualquer movimento", o que é propositado: o livro foi editado em outubro de 2020, em plena pandemia, e foi terminado já com esse "pressentimento de que o movimento nos ia fazer falta, uma vez que o confinamento nos privou dessa tensão semanal".

Da mesma forma, foram introduzidos já na fase final de provas dois poemas, em que há referências à pandemia: num fala-se de como nos sentamos em lugares alternados, noutro refere-se o modo como os idosos são afetados pelo confinamento. "São duas pinceladas mas não é o tema principal do livro", diz o autor. "Ajudam a documentar o tempo."

O que Barreto Guimarães pretendia mesmo era refletir "o movimento da vida e a tensão que a personagem poética sente ao longo da semana". "O livro representa o quotidiano dessa personagem poética. Há partes mais calmas e contemplativas, outras em que se reflete sobre circunstâncias da vida profissional ou sobre a vida política. Porque a vida é composta de momentos de tragédia e outros de comédia." É pois normal que os poemas que encaixam nos dias de Marte e Júpiter (escritos entre 2018 e 2020) reflitam mais sobre política ou sobre o trabalho e a relação com entidades empregadoras.

Contra a nuvem negra, o sol

João Luís Barreto Guimarães está já a trabalhar no próximo livro, a publicar em 2023. "Quero continuar a escrever sobre o quotidiano, mas destapar coisas diferentes, procurar outras perspetivas", revela. Depois de um livro mais melancólico, marcado pela presença da "guerra quotidiana", o próximo será "uma reação mais alegre e viva a esta crise que temos vivido em Portugal nos últimos anos, primeiro com a troika, depois com a pandemia, depois com a guerra na Europa. Parece que existe uma nuvem negra e que não conseguimos levantar a cabeça. E o livro será uma tentativa de chamar a atenção para as coisas boas da vida."

"Quero que seja um livro solar", anuncia.

O autor considera que tem sido “muito abençoado" pelos vários prémios que tem recebido - ainda em fevereiro, o seu livro anterior, "Mediterrâneo", ganhou nos EUA o Willow Run Poetry Book Award de 2020 (tendo Barreto Guimarães sido o primeiro autor não americano a ganhar este prémio), depois de já ter ganho o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa 2017. Alegria, sim, mas os prémios dão-lhe também "segurança", reconhece. "Há um trabalho muito aprofundado de escrita, de estruturação e de preparação dos livros. Cada livro corresponde a um momento, a um olhar. Há uma linha condutora na obra, claro, mas cada livro é único".

 

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