Anjos vs. Joana Marques, o julgamento - é o dia final
Vinte e um dias após a primeira ronda, eis que estão de regresso ao palco — mas este não tem holofotes, tem madeira encerada, não tem munição, tem microfones encapados. E há uma juíza no lugar do técnico de som. No sexto piso do Juízo Central Cível de Lisboa, os irmãos Rosado e Joana Marques voltam a ver-se frente a frente. Não é um talk-show, nem um roast — é o terceiro e último dia de um julgamento com tensão narrativa, cliffhangers e uma figura especial anunciada para o final: Ricardo Araújo Pereira, “testemunha de defesa”. Um cameo à altura. Que à chegada ao tribunal, mas ainda de fora, afirmou: "Estamos hoje aqui por causa de uma perspetiva segundo a qual o humor é uma agressão, a pior das agressões. O que os queixosos pretendem dos tribunais é uma impossibilidade, querem que o tribunal diga o seguinte, que não somos ridículos. E não é possível porque todos somos".
DIA 1: "Não somos assassinos"
No primeiro dia do julgamento que opõe os irmãos Rosado à humorista Joana Marques, foi o vocalista Nelson quem abriu o alinhamento (as citações dentro da sala que se seguem daqui em diante são relatadas pelo Observador). E o tom foi sério, grave, quase litúrgico: “A Joana Marques fez um vídeo novo.” Novo, sublinhou. Não uma simples reprodução, mas uma montagem — ou, como preferem dizer, “uma manipulação” — da atuação dos Anjos no MotoGP, onde cantaram o hino nacional com alma e eco, muito eco.
“Cortaram o ‘levantai hoje de novo’”, lamentou Nelson Rosado, indicando que não foi só a frase que desapareceu, foi a dignidade. Para Sérgio, o corte foi ainda mais profundo: “Cortaram uma respiração”. E essa respiração — essa pequena pausa entre versos — era, nas suas palavras, essencial. Tirá-la foi como apagar um compasso inteiro de Mozart.
A dupla de artistas, com 26 anos de carreira, garantiu que sabe lidar com críticas. Mas não com vídeos “editados” que “ridicularizam”. “Fomos acusados de não saber a letra”, desabafaram, entre suspiros e referências ao passado. O vídeo, defendem, não espelha o que aconteceu naquele palco improvisado que é de asfalto e de motores no Algarve.
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Em tribunal, a advogada de Joana Marques pediu para ser exibido um vídeo da atuação completa, gravado pela produtora dos irmãos. Antes da exibição, Nelson Rosado pediu desculpa ao ouvido coletivo da sala: “Foi num autódromo, há eco.” O vídeo passou. As palavras “igrejos avós” estavam lá. “Nós dissemos egrégios”, reforçou Nelson. A advogada da humorista provocou: “E o uou uou uou, é um efeito?” “Faz parte”, respondeu, sem rir, ainda Nelson. A juíza pediu para avançar — “o tema está esgotado”, decretou, como quem corta uma faixa em fade out.
Mais do que as palavras, pesam os efeitos. Três anos depois, Nelson Rosado diz que a “fatura” continua em cobrança. Recebem “ódio nas redes”, são vítimas de “cyberbullying”, acusados de “assassinar o hino”. A juíza perguntou se entendiam como funcionam as redes sociais. O cantor devolveu: “Nós não nos enganámos no hino e muito menos somos assassinos".
O processo, garantem, gerou danos reais: 11 concertos cancelados, segurança privada infiltrada no público por medo de ameaças de “grupos nacionalistas”, patrocínios perdidos. “Tivemos de recorrer à psiquiatria”, revelou Nelson, mencionando ainda que tomou medicação "clínica" depois de a fitoterapia falhar. Sérgio, por seu lado, falou de uma “crise de acne” provocada pelo stress. “Felizmente tenho barba para tapar as marcas.” E para fugir à depressão, inscreveu-se num triatlo. “Reuni a família e disse 'preciso de fazer isto'.” Fez. Parece que atenuou.
