opinião
Jornalista

E ainda o caso Ivo Rosa, com enquadramento q.b. e várias questões

6 out, 13:41
Ivo Rosa. Foto: Mário Cruz/Pool/Getty Images

Nos anos em que o juiz Ivo Rosa esteve colocado pela segunda vez no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), entre 2015/22, ocorreu uma autêntica guerra com a magistratura do Ministério Público (MP), sobretudo com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Começou lentamente, mas foi subindo de intensidade e tornou-se quase insuportável de assistir nos últimos anos. 

Basta ver o que sucedeu no desenlace da instrução da operação Marquês, mas também em muitos outros processos, dos casos EDP à Máfia do Sangue, do processo Tap/Sonair a operações encobertas de tráfico de droga, de inquéritos de terrorismo às investigações angolanas e outra criminalidade económico-financeira. O juiz teve muitas vezes interpretações legais substancialmente diferentes do MP ao nível das escutas telefónicas e da sua duração, mas também sobre o segredo dos processos administrativos, sobre as apreensões e arrestos financeiros, os transvazes de documentação e correio eletrónico entre processos, e as medidas de coação, especialmente sobre as cauções e o regime de prisão preventiva. Enfim, o juiz questionava muitas vezes a forma como o MP chegava aos meios de prova, como a utilizava e também como fazia a valorização de vários indícios. 

Um mundo o separava do MP e teve de ser, muitas vezes, o Tribunal da Relação de Lisboa a dirimir estes conflitos. Verdade seja dita que, em muitas ocasiões, Ivo Rosa perdeu em toda a linha em muitos recursos decididos por diferentes juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa. Na justiça, há quem se revolte pelo facto de os jornalistas terem andado a contar ao longo dos anos todas estas histórias e também as vezes que o juiz Ivo não teve razão nas decisões que tomou. Houve até quem criticasse fortemente os jornalistas argumentando que tinham preferências em relação a outro juiz também colocado no TCIC, Carlos Alexandre.

O certo é que os jornalistas se limitaram a apurar informação sobre uma dualidade judicial (e os seus múltiplos casos) que foi responsável pelo fim do Tribunal Central como existia quase desde a sua fundação. De um lado, o juiz Ivo Rosa, que era louvado por quase todos advogados e odiado por muitos procuradores, do outro, o juiz Carlos Alexandre, odiado por advogados, arguidos e suspeitos, e bem visto pelo MP e as polícias – e, já agora, com decisões nos processos quase sempre sufragadas a seu favor pelos tribunais superiores. Outro ponto a ter em conta neste enquadramento, também os dois juízes não se suportavam mutuamente, ao ponto de se digladiarem nos próprios processos, mas também em privado.

Durante este período, ambos os juízes se queixaram um do outro ao Conselho Superior da Magistratura, ambos foram objeto de denúncias anónimas e processos criminais. Um dos juízes, Carlos Alexandre, foi investigado até porque alegadamente teria assediado uma advogada tentando apalpar-lhe as mamas. Tudo aconteceu realmente naqueles últimos tempos conturbados no Tribunal Central. E se tudo isto não era notícia, não sei o que seria.

O papel do jornalismo é de fiscalização pública, de transmissão de informação, esteja ela onde estiver e vise quem visar. Isso é feito num certo momento (mais ou menos em cima do acontecimento) e sem possibilidades de adivinhar o futuro. E nesta tarefa é importante que instituições públicas como as polícias, o Ministério Público e os tribunais sejam parte da transparência que os cidadãos exigem numa democracia liberal. Todos sabemos que este acesso à informação judicial se deve fazer com regras, o que não pode suceder é que essas regras (neste caso, as disposições da lei penal e processual penal) sejam utilizadas sem equilíbrio e bom senso. Se em muitos casos os jornalistas obtêm autorização para consultar processos arquivados, inclusive sem que tenha sido feita a constituição de arguido de quem quer que seja, noutros, porque implicam certas e determinadas pessoas ou instituições, é-lhes completamente vedada o acesso com a justificação que prevalece sempre o direito à reservada da vida privada e da intimidade em relação à liberdade de informação.

Como é possível justificar que um processo seja mantido em sigilo absoluto, seja um qualquer caso ou aquele que se passou com o juiz Ivo Rosa, que implicou alegadamente vigilâncias policiais, o acesso à faturação detalhada e quebras do sigilo bancário e fiscal? Dificilmente isso se compreende, mas está a tornar-se uma prática reiterada da magistratura do MP e dos juízes. É preciso não esquecer que as magistraturas têm a possibilidade de expurgar dos inquéritos o tipo de informação pessoal (o conteúdo de eventuais escutas, os dados bancários e fiscais concretos e por aí adiante) dos alvos das investigações, arquivadas ou não. E não deviam poder argumentar que todo o processo cabe na reserva da vida privada. Isso leva a uma degenerescência do sistema de fiscalização pública dos processos, pois não permite aos jornalistas (ou a qualquer cidadão) verificar o que é que foi ou não feito, o que é que foi ou não decidido pelo MP e por juízes de instrução (e tendo por base que tipo de suspeitas), como precisamente sucede do caso do juiz Ivo Rosa. Ou noutros como o que se passou no inquérito do DCIAP que visou entre 2018/20, este sim com escutas telefónicas, o então presidente do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República Portuguesa, Abílio Morgado.

A fiscalização pública dos inquéritos criminais, com acusação ou arquivamento, é um imperativo democrático que deve compatibilizar a reserva da vida privada e a liberdade de informação. Será ou não importante conhecer o conteúdo exato de uma certa denúncia anónima sobre alguém para perceber se certas e determinadas medidas de intrusão tiveram ou não sentido, independentemente de terem sido pedidas e decretadas por um juiz de instrução? Será ou não importante saber quando começou exatamente uma investigação e o que é que foi feito em concreto nessa investigação pela magistratura judicial e do MP e os órgãos de polícia criminal? E quem foram os responsáveis exatos por essas decisões? Será ou não importante saber que interpretações do processo (denúncia, indícios, etc) fizeram, por exemplo, os procuradores do DCIAP, da Procuradoria Distrital de Lisboa e da Procuradoria junto do Supremo? Será ou não importante saber os termos concretos de um arquivamento ou de uma acusação?

Seja no caso do juiz Ivo Rosa ou noutro qualquer, será ou não importante saber se um processo esteve ou não sem diligências durante meses ou anos? Se mudou de procurador inúmeras vezes, se existiam visões distintas entre as polícias e o MP, se um procurador escreveu que ia mandar constituir certos arguidos e depois nunca o fez sem dizer porquê? Será ou não importante saber que um órgão de polícia criminal conseguiu que fosse colocado um número fixo sob escuta e apanhou milhares de conversas de todo uma empresa? Será ou não importante saber que podem ser enviadas sucessivas cartas rogatórias para jurisdições, já se adivinhando uma não resposta, e nesse tempo interminável nada mais ser feito no processo? Será ou não importante saber porque é que um inquérito se prolongou durante 9, 10, 11 e mais? É que tudo isto já aconteceu – e acontece – na justiça portuguesa.

É essencial que os magistrados não contribuíam para esta nebulosa que nada de bom traz à justiça portuguesa. A começar pelo Procurador-Geral da República. E também é desejável que exista uma comunidade ativa que não fique em silêncio nestes casos, mesmo quando os políticos insistem em assobiar para o lado porque lhe dá algum jeito. O segredo é sempre a pior opção, a transparência permite que todos (mesmo todos) tenham a possibilidade de tomarem decisões melhor informados. 

Colunistas

Mais Colunistas