Pioneiro da imprensa cor-de-rosa, discreto, excêntrico e controlador. O "senhor Jacques" da Impala foi detido aos 83 anos

Bárbara Cruz , Notícia atualizada com testemunhos de antigos funcionários da Impala
23 mar 2023, 22:00

Lançou em Portugal a Nova Gente, a Maria e a TV 7 Dias, foi um pioneiro dos media e fez muito dinheiro com a imprensa do coração. Mas, sabe-se agora, criou um império de fachada e terá lesado Estado e funcionários do grupo Impala em cerca de 100 milhões de euros

"O episódio mais grave de assédio moral que vivi nos meus 18 anos de carreira aconteceu no grupo Impala, precisamente com uma das pessoas detidas esta quinta-feira. Só posso descrever aquela hora em que estive fechada naquele gabinete, sozinha com aquela pessoa, como puro terror." O texto foi publicado no Facebook por Raquel Costa, jornalista e atual diretora executiva da MAGG, e diz muito sobre a forma como se relacionavam funcionários e chefias do grupo Impala, propriedade do empresário Jacques Rodrigues, de 83 anos - que foi detido esta quinta-feira juntamente com o filho, que também se chama Jacques Rodrigues, o advogado Natalino de Vasconcelos e um revisor oficial de contas do grupo, que publica revistas como a Nova Gente, Maria ou TV 7 Dias.

Segundo comunicado da Polícia Judiciária, na operação "Última Edição" estão em causa suspeitas da prática dos crimes de corrupção passiva, corrupção ativa, insolvência dolosa agravada, burla qualificada e falsificação ou contrafação de documentos. A fraude será na ordem dos 100 milhões de euros e os crimes estão relacionados com a insolvência dolosa de várias sociedades, tentativa do empresário Jaques Rodrigues de fugir ao pagamento de dívidas a credores, dívidas estas que estão repartidas entre trabalhadores das empresas, muitos jornalistas das várias publicações e o próprio Estado. 

Raquel Costa foi coordenadora do site da TV7Dias entre 2017 e 2020 e conta que logo no primeiro mês de trabalho não recebeu ordenado. Recorda um plenário, no início do seu percurso na empresa, onde Jacques Rodrigues falou com os trabalhadores descontentes. "Ele era sempre o senhor Jacques. A reverência era um bocadinho incomodativa", admite. E diz que chegou a ouvi-lo dizer a um funcionário com salários em atraso: "Você não tem dinheiro para ter a sua própria casa porque não quer." 

O clima, admite, era "persecutório, de suspeita, de e-mails agressivos" que eram enviados por toda a hierarquia de chefias, "porque este espírito transpira para toda a gente e todos acabam por incorporar a perseguição e delação", recorda. 

"O espírito era bastante tenso e, sendo eu uma mulher jornalista, muito misógino", garante. Com o empresário Jacques Rodrigues, refere, interagiu em algumas reuniões e conta uma história que não será estranha a quem viu o patrão do grupo Impala responder aos deputados em 2021 na Comissão de Trabalho e Segurança Social sobre os problemas na empresa - que se arrastavam há anos. "A mim interrompem-me, mas a vocês não posso interromper", disparava, num tom agressivo. 

Nesta ocasião, uma das deputadas chegou mesmo a pedir-lhe "atenção à linguagem", dizendo-lhe que ninguém o tinha ofendido. Minutos depois, o "senhor Jacques" voltou à carga. "No grupo Impala não existem armaduras, aí para esse lado é que devem existir muitas", ironizava.

O espírito irascível de Jacques Rodrigues era conhecido, e a faceta imprevisível e arrojada também. A revista Sábado cita um artigo do Expresso, de 1992, que recorda que o dono da Impala também foi um dos fundadores da SIC - tinha 6,75% do canal - e que começara naquele ano a construção da casa na Quinta da Marinha que mantém hoje, decorada num estilo excêntrico afro-revivalista a lembrar os tempos que viveu em Angola. Foi em África, precisamente, para onde emigrou, que começou a carreira como editor, onde também foi paginador e começou a lançar revistas, inspirando-se noutras publicações estrangeiras - a Nova Gente, por exemplo, era uma cópia despudorada da espanhola "Gente".