A defesa alega danos materiais: para lá dos concertos cancelados, um projeto com a agência Abreu ficou em banho-maria. “Houve uma reunião de emergência: 'o projeto é bom, mas não pode avançar'. Havia muito ruído”, explicou Sérgio.
E há a dimensão ética, o dilema do riso. “Para se fazer bom humor não é preciso falar mal de ninguém”, argumentou Nelson Rosado. Contam que Joana Marques reutilizou o vídeo em espetáculos ao vivo, já depois do processo iniciado. “Quero acreditar que ela não tinha noção do que aquilo poderia causar.” Mas e se tinha? “É licenciada em Ciências da Comunicação, sabe o poder das palavras."
Enquanto Joana bebia água e tirava notas — em silêncio, como quem aguarda punchline, que virá na derradeira estada no tribunal —, Sérgio Rosado tentou mostrar que gosta de humor. Lembrou uma anedota sobre um invisual contada num concerto onde havia um. “Mas não causei danos.” Recordou como partilhava vídeos da comediante, como seguia o trabalho de Joana "desde os tempos do Canal Q". Depois mudou o tom: “O humor que ela faz agora é diferente, uma viragem muito radical”. Referiu Herman José, Gato Fedorento, Bruno Nogueira — exemplos de quem “não chamava nomes”. A acusação implícita: Joana Marques chama.
No final do dia, o julgamento não era apenas sobre cortes e respirações. Era sobre o que dói mais: a sátira ou a exposição. O que vale mais: a reputação de um artista ou a liberdade de rir? O que se corta num vídeo — uma palavra, um silêncio — pode ser, afinal, o que mais fere.
Dia 2: "Agarrava nas mãozinhas dele, fechávamos os olhos"
As primeiras lágrimas surgem ainda o dia mal começou no segundo julgamento que opõe os irmãos Rosado à comediante Joana Marques. No banco das testemunhas, Timi Montalvão — produtora dos Anjos há mais de vinte anos — tenta manter a compostura. Não é fácil, diz ela. Há dois anos e tal era tudo festa no paddock de Portimão, com o hino nacional a sair pela garganta dos dois irmãos. O que se seguiu foi, nas palavras da própria, um “pesadelo”.
“O humor não pode tudo”, atira. A frase não é nova, nem é sua — já vinha sendo repetida e repetida ao longo da primeira sessão deste julgamento. Mas aqui está carregada de dor: a produtora fala em perda de trabalho, perda de contratos e de alguma paz. A culpa, insiste, não é do som que falhou nem do público que se riu. É da radialista e humorista Joana Marques, que publicou um vídeo editado — no entender da acusação, “manipulado" — em que os irmãos parecem desafinar ao cantar o hino. A versão que correu mundo. Ou internet. Do outro lado, os advogados de Joana Marques perguntam: “Isto não é humor?”. A produtora Timi Montalvão hesita: “Percebe-se que é uma mistura para tentar brincar, mas não piadas que humilhem. Isso para mim não é humor, é humilhação pública”.
A propósito da manipulação foi chamada a testemunha João Pedro Ferreira: é editor de imagem na TVI e ali está para falar precisamente disso - do vídeo. Veio chamado pelos Anjos, e o que traz é um parecer técnico em forma de power point que aponta o dedo à edição de Joana. Mostra os cortes, as pausas, os planos de plateia colocados “em sítios estratégicos”. “Inserir imagens fora de contexto causa dano — neste caso, foi o que aconteceu”, garante. A juíza interrompe de pronto. “Mas o senhor tem uma profissão séria. A Joana tem uma profissão diferente da sua.” A frase fica no ar, suspensa. É uma pista do que está também em julgamento: os limites do humor, sim, mas também a própria natureza do humor.
Voltemos à música. Nuno Feist, maestro e professor, está ali para explicar que, na verdade, ninguém desafinou. Tecnicamente, garante, “não houve desafinação” — e se houve uma ou outra sílaba que soou estranha, foi por causa do som. Mais precisamente da falta dele. Feist defende os Anjos com termos de especialista: fala de ritmo, de harmonia, de encaixe — o vocal. E depois entra pelo domínio do simbólico: “Estamos a falar de uma gravação ao ar livre”. Evoca até um momento de Estado, defendo os cantores, mas desmentindo os cantores — que garantiram nunca ter digo "igrejos" mas sim, egrégios: aquando da vinda de Emmanuel Macron a Lisboa, também se entoou o hino nacional — “e também se ouve ‘igreijos’".
