Cineasta Jean-Luc Godard teve morte assistida na Suíça

Agência Lusa , MJC
13 set 2022, 18:24
Jean-Luc Godard em 2019 (Arquivo AP)

Na Suíça, segundo o código penal, é permitido o suicídio assistido. Segundo a família, o cineasta de 91 anos "não estava doente, estava simplesmente esgotado"

O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard morreu com recurso ao suicídio medicamente assistido, na Suíça, revelou a agência France-Presse citando o conselheiro da família.

Jean-Luc Godard, 91 anos, "recorreu à assistência legal na Suíça de uma partida voluntária na sequência de múltiplas patologias incapacitantes, seguindo os termos de um relatório médico", explicou Patrick Jeanneret à AFP.

A informação do suicídio medicamente assistido foi divulgada pelo jornal francês Libération, citando uma fonte próxima da família que disse que o cineasta "não estava doente, estava simplesmente esgotado".

Na primeira notícia sobre a morte de Jean-Luc Godard, a AFP citava um comunicado da família, no qual se lia que o cineasta morreu pacificamente em casa, em Rolle, na Suíça, e que não está prevista qualquer cerimónia pública.

Na Suíça, segundo o código penal, é permitido o suicídio assistido, com a ressalva de que "aquele que, movido por motivos egoístas, incitar uma pessoa ao suicídio, ou ajudá-la a cometer suicídio, será punido com uma pena de prisão não superior a cinco anos ou uma multa pecuniária", relembra o Libération.

A designação "motivos egoístas", escreve este jornal, deixa uma margem que permite que organizações como a Exit, a Dignitas ou a Life Circle ajudem medicamente uma pessoa a morrer.

Em Portugal, a morte assistida não está tipificada como crime com esse nome, mas a sua prática pode ser punida por três artigos do Código Penal: homicídio privilegiado (artigo 133.º), homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º) e crime de incitamento ou auxílio ao suicídio (artigo 135.º).

As penas variam entre um a cinco anos de prisão para o homicídio privilegiado, até três anos para homicídio a pedido da vítima e de dois a oito anos para o crime de incitamento ou auxílio ao suicídio.

O assunto está em debate no parlamento desde 2018, com avanços e recuos, e já foi alvo de dois vetos: uma primeira vez após o chumbo do Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de fiscalização de Marcelo Rebelo de Sousa. Numa segunda vez, o decreto foi de novo rejeitado pelo Presidente depois de um veto político.

No regresso este mês ao trabalho, depois das férias parlamentares, este é um dos processos legislativos a ser finalizado, em sede de especialidade, com iniciativas de PS, BE, PAN e Iniciativa Liberal, que deixam cair a exigência de “doença fatal”.

PS, BE e IL propõem a eutanásia em situações de “lesão definitiva de gravidade extrema” ou “doença grave e incurável”. Quanto a este último critério, o PAN estabelece a exigência de “doença grave ou incurável”.

Godard: o "pai" da Nouvelle Vague

 O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, um dos principais nomes do cinema desde a estreia de longas-metragens com “O Acossado”, em 1960, morreu, aos 91 anos. Parte fundamental da ‘Nouvelle Vague’ francesa, movimento que revolucionou o cinema a partir dos anos 1950, Godard tem uma longa carreira premiada, que vai desde o galardão de melhor realizador, em Berlim, logo por “O Acossado”, até um Óscar honorário, entregue em 2010 numa cerimónia à qual não compareceu.

Autor de obras influentes para várias gerações de realizadores, como “O Desprezo” (1963), com Brigitte Bardot, “Bando à Parte” (1964), “Pedro, o Louco” (1965) ou os mais recentes “Filme Socialismo” (2010) e “Adeus à Linguagem” (2014), Jean-Luc Godard ficou conhecido “pelo seu estilo de filmar iconoclasta, aparentemente improvisado, bem como pelo seu inflexível radicalismo”, como recorda o jornal The Guardian no obituário do cineasta.

Realizadores como o norte-americano Quentin Tarantino, que chegou a ser cofundador de uma produtora intitulada “Bando à Parte”, referiram-se a Godard como um “libertador”: “Para mim, Godard fez aos filmes aquilo que Bob Dylan fez à música. Ambos revolucionaram as suas formas”, disse Tarantino, numa entrevista de 1994 com a Film Comment.

Controverso em termos políticos e artísticos, a sua obra estava longe de consensual no meio: por exemplo, Paula Rego detestava o seu trabalho e Ingmar Bergman dizia-se incapaz de compreender os seus filmes, uma vez que os considerava “feitos para críticos”.

O texto do Libération sobre Godard abre com uma citação do português Manoel de Oliveira (1908-2015), com quem Godard dialogava em abundância, que dizia que o cinema do autor de “O Maoista” “é a saturação de signos magníficos que se banham à luz da sua falta de explicação”.

Nascido em Paris, em 1930, Godard passou os primeiros anos da sua formação na Suíça, tendo estudado Etnologia na Sorbonne, em Paris, onde “conversas de café com estudantes e um trabalho manual numa barragem” constituíram grande parte da sua aprendizagem, que inspirou a primeira curta-metragem, “Opération Béton”, de 1954, lembra a biografia disponível na Enciclopédia Britânica.

Os estudos em Etnologia vieram a entroncar no trabalho de Jean Rouch, que estava precisamente a misturar a área da antropologia com o cinema num estilo designado ‘cinema vérite’.

“Ele começou a escrever sobre os filmes que via na [revista] 'Cahiers du Cinema' e formou alianças com artistas que se tornariam no núcleo da Nova Vaga francesa. Embora moldada a partir dos filmes de ‘gangsters’ de Hollywood, a estreia de Godard, ‘O Acossado’, desafiou as convenções do cinema e espantou críticos, cineastas e públicos com o seu estilo de improviso, trabalho de câmara ‘handheld’ impulsivo e saltos intencionais”, pode ler-se na biografia disponível na página da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Godard esteve na criação de um coletivo intitulado Dziga Vertov, que, mais do que produzir “filmes políticos”, radicais em termos estéticos, tinha o propósito de “fazer filmes politicamente”, o que impunha a perspetiva em “todo o processo", da produção à rodagem, citava a Cinemateca Portuguesa, na apresentação de um ciclo sobre o grupo, em 2018.

As reações à morte de Godard não se fizeram esperar: o britânico Edgar Wright escreveu, no Twitter, que, apesar de iconoclasta, o realizador “reverenciava o sistema de Hollywood, já que, provavelmente, nenhum outro cineasta inspirou tantas pessoas a pegar numa câmara e começar a filmar”.

A Cinemateca Francesa lembrou Godard através de uma frase: “O cinema não está ao abrigo do tempo. Ele é o abrigo do tempo”.

Festival DocLisboa será dedicado Godard

O Festival Internacional de Cinema DocLisboa, que se realiza de 6 a 16 de outubro, será dedicado a Jean-Luc Godard, "cineasta livre e instigante, comprometido e atento", revelou a direção do festiva  que apresentou hoje a programação completa. 

"A 20.ª edição é dedicada a Jean-Luc Godard, cineasta livre e instigante, comprometido e atento. Devemos-lhe o programa que apresentamos e celebramos a sua vida em cada projeção", sustentou o festival. O DocLisboa conta exibir o documentário "Godard Cinema", de Cyril Leuthy, na secção "Heart Beat".

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