"Isto é assustador" e "depois é um problema recuperar o bom nome": quando a Justiça devassa a nossa vida por causa de uma denúncia anónima "inconsistente"

8 out, 07:00
Ivo Rosa. Foto: Mário Cruz/Pool/Getty Images

ANÁLISE || Um inquérito-crime com base numa denúncia anónima devassou durante três anos a vida privada do juiz Ivo Rosa - houve quebra de sigilo bancário e também fiscal, acesso à faturação detalhada do telemóvel e vigilâncias no terreno. Não foi encontrado nada de incriminatório, o juiz só soube do sucedido quando foi confrontado pela TVI / CNN Portugal. Portanto: o caso Ivo Rosa não é apenas um caso - que por si só já é um caso grave, gravíssimo; mas é mais do que isso porque se trata do caso de deixarmos de confiar na maneira como a Justiça atua - e é preciso falar sobre isso. Porque está a ficar "dramático"

O bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, lamenta a “intrusão indiscriminada” e “prolongamento por um largo período” do processo que devassou a vida do juiz. João Massano sublinha que o problema não é “gostar-se ou não de juízes” - é “não percebemos as razões pelas quais as coisas acontecem”, neste caso a investigação de três anos a Ivo Rosa com base numa denúncia anónima com “descritas inconsistências”, tal como é assumido pelos próprios investigadores. O bastonário sublinha que alguém ser investigado ao longo de vários anos sem explicação percebida “não é bom para as instituições” — neste caso as instituições Ministério Público e Procuradoria-Geral da República.

José Pedro Mozos, especialista em Comunicação Política, considera que este “caso delicado” tem um efeito imediato na confiança pública naquelas instituições. Entende também que há “uso e abuso da denúncia anónima” e que o Ministério Público “tem muito poder que deve usar com parcimónia”. Por isso: pede que haja método na resposta, ou seja, “triagem” logo à entrada para decidir cedo se há inquérito, se fica em averiguação preventiva (verificação preliminar, sem acusação) ou se não há seguimento — “cabe ao Ministério Público averiguar se existem indícios suficientes para dar credibilidade à denúncia anónima e ver se ela se converte de facto em inquérito”, evitando mobilizar meios pesados sem lastro. “O poder do Ministério Público deve ser, por norma, o de escrutinar todos. Mas não é ilimitado. Não podemos, à boleia de cada denúncia anónima, investir todos os recursos e todas as pessoas que temos ao nosso dispor para ir atrás dessas denúncias. É preciso uma triagem melhor do que se investiga.”

A partir daqui, olhamos para a denúncia anónima na origem do caso — e que na Justiça não é caso único. Denuncia-se demasiado de forma anónima no país? João Massano reconhece dois lados. Por um, a utilidade para proteger quem arrisca represálias: “É difícil denunciar de forma identificada. Claro que poderá haver tentativa de silenciar ou intimidar. Portanto, nesse aspeto, a denúncia pode e deve ser anónima para proteção das pessoas.” Por outro, a instrumentalização “em momentos politicamente sensíveis”, muitas vezes com “finalidade política tremenda”. A solução que propõe tem duas chaves: rapidez e, sobretudo, sigilo — “investigar com o máximo sigilo e rapidez para que não chegue ao conhecimento público”, porque “o conhecimento generalizado causa grande prejuízo”.

João Massano aponta ainda um vazio: sendo anónima, uma denúncia caluniosa “não permite responsabilizar quem a fez”. E mudar a lei para se vir a punir o denunciante: é possível, faz sentido? O bastonário vê risco de “matar a boa denúncia por medo, esse é o risco do sistema das denúncias anónimas”. Prefere responsabilizar as fugas na origem: “teria de ser uma equipa bem limitada a fazer a análise, para se evitar a divulgação” — e com acesso “protegido e rastreável”. Defende, além disso, “uma conservação limitada desses elementos durante um prazo bastante curto — três, quatro, cinco anos no máximo”. Se, apesar disso, o segredo cai, “tem de se responsabilizar quem investiga”. A lógica é simples: a celeridade é importante mas o sigilo é ainda mais importante. “A única forma de proteger [o visado e o denunciante] é fazer a investigação o mais sigilosa e célere possível, porque o problema destas coisas, muitas vezes, é a dimensão pública que ganham.”

Segue-se o poder do Ministério Público e da Procuradoria-Geral da República na análise. João Massano vê desgaste quando a Justiça não explica o que faz. “A ausência de posição dos agentes leva a que os outros digam o que querem”, o que cria generalizações — como a “morosidade” — a partir de “megacasos televisivos” que não representam “a esmagadora maioria” dos processos.

É daqui que nasce a generalização que cola à Justiça a etiqueta de morosa, quando não é morosa. Falta comunicar melhor. “Isso, para mim, é dramático para a Justiça: a ausência de contraditório, de comunicação da posição dos agentes, leva a que fique na praça pública única e exclusivamente uma versão da história que até pode nem estar a ser contada de forma correta.” João Massano pede mais literacia (na sociedade) e explicações objetivas (dos gabinetes) no tempo certo: “O que fundamenta medidas intrusivas, quem autoriza, com que finalidade probatória e com que prazos”.