Há depois uma tentativa de pôr preço ao dano. Três testemunhas de empresas que patrocinavam (ou iam patrocinar) os Anjos garantem que o vídeo viral os fez recuar. Um deles, da área do desporto, recorda o telefonema a Nelson Rosado: “Não me leves a mal, mas, com tudo isto que está a acontecer, tenho de olhar para o que pode sobrar para a minha empresa”. O patrocínio, de 75 mil euros, foi à vida. Outro, da área da cosmética ou publicidade (o tribunal não entra em detalhes), fala em 35 mil euros.
Depois entram as famílias. As mulheres dos músicos — Andreia e Sílvia — falam dos filhos, dos olhares no centro comercial, das perguntas que começaram a chegar a casa. Sílvia, mulher de Nelson, recordou que acreditava que a controvérsia terminaria com uma conversa entre o marido e a comediante e que foi isso que explicou aos filhos, de 10 e 15 anos. Mas a tensão alastrou-se. “O pai não está bem”, ouviu dizer ao filho mais novo. “Tive de o começar a adormecer”, contou em tribunal, antes de partilhar que, à noite, fazia uma oração com o menino: "Agarrava nas mãozinhas dele, fechávamos os olhos".
Já Andreia, mulher de Sérgio Rosado, reforçou que “não vale tudo, independentemente da profissão das pessoas”. Invocou o impacto psicológico nos músicos e nos filhos e lembrou um episódio vivido num centro comercial: “Uma pessoa ao meu lado começou a verbalizar e a gozar com o Sérgio. Se ele cantasse agora o hino… um milhão”. Disse que teve de intervir.
O segundo dia terminou entre lágrimas e indignações, sob o traço constante de uma acusação que procura mostrar que a sátira ultrapassou o limiar da liberdade criativa e se tornou — nas palavras das testemunhas — num ataque à dignidade. A defesa de Joana Marques, por seu lado, continua a tentar recentrar o caso nos limites do humor e na forma como o vídeo foi ou não percecionado como legítima expressão artística.
Resta saber se o tribunal considera que o vídeo o foi. Se Joana Marques foi além da troça. Se há, no meio do riso que se tornou viral, uma espécie de dano punível.
Um milhão de euros "violaria o artigo 10.º da Convenção Europeia"
Em entrevista à CNN Portugal antes do início do julgamento, Iolanda Rodrigues de Brito reconhece a importância da liberdade de expressão concedida aos humoristas. Em concreto na política - ou contra a política. “Quando nos referimos, concretamente, às figuras públicas e, muito especificamente, aos titulares de cargos públicos, é muitas vezes através do humor que se discutem até questões de interesse público.”
A advogada, autora de “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, considera "seguramente que haverá pessoas que pensam de forma diferente”, que não pode haver “liberdades absolutas e, logo, liberdade de expressão absoluta”. “Isto também serve para o humor. Se a piada vai ao encontro de fazer a humilhação pública, se faz a degradação da dignidade da pessoa humana, mesmo sendo uma figura pública, há ali um limite que, se for ultrapassado, transposto, e mesmo sendo muito alargado [liberdade de expressão], nega à própria figura pública um direito: o direto à dignidade.” Em conclusão, encontra um limite no humor: “O limite do rebaixamento absolutamente intolerável”.
Esse não é o caso dos Anjos. “Não comentando este caso concretamente, mas abstratamente - porque ainda não se sabe o que diz a acusação -, eu diria que está, parece-me, completamente a coberto da liberdade de expressão. Ou seja, quando eu penso num caso em que há limite à liberdade de expressão, à liberdade artística - em matéria de sátira ou de humor -, não parece ser este o caso.”
