Como o copo manchado de batom de Jackie Kennedy se tornou um ícone no Camboja

CNN , Lilit Marcus
26 out, 17:00
Jackie Kennedy

Em 1967, quatro anos depois de o marido, o presidente John F. Kennedy, ter sido assassinado e de ela se ter tornado na viúva mais reconhecida do mundo, Jacqueline Kennedy visitou o Camboja.

Quando chegou à capital, Phnom Penh, em plena guerra que marcou uma geração, não havia dúvidas sobre onde ficaria hospedada - o Hotel Le Royal, o local mais requintado da cidade. Inaugurado em 1929 pelo então rei Sisowath Monivong, o hotel fazia jus ao seu nome.

Em honra da visita da ex-primeira-dama, o barman do hotel criou um cocktail especial: o Femme Fatale. Feito com conhaque, champanhe e crème de fraise, e decorado com uma flor de frangipani, é servido numa taça de pé alto. É efervescente, elegante e a bebida perfeita para os turistas se refugiarem do clima quente e húmido de Phnom Penh.

Quatro décadas depois, muito mudou no hotel — mas o Femme Fatale continua no menu do bar.

A história não acaba aqui.

Grande parte das peças mais luxuosas do hotel foi armazenada após a brutal guerra civil que o país viveu, permanecendo intocada. Depois de a propriedade ter sido comprada pelo grupo Raffles em 1996, um trabalhador terá encontrado o copo exato de que Jackie Kennedy bebeu o seu Femme Fatale — identificado por uma marca de batom no rebordo — e salvou-o durante as renovações do hotel.

Agora, o copo, juntamente com algumas fotografias da viagem de Jackie Kennedy a Phnom Penh, está exposto numa vitrina junto ao bar do hotel.

O hotel tem também uma suíte Kennedy, onde um retrato da ex-primeira-dama parece olhar com admiração para os lençóis impecavelmente brancos e para o chão de azulejo. Uma edição vintage da revista Life sobre a viagem de Jackie Kennedy ao Camboja, comprada pelo Raffles, está sobre uma mesa no corredor, aberta na página certa.

De primeira-dama a celebridade global

“Chamo a esse período da vida dela o de transição”, afirma Elizabeth J. Natalle, autora de Jacqueline Kennedy and the Architecture of First Lady Diplomacy, referindo-se aos anos que viveu entre a Casa Branca e o segundo casamento.

Nessa altura, Jackie era, provavelmente, a mulher mais famosa e comentada do planeta. A sua vida amorosa era tão escrutinada quanto o seu guarda-roupa.

A acompanhá-la na viagem estava David Ormsby-Gore, um aristocrata britânico e ex-embaixador do Reino Unido nos Estados Unidos. Visitaram juntos Angkor Wat, o imenso complexo considerado Património Mundial pela UNESCO no norte do Camboja.

Embora tenham mantido a relação discreta na época, cartas leiloadas após as suas mortes revelaram a profundidade do amor entre ambos — incluindo o facto de Jackie ter recusado um pedido de casamento.

Natalle acredita que Kennedy começou a sofrer de stress pós-traumático não diagnosticado, após testemunhar o assassinato do marido. Mas, apesar de recear a ideia de desfilar num carro descapotável — tal como aquele em que ia a 22 de novembro de 1963 —, aceitou fazê-lo como gesto de boa vontade para com o príncipe Sihanouk, o seu anfitrião no país do Sudeste Asiático.

Sim, era uma celebridade, mas não uma política. Por isso, detinha um tipo único de “soft power”, nota Natalle. Como viúva, possuía uma dignidade respeitada, e como já não era primeira-dama, a sua posição era neutra.

“O soft power é o antídoto da política militar e da diplomacia governamental oficial”, explica Natalle. “As primeiras-damas têm um tipo de credibilidade apenas por o serem. Não fazem parte oficial do governo, não têm uma descrição de funções, não estão na Constituição.”

A vitrine com o copo onde Jackie Kennedy terá bebido o cocktail está exposto no Elephant Bar. (Kevin Izorce/Alamy Stock Photo)

Embora visitar o Camboja enquanto a guerra apoiada pelos EUA alastrava no Vietname pudesse parecer um gesto político, Jackie insistiu que estava apenas no país para visitar Angkor Wat e outros locais históricos.

A sua viagem foi uma atuação cuidadosamente orquestrada. A oposição pública à Guerra do Vietname estava no auge, e as relações oficiais entre os EUA e o Camboja tinham sido cortadas em 1965. Como resultado, Jackie Kennedy precisou de um convite oficial do rei para entrar no país.

Depois, havia a questão logística. Não existiam voos diretos entre os Estados Unidos e o Camboja — algo que continua a ser verdade até hoje. A solução encontrada foi voar num voo comercial até Banguecoque, sendo depois transportada para Phnom Penh num C54 da Força Aérea dos EUA, que recebeu permissão especial para aterrar.

Francófona, Jackie ajudara o marido durante a carreira política ao traduzir livros e discursos franceses, incluindo material sobre o Camboja, que fizera parte da Indochina Francesa. Segundo Natalle, era conhecida por conceder entrevistas e acesso a jornalistas francófonos durante as suas viagens, mesmo quando ignorava os de língua inglesa.

E há muito que era conhecida como amante da história, da arte e da arquitetura, algo que também se refletia em visitas semelhantes a países como a Grécia e a Espanha durante o seu “período de transição”.

“Ela interessava-se por civilizações antigas”, explica Natalle. “Angkor Wat provavelmente fazia parte disso. Era a forma de elogiar os anfitriões e o próprio local como algo de grande significado.”

Um hotel em mudança para um Camboja em mudança

Situado perto das margens do rio Tonle Sap e a cerca de três quilómetros do Palácio Real, o Hotel Le Royal teve muitas vidas.

Sobreviveu ao período mais sombrio da história moderna do Camboja, quando o regime ultra-maoista Khmer Rouge controlou o país. Entre 1975 e 1979, pelo menos 1,7 milhões de cambojanos foram mortos pelo regime. Muitos foram forçados a sair ou fugiram de Phnom Penh para o campo.

O Elephant Bar no Raffles, Phnom Penh. (Lilit Marcus/CNN)

Após os anos de liderança do Khmer Rouge, o Hotel Le Royal foi rebatizado como Solidarity Hotel e acolheu jornalistas internacionais e trabalhadores humanitários que chegavam ao país. Quando o grupo Raffles comprou o hotel nos anos 1990, decidiu recuperar o nome original: Raffles Hotel Le Royal.

Passados todos estes anos, o Raffles Le Royal continua a ser um local importante em Phnom Penh. Angelina Jolie, Charlie Chaplin e Charles De Gaulle também lá ficaram hospedados.

Em 2012, o presidente norte-americano Barack Obama visitou o Camboja como última paragem de uma digressão diplomática pelo Sudeste Asiático e foi fotografado sentado num sofá do Raffles, a falar ao telefone.

Não estava, porém, na Suíte Kennedy.

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