Jafar Panahi é "tratado como um criminoso" porque filma. E por isso ele vai continuar a filmar

4 fev 2023, 18:00
O realizador Jafar Panahi, fotografado em 2006 (GettyImages)

A história de Jafar Panahi é como os filmes dele: merece ser lida tal como os filmes dele merecem ser vistos. E isto que lhe aconteceu não é um filme - mas também é

"Recusar-me-ei a comer, beber e a tomar qualquer medicação até à minha libertação. Permanecerei nesta situação até que, talvez, o meu corpo sem vida seja libertado da prisão." Dizia assim o comunicado em que Jafar Panahi, um dos mais premiados realizadores iranianos, anunciava uma greve de fome. A nota, divulgada pela mulher e pelo filho na quarta-feira, explicava que a ação de protesto iria durar até que o realizador e opositor do regime fosse libertado da prisão onde estava detido há vários meses. O comunicado gerou ecos em todo o mundo e, esta sexta-feira, o realizador de "O Círculo", "Taxi" e "Três Rostos" foi mesmo libertado da prisão. A notícia da libertação surgiu nas redes sociais da família e, ainda que não se saiba em que circunstâncias o realizador poderá gozar desta nova liberdade, o certo é que esta série de acontecimentos volta a destacar o seu papel como uma das vozes mais contestatárias da sociedade e da cultura iranianas, numa altura de grande agitação política e social no país.
 
Ao iniciar a greve de fome que acabou por durar três dias, Panahi, de 62 anos, explicou que o protesto estava relacionado com o facto de se encontrar detido há vários meses na prisão de Evin - um estabelecimento perto de Teerão, conhecido por ser o local para onde são enviados os presos políticos do regime iraniano e sobre o qual têm recaído muitas denúncias de violações de direitos humanos. Descreveu a sua situação como "desumana" e comparou-a a um sequestro.
 
O caso remonta a julho do ano passado, quando o cineasta se deslocou ao gabinete da procuradoria-geral iraniana para, num gesto de solidariedade, protestar contra as detenções de outros dois realizadores, Mohammad Rasoulof (realizador de "O Mal não Existe") e Mostafa Al-Ahmad. Poucos dias antes, estes dois cineastas haviam sido detidos por terem criticado atos de violência policial em manifestações - trata-se dos protestos que se sucederam ao colapso de um edifício em que morreram 41 pessoas. Mas, ao interpelar as autoridades judiciais em defesa dos colegas, Panahi acabaria por ser também ele detido. Não pelo gesto de solidariedade em si, alega a justiça iraniana, mas por causa de uma sentença com mais de dez anos.
 
Em causa, de acordo com as informações prestadas pela justiça iraniana, estava um processo de 2010 no qual Panahi foi condenado por "propaganda contra o regime". Esse julgamento ocorreu depois de em 2009 o cineasta ter apoiado o movimento de protestos contra a reeleição do ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad como presidente do Irão. Panahi acabaria detido em março de 2010 e esteve mais de dois meses na prisão. Foi condenado a seis anos de prisão e a 20 anos de interdição de viajar, filmar ou de prestar declarações aos órgãos de comunicação social.
 
Apesar de condenado, Panahi viu a pena suspensa e acabou por ficar em liberdade condicional. E continuou a desafiar as duras leis de Teerão. Estava proibido de fazer filmes mas nunca deixou de filmar. O que acabaria por levá-lo novamente a enfrentar as autoridades em 2011: ele, que já tinha vencido em 2000 um Leão de Ouro, em Veneza, pelo filme "O Círculo", acabaria por ser novamente detido precisamente por estar a filmar.
 
"Táxi" (2015), de Jafar Panahi, ganhou o Urso de Ouro, no Festival de Berlim
 
Desobedecer ao regime no Irão pode significar a morte num país que, de acordo com as denúncias das organizações internacionais, utiliza execuções sumárias como forma de repressão. Mas no caso de Panahi, este risco significa conseguir fazer chegar ao resto do mundo as múltiplas histórias que se desenham num país autoritário e conservador. Porque através dos seus filmes, que tantas vezes oscilam entre o registo da ficção e o do documentário, o espectador é convidado a conhecer este território de leis rígidas e o contexto político e social não é nem decorativo nem superficial.
 