Já no que toca ao lado político, José Pedro Mozos resume o princípio operativo: reformar. “Se calhar é preciso reformar a Justiça, sim. Acredito que, para a opinião pública, já não haja salvação. Mas isso, mais uma vez, não deve entorpecer os decisores políticos: é preciso coragem para olhar para o tema porque já houve várias denúncias anónimas com maior ou menor influência no sentido de voto. As denúncias anónimas contaminam ou podem contaminar a forma como se faz política. Empobrecem o debate político.”

Os casos de Costa e Montenegro (e o silêncio de Marcelo)

João Massano esclarece o léxico processual que confunde o público: averiguação preventiva e processo-crime não são a mesma coisa. Na primeira “ainda não há nada que permita identificar a existência de um crime”; no segundo já se entende que há elementos que indiciam crime e agente, “o que pode justificar atos intrusivos proporcionais”. A passagem de uma fase para a outra “não tem receita única, porque cada investigação é uma investigação e tem os seus meios e os seus contratempos”, mas tem de ter critérios comunicáveis: que indícios sustentam a mudança, que diligências se justificam, quem autoriza e para quê. Sem esse quadro, instala-se “uma perceção de arbitrariedade”. “Agora, uma coisa é certa: logo à partida, a averiguação preventiva retira do suspeito — do investigado, pelo menos — algum peso na opinião pública. Quando há processo-crime, como neste caso do juiz Ivo Rosa, já há um peso em cima. Mas não é por ser constituído arguido e haver acusação que ele é culpado”, conclui e sublinha João Massano.

Chegamos então à separação de poderes. José Pedro Mozos diz que o discurso sobre isso mesmo, a separação de poderes, é necessário e deve ser “sobretudo repetido quando essa separação parece ameaçada”. Mas com um cuidado: “Falei em reforço da Justiça. Não se deve reformar à boleia de casos” porque decisões a quente “costumam correr mal e não resolvem problemas de fundo”. Identifica o dilema para quem governa — se se mexe arrisca-se “a crítica de legislar a quente”; se se espera, então “outro caso ocupa o espaço e adia tudo”.

João Massano liga a separação de poderes às garantias do processo: quanto mais intrusiva a medida, mais robusto deve ser o fundamento, com trilho de auditoria para saber quem decidiu o quê e quando. “A independência judicial não é um privilégio corporativo, é uma garantia do cidadão. Mas fico sempre preocupado quando algo acontece que indicia a existência de atuações que não são bem compreendidas por todos nós. Sempre me preocupou a possibilidade de haver uma intrusão indiscriminada na vida das pessoas sem grande justificação e o prolongamento por um largo período de tempo parece-me algo que assusta qualquer um. É indispensável recuperar as instituições e explicar, de forma clara para todos, o porquê de determinadas atuações.”

Entram os exemplos: casos recentes (e anteriores ao caso Ivo Rosa) que abalaram os alicerces da separação de poderes e levantaram discussão sobre quanto poder cabe na Procuradoria-Geral da República. Primeiro, Spinumviva. Está em averiguação preventiva e a demora preocupa Massano: “Não é agradável para um primeiro-ministro um processo sem desfecho, tanto mais que aparentemente não tem a complexidade do Marquês ou do BES. Pessoalmente, não consigo compreender como é que o caso Spinumviva demora tanto tempo a chegar a uma conclusão — mas, se calhar, é limitação minha.”

João Massano vê aqui um problema de meios, método e prazos: é preciso decidir cedo o caminho (se a matéria da averiguação é matéria criminal) e “fechar depressa quando não há matéria”. José Pedro Mozos aproveita para lembrar o efeito político do tempo: “A demora também tem influência política.” Porque “mantém o tema no espaço público” e “pesa na leitura do Governo”. “Mas uma averiguação preventiva — seja lá isso o que for — pode ser boa se isso for uma forma de evitar que o Ministério Público atue desmesuradamente num caso que não o justifique, como a Operação Influencer.”

Falemos, portanto, da Operação Influencer. O bastonário recorda “o famoso parágrafo” revisto no gabinete da procuradora Lucília Gago que “levou à queda de um Governo de maioria absoluta” e nota que “a razão desse parágrafo ainda hoje se percebe mal”. “As pessoas não têm conhecimento do que se passou — mas falam como se tivessem, com base em notícias de jornal”, lamenta. Não entra na prova, ou falta de prova; fixa o efeito público e a necessidade de explicação. José Pedro Mozos aponta a outra face: “ali”, na Operação Influencer, a intervenção “foi rápida e disruptiva”; “aqui”, no caso Spinumviva, a verificação “é longa e difusa”. Postas lado a lado, duas respostas muito distintas num intervalo curto alimentam perceções de “dois pesos e duas medidas”, aponta José Pedro Mozos. E acrescenta: “O tratamento foi completamente diferente. E isso empobrece a confiança nas instituições.”