A mansão que tem na Quinta da Marinha foi entretanto arrestada pela Justiça e, ao que apurou a TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), estava já à venda por mais de sete milhões de euros. Tem três andares, sete quartos, dez casas de banho, garagens, piscina e extenso jardim.

Pioneiro e 'self made man'

Jacques Rodrigues foi um vanguardista: na década de 70, abriu caminho no mundo da imprensa cor-de-rosa, por explorar em Portugal, e afirmou-se num segmento pouco valorizado. Notem-se as diferenças para com o tratamento dado a Francisco Pinto Balsemão, fundador do Expresso, com quem pode partilhar o título de barão dos media portugueses e de quem é vizinho na Quinta da Marinha, em Cascais. Mas o dono da Impala sempre foi discreto e avesso à exposição. Não dava entrevistas e só mais recentemente começou a aparecer na gala de atribuição dos prémios do grupo que fundou. Eram raras as ocasiões em que falava publicamente. Apesar da reserva do patrão, sempre foi comentada a sua postura agressiva e despótica dentro da empresa. Causava estranheza, por exemplo, a forma como tratava a filha Paula, o seu braço direito na Impala, por "senhora", e como ela lhe devolvia o tratamento por "senhor". 

"Ele foi pioneiro no negócio dos media em Portugal e ninguém lhe pode tirar o mérito. Mas acho que o tempo dele passou. Como muitas pessoas que conquistam muito poder e são 'self made man', como ele, que veio do nada, não se soube renovar e não soube delegar. Sobretudo, não soube dar a pessoas de fora da família a gestão e o controlo da empresa e foi aí que as coisas correram mal. Estes crimes são de quem perde a noção da realidade", diz Raquel Costa. Sobre o filho homónimo, a ex-jornalista da Impala recorda o Jacques Rodrigues mais novo como uma pessoa "com muito boas intenções".

"Talvez noutro contexto pudesse ser uma pessoa com quem seria bom trabalhar. Pessoalmente, não tenho razões de queixa, era uma pessoa simpática. Mas trabalhava naquele meio e naquela família", acrescenta Raquel Costa. "Era como se vivesse numa gaiola dourada." 

A empresa, refere ainda a antiga funcionária, "tinha tudo para ser saudável financeiramente, mas a gestão é 80% do trabalho". E foi a partir do topo que o grupo Impala começou a ruir. A PJ suspeita que, do dinheiro desviado das várias sociedades criadas por Rodrigues, dezenas de milhares de euros foram colocados em offshores. 

"Jacques Rodrigues viveu numa espécie de chico-espertismo de gestão de empresas, à medida que os problemas iam surgindo abria empresas e transferia ativos, colocava as despesas numa segunda empresa que não pagava", disse Carlos Rodrigues Lima, jornalista da revista Visão, à CNN Portugal. Estima-se que o patrão da Impala tenha desviado quase 70 milhões dos cerca de 100 milhões de euros em dívidas que deixou por pagar aos credores. 

A guerra contra a Electroliber e o secretismo de gestão

Tudo começou em 2008, numa guerra de Jacques Rodrigues contra a Electroliber, empresa que tinha exclusividade na distribuição das revistas da Impala. "A certa altura ele quis comprar a empresa, não conseguiu. Depois tentou asfixiá-la retirando-lhe a distribuição das revistas, a empresa foi para tribunal e a partir daí foi uma sucessão de esquemas contabilísticos, de simulação de negócios, de dação e emissão de cartas de assunção de dívida, transformação de dívida em capital. Ao mesmo tempo, o que se suspeita é que, com este esquema, que já dura há muitos anos, conseguiu dissipar a maior parte do seu património para fugir aos credores", explica Carlos Rodrigues Lima.