A advogada admite que os dois músicos possam sentir prejuízo. “É possível que os dois artistas tenham perdido - não sei se perderam ou não, mas é possível - contratos por causa desta questão.” Mas quando um juiz analisar se há ou não lugar a uma responsabilidade civil ou criminal, “dificilmente se chegará à indemnização, vai depressa cair”. Iolanda Rodrigues de Brito vai explicar porquê, passo por passo.
"Suponhamos que foi pedida a responsabilidade civil e responsabilidade criminal ao mesmo tempo. O juiz vai ter de analisar os pressupostos em separado. Mas, em ambos os casos, vai analisar a questão da ilicitude. Antes de analisar os danos [patrimoniais], vai analisar a ilicitude. Para chegarmos à obrigação de indemnizar, primeiro o juiz terá de ver se houve algum facto voluntário humano. E há: é uma publicação [no Instagram].” Portanto, o primeiro requisito está preenchido.
O segundo requisito é se a conduta é ilícita ou está excluída a ilicitude “por causa da liberdade de expressão”. “Na maioria dos casos, e não só neste caso, o exercício do direito à liberdade de expressão pode justificar a ilicitude - e, assim, excluir a ilicitude. Se for o caso, e parece-me que vai ser o caso, o juiz já não vai sequer chegar à apreciação do dano. E a indemnização cai, sim. Porque os pressupostos da responsabilidade civil são a existência de um facto voluntário humano e a existência de ilicitude. Só se indemnizaria se preenchesse ilicitude - por culpa, por dolo, por negligência. E se se provasse a existência do nexo de causalidade entre o facto e o dano. Portanto, o grande factor de desbloqueio é mesmo a questão da liberdade de expressão”, assegura a advogada.
Importa, pois, perguntar: pesa mais - na Constituição - a liberdade de expressão do que o direito ao bom nome? “Ela protege em igual medida. São os dois direitos fundamentais”, começa por esclarecer Iolanda Rodrigues de Brito. E acrescenta: “O que muitas vezes se diz é que, ao abrigo da Convenção Europeia, os direitos não se encontram no mesmo patamar porque há um direito à liberdade de expressão e o direito ao bom nome é apenas tutelado como um limite, em certas situações excepcionais, ao direito à liberdade de expressão”.
Deixando de lado o juridiquês, e ilustrando, a advogada diz o que defende, “e continuarei a defender”, quando há conflitos entre liberdade de expressão e direito ao bom nome: pesar bem. “Porque o direito ao bom nome é um direito que é fundamental numa democracia - uma informação falsa pode destruir relações humanas, pode destruir relações empresariais, pode destruir a confiança.”
E explica como se pesa: “A primeira coisa que o julgador tem de fazer é imaginar que há uma balança e que vai colocar tanto a liberdade de expressão como o bom nome, a honra, em cada um dos pratos. E depois, à medida que vai introduzindo os critérios que são pertinentes para dirimir este conflito, é que vai desequilibrando até decidir qual é que é o prato que vai prevalecer”. E que critérios são esses? Em primeiro lugar, e mais importante, a distinção entre imputação de factos e juízos de valor. “Ou seja, uma coisa é a imputação de um facto, outra coisa é a liberdade de opinião. A liberdade de opinião é muitíssimo mais protegida porque cada pessoa tem a sua opinião - as opiniões são subjetivas, não há opiniões certas nem erradas, pode haver opiniões justas e injustas - tudo isso está coberto do direito à liberdade de expressão.”
“Dificilmente” Joana Marques poderá ser condenada. Ainda menos nos valores que se pedem à humorista, acima do milhão de euros. Mas e se for?
“Muitas vezes as indemnizações são avultadas. E é por causa disso que há também muitas condenações [da justiça e do Estado portugueses] no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Mesmo neste caso, e ainda que se diga que a conduta [da humorista] não estava ao abrigo da liberdade de expressão, que era ilícita, a desproporção [entre o crime e o dano] é demasiado grande, demasiado gravosa. Porque, assim, a sanção torna-se ela própria uma forma de restringir a liberdade de expressão. Tem de haver ponderação e não desproporção [por parte dos juízes]. Claramente uma indemnização destas violaria o artigo 10º da Convenção Europeia, que é o que protege o direito à liberdade de expressão”, conclui Iolanda Rodrigues de Brito.