Em "Táxi", por exemplo, filme de 2015 que venceu o Urso de Ouro no Festival de Cinema em Berlim, o espectador passeia por Teerão num veículo conduzido pelo próprio Panahi e é-lhe proposto que participe em importantes reflexões sobre a política e a cultura do país. Antes, em "Isto não é um Filme", de 2011, rodado quando o cineasta estava em prisão domiciliária, já tínhamos acompanhado as rotinas de um realizador perseguido pelo governo. São filmes proibidos pelo regime e que têm chegado aos mais prestigiados festivais de cinema em operações clandestinas de grande engenho e criatividade - é sobejamente conhecida a história de como "Isto não é um Filme" chegou ao Festival de Cannes, em 2011 - através de uma pen USB escondida num bolo.
 
Se é inegável que no período de grande tensão que viria a culminar na revolução islâmica o cinema iraniano captava com mestria as convulsões sociais e políticas do país, também o é que, nos últimos anos, há uma geração de realizadores, de Panahi, Rasoulof ou recentemente Saeed Roustayi (realizador de "A Lei de Teerão" e de "Os Irmãos de Leila"), que, para lá dos exercícios estéticos ou narrativos do cinema, têm procurado explorar as questões políticas e sociais mais proeminentes, enfatizando o choque entre os costumes e a modernidade dos tempos que vivemos.
 
Mas no caso de Panahi há mais: há uma prova singular de resistência pessoal e artística de alguém que tem sido constantemente perseguido pela justiça. Nos seus filmes assistimos a pequenas histórias que se confundem com a própria história do realizador, num jogo entre realidade e ficção que se torna muitas vezes impossível de dissociar. É o que acontece em "Ursos não há", mais um filme "proibido", que está agora em exibição nas salas de cinema portuguesas depois de ter sido distinguido no festival de Veneza com um prémio especial do júri.
 
Em "Ursos não há", Panahi dá corpo a um realizador que vai de Teerão para uma pequena aldeia junto à fronteira com a Turquia e a partir daí lidera uma equipa de filmagens que está em território turco a retratar o drama de um casal exilado que tenta chegar ilegalmente à Europa Ocidental. Como ele, este realizador não pode ultrapassar a fronteira mas quer estar perto da sua equipa. Uma espécie de autorretrato mas que, para todos os efeitos e porque estamos no Irão, é apenas um filme. E depois está lá tudo, as metáforas e as dicotomias todas: o ambiente ultraconservador que paira sobre o Irão, os costumes e as tradições que ainda dominam as aldeias, as distâncias, para lá dos meros quilómetros, que separam a urbe da ruralidade.
 
Panahi foi libertado esta sexta-feira sob o pagamento de uma fiança mas os contornos sobre o que lhe irá acontecer a partir daqui são ainda dúbios, apesar das múltiplas manifestações de solidariedade internacional que tem recebido. Em outubro do ano passado, e apesar de o realizador ter continuado preso até agora, o Supremo Tribunal do Irão anulou a sentença a que tinha sido condenado em 2010 e ordenou um novo julgamento.
 
O certo é que, mesmo sob todas as proibições, Panahi dificilmente parará de filmar. Porque, nas suas palavras, "a esperança de criar novamente é uma razão para existir". “Somos cineastas, para nós viver é criar. Mas o trabalho que fazemos não só não tem apoios como o governo nos trata como criminosos. Muitos de nós fomos proibidos de fazer filmes, outros foram obrigados ao exílio ou limitados ao isolamento. Ainda assim, a esperança de podermos criar novamente é uma razão para existirmos", escreveu Panahi numa carta dirigida ao Festival de Cinema de Veneza quando estava preso na cadeia de Evin.

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