Enquanto o dono da Impala criava uma teia de empresas que prestavam serviços entre si, transferindo ativos, havia trabalhadores com salários por receber há mais de dez anos e a denunciarem o recurso ao Plano Especial de Revitalização (PER) - o primeiro, lembra a revista Sábado, foi pedido em 2015 pela DescobrirPress (empresa criada pelo fundador da Impala para transferir despesas) e o montante em dívida estava em 50,2 milhões de euros, 6,5 milhões só a funcionários. A empresa, escreve a Sábado, pedia um perdão de 95% da dívida e os restantes 5% pagos nos 17 anos seguintes. O PER foi aprovado, mas a Lisgráfica e o banco Primus recorreram porque consideraram que a insolvência seria mais vantajosa para a empresa e o Tribunal da Relação deu-lhes razão. No total, Jaques Rodrigues avançou com três PER, havendo agora suspeitas sobre os administradores judiciais que geriram os processos de falência das empresas do fundador do grupo Impala.

Questionada sobre o 'timing' das detenções, Raquel Costa, ex-funcionária da Impala, é contundente: "Não percebo como é que não aconteceu antes, isto dura há anos, toda a gente sabe, o poder político sabe", critica. "É verdade que as investigações demoram anos, mas foi muito conveniente a muitas pessoas, durante muitos anos, que isto fosse passando. E acho que é importante reforçar que houve muita gente, nomeadamente políticos, que ascenderam mediaticamente graças às revistas do grupo Impala. O senhor Jacques construiu a carreira política de muita gente. Antes de haver comentário político, as revistas cor-de-rosa foram palco para muita gente se promover e criar uma imagem de maior proximidade. E continuam a ser as revistas mais lidas", salienta a jornalista. 

"Há uma história em comum com o grupo Impresa, onde também houve sucessão familiar, mas são grupos que nasceram na mesma altura e seguiram direções completamente diferentes. Este escândalo financeiro não rebentou há mais tempo por causa do secretismo, a forma como conseguiram criar uma rede de segredos na Impala", reflete Raquel Costa. 

O "pequeno ditador"

Rosa Raposo foi rececionista no edifício da Impala, em Ranholas, Sintra, durante 20 anos. Saiu em 2020, em mais um despedimento coletivo, sem indemnização, ainda com meio salário em atraso. Questionada pela CNN Portugal sobre a detenção do antigo patrão, não se retrai: “Fiquei contente”, admite. "A justiça tarda, mas não falha". Quase com 58 anos, o despedimento deixou-a numa situação difícil, mais ainda pelo incumprimento da empresa até ao final. "A única coisa que recebemos foi o fundo salarial", revela. "E arranjar trabalho nesta altura é muito difícil".

Luís Peniche, antigo jornalista da Impala, recorda sobretudo as "explosões de feitio" de Jacques Rodrigues, que descreve como uma pessoa "prepotente" e "um pequeno ditador". Também saiu da empresa de mãos a abanar.

"Mesmo que não receba um cêntimo de indemnização, que se faça justiça", diz à CNN Portugal. E outra ex-trabalhadora do grupo, que não quis ser identificada, lembra a vida de luxo da família Rodrigues, perante as dificuldades dos funcionários que sobreviviam mal aos constantes atrasos no pagamento da remuneração. 

“Era muito chocante, ver colegas que tinham sido despedidos, e a família continuava a deslocar-se em grandes carros, de alta cilindrada. Havia pessoas que recebiam 700 euros por mês”, conta.

Jaques Rodrigues teve, segundo a revista Sábado, nove filhos, o mais novo com 13 anos, de quatro mulheres diferentes. As mães dos filhos assumiram papéis de algum relevo no grupo Impala e o filho Jaques "Júnior", que também foi detido esta quinta-feira, aparenta ser o seu sucessor na liderança. A Sábado refere que outros filhos estão envolvidos em negócios imobiliários do empresário no Brasil e que a atual namorada é mesmo a diretora de marketing na Impala. 

À hora do fecho deste artigo, não se conhecem as medidas de coação dos quatro detidos na operação "Última Edição" mas, apesar da idade, e dada a gravidade das acusações, Jaques Rodrigues poderá mesmo ficar em prisão preventiva.
 

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