No despacho da acusação, a que a CNN Portugal teve acesso, estão descritos cada um dos acidentes que se registaram na A1, ao quilómetro 60, junto à Póvoa da Isenta, em Santarém. Os três acidentes estão pormenorizados no despacho e daí se conclui que nenhum dos condutores conseguiu travar e, desta forma, evitar o desfecho trágico: a morte de Sara Carreira
Ninguém travou. Esta é a conclusão do despacho de acusação do Ministério Público sobre a sequência de três acidentes que envolveram quatro viaturas e resultaram na morte da cantora Sara Carreira, de 21 anos, a 5 de dezembro de 2020.
Eram cerca das 18:30, “numa noite escura, sem luar e com períodos de chuva fraca”, “numa curva ligeira à direita” mas com “visibilidade superior a 400 metros” que a série de acidentes aconteceu, descreve o documento. O pavimento estava “em bom estado de conservação” e “não se verificava acumulação de água sobre a via”, descreve a acusação do Ministério Público, a que a CNN Portugal teve acesso.
A sucessão de acidentes ocorreu devido, em primeiro lugar, à circulação a cerca de 30 quilómetros por hora (o limite mínimo nas autoestradas é 50 quilómetros por hora) de uma viatura ligeira conduzida por Paulo Neves, que estava embriagado, tendo vindo a acusar uma taxa de alcoolémia “de, pelo menos 1,18 g/l (deduzida a margem de erro admissível)”, lê-se no texto da acusação. É o dobro do permitido por lei. O Ministério Público não tem dúvidas de que tinha consciência de que não se encontrava em condições para conduzir. “O arguido tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a referida condução sabendo que estas lhe iriam provocar uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei e, ainda assim, quis conduzir o veículo em que se fez transportar”, refere a acusação.
Segundo o documento, o condutor estava “completamente alheio ao facto de circular numa autoestrada, numa noite escura e com visibilidade reduzida por força das condições atmosféricas que se verificavam, não sinalizando tal marcha lenta de modo a alertar outros condutores, adotando, pois, uma condução que colocou em perigo outros utentes”. Ou seja, conduzia muito devagar e sem os quatro piscas ligados, de forma a alertar os outros condutores da via sobre a sua baixa velocