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Correspondente Médica CNN Portugal

A Jéssica que deixámos ser Valentina

25 jun 2022, 11:45

A cada tragédia que envolve violência contra crianças segue-se um período de luto e consternação, julgam-se e determinam-se os culpados à luz do Estado de Direito que somos e, de algum modo, quer por tirarmos ilações e ensinamentos, quer por uma crença quase pueril em que achamos que o reduto de maldade no mundo se esgotou, pensamos que as tragédias assim não se repetem.

Sexta-feira, 24 de Junho de 2022, Avenida da Liberdade, Lisboa, 18h06. Um táxi pára frente a um hotel, sai uma mulher e logo pega ao colo uma criança – terá cerca de 3 anos acabados de fazer – no outro braço segura uma mala. Numa fracção de segundo, dividida entre pesos e distracções – a mãe beija a criança no rosto. Nada mais simples, nada mais natural, diria quase inconsciente. Esta mãe que não conheço nem se lembrará deste beijo, em que eu reparei particularmente, porque me acomete nestes dias um inusitado sentimento de culpa, depois de sabermos da morte da Jéssica e dos contornos que se vão esclarecendo. Este beijo natural está nos antípodas da crueldade e frieza que várias pessoas foram capazes de usar contra uma criança indefesa que, como as outras, também um dia brincou ao faz-de-conta com os seus bonecos.

A mãe, médica e professora que sou falharam de alguma forma; todos nós, como sociedade, faltámos à pequena Jéssica, que não podíamos ter deixado ser Valentina. A cada tragédia que envolve violência contra crianças segue-se um período de luto e consternação, julgam-se e determinam-se os culpados à luz do Estado de Direito que somos e, de algum modo, quer por tirarmos ilações e ensinamentos, quer por uma crença quase pueril em que achamos que o reduto de maldade no mundo se esgotou, pensamos que as tragédias assim não se repetem.

Esta responsabilidade colectiva é, sem dúvida, central. Não obstante, alguns de nós, em virtude das funções atribuídas, encontram-se numa posição particularmente relevante na precoce sinalização de crianças em risco. Para os profissionais de saúde, todos os contactos são vitais para conhecer famílias e contextos. Para os médicos, por exemplo, a consulta com os pais ou responsáveis legais e com as crianças permite perceber dinâmicas e inter-relações dentro de determinado agregado familiar, com uma visão longitudinal ao longo do tempo de acompanhamento. Depois, o exame físico da criança acrescenta alguns detalhes, particularmente em relação aos cuidados que recebe. Também os educadores possuem um papel de grande relevo no acompanhamento diário das famílias e crianças. Uma ressalva ainda relativa às instituições mais directamente envolvidas quando existe sinalização de uma criança, como sejam o Sistema de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI) e suas equipas locais de intervenção (ELI), os núcleos de apoio a crianças e jovens em risco (NACJR) e as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), porque, se nas tragédias lhes procuramos falhas, sabemos com certeza que lhes devemos muitas vidas de crianças salvas e reabilitadas.

Todos estes profissionais e instituições carecem de tempo e recursos humanos. É indubitável que existem sempre melhorias a implementar, lições a tirar, por contraponto a recursos finitos do Estado. No entanto, se tivermos que fazer escolhas estratégicas, não tenho dúvidas que o melhor investimento que podemos fazer é nas experiências precoces das nossas crianças. Como pais e como Estado, o melhor que podemos fazer pelas crianças é garantir ambientes de aprendizagem seguros, positivos e estimulantes desde cedo.

Escolhendo-me, escolho o homem”, escreveu o filósofo Jean Paul-Sartre em 1948. Acredito que existe uma responsabilidade individual quer nas vitórias, quer nas derrotas colectivas. Faltámos à Jéssica, à Valentina, à Joana e a todas as crianças vítimas de violência e negligência, a todas as crianças a quem é negada uma infância de estímulo e protecção. E agora, como nos escolhemos, afinal?

Este texto não está escrito ao abrigo do novo artigo ortográfico.

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