Por fim, do caso Ivo Rosa, ou a partir deste, é preciso considerar outras leituras políticas — do silêncio de Marcelo Rebelo de Sousa (silêncio que durou uma semana e que foi quebrado esta terça-feira à noite, após ter sido interpelado pelos jornalistas) ao efeito das denúncias anónimas (que podem ser “arma”) e ao terreno para o protesto, sendo que o “protesto” tem um nome: Chega. Começando pelo Presidente, que não comentou durante uma semana. “Tudo aquilo que um Presidente da República faça ou não faça pode ter leitura política”, diz José Pedro Mozos, que admite razões conjunturais — “período eleitoral, fim de mandato, prudência depois de precipitações” — e afasta a ideia de indiferença: “Não me parece um silêncio de quem esteja a ignorar o assunto. Mas o caso vai obrigar os responsáveis políticos, e não só Marcelo, a pronunciarem-se, mais tarde ou mais cedo.” Marcelo fê-lo desta maneira esta terça-feira.

No mesmo plano, a denúncia anónima surge “em momentos politicamente sensíveis”, reconhecem os dois, João Massano e José Pedro Mozos. “É difícil não estabelecer alguma relação de causa-efeito — embora devamos ter cuidado com isso. Agora, há obviamente um uso e abuso da denúncia anónima por parte de quem a faz e, muitas vezes, mais do que peso político existe motivação política por trás dessas denúncias”, considera José Mozos.

Já João Massano entende isto: “Temos tido um proliferar de denúncias anónimas relativamente a pessoas públicas, a figuras bem conhecidas, como o senhor primeiro-ministro, o ex-secretário-geral do PS, agora o juiz Ivo Rosa, e outras que nem sabemos. Parece-me que não se pode deixar de salientar que, muitas vezes, a finalidade política é tremenda — e toda a gente a compreende pela forma e pelo momento em que acontecem. Quando é caluniosa a denúncia, quando não tem qualquer fundamento, o seu bom nome fica prejudicado — e, depois, recuperar o bom nome é um problema.”

Quando a Justiça comunica pouco ou tarde, abrem-se portas à desconfiança e a quem a capitaliza. “Há sempre quem capitalize o descontentamento”, nota José Pedro Mozos — e isso favorece forças que se apresentam “como de protesto”. O Chega. Sobretudo. “Já não me lembro da última campanha que não tenha tido um caso ou casinho. Esta sensação [de desconfiança] tem um único verdadeiro beneficiado no meio, por oportunismo político ou estratégia política. Quando fazemos a equação e vemos o resultado final, percebemos que há, sistematicamente, um beneficiado — e isso também nos devia fazer pensar. Podemos discutir se a reforma da Justiça é necessária, se está atrasada, se as leis que temos hoje acompanham os tempos. Mas aconselho que não se faça isso à boleia de casos e casinhos.”

“Descritas inconsistências”

Uma denúncia anónima com “descritas inconsistências” abriu a porta a um inquérito-crime que devassou a vida bancária, fiscal e pessoal de Ivo Rosa: quebra de sigilos, acesso à faturação detalhada e geolocalização do telemóvel, vigilância no terreno pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ.

O processo 58/21.9TELSB arrancou no pico da Operação Marquês — decisão instrutória anunciada a 9 de abril de 2021 —, permaneceu sob sigilo imposto pelo PGR Amadeu Guerra e foi arquivado discretamente a 20 de março de 2024. Só a 3 de setembro deste ano foi autorizada a consulta de pouco mais de duas páginas do despacho, onde se confirma a origem anónima e a falta de credibilidade da denúncia. Entre as suspeitas: compra de um Audi TT com trinta mil euros em numerário, ligações a um empreendimento imobiliário, “nomeação de favor” para o IRMCT e convívios com um advogado ligado ao Marquês; acusações que nunca passaram o teste da prova. O CSM e a ASJP mantiveram silêncio; juristas como Nuno Brandão e Rogério Alves alertam para o risco do uso abusivo de denúncias anónimas. Ivo Rosa, que nunca foi chamado ao inquérito, fala em “grave intromissão” e ameaça à independência judicial e ao Estado de Direito.

Em paralelo, outro inquérito — nascido de escutas num processo de tráfico — insinuou corrupção passiva: a tese de que um detido teria mobilizado “algumas centenas de euros” para subornar o juiz. O DCIAP abriu o 271/21.9TELSB (depois 110/21.OTRLSB), avançou com segredos de Justiça, escutas e vigilâncias; o alvo direto não foi o magistrado, mas o alegado traficante, familiares e namorada. Meses de interceções nada trouxeram: as conversas sobre dinheiro apontavam afinal para “trabalhos” de um bruxo identificado como Demba Camará, na Guiné-Bissau. O caso encerrou sem indícios e, tal como no primeiro, sem que o juiz fosse ouvido. Resultado combinado dos dois trilhos: três anos de investigações extensas, vida privada devassada e zero prova de crime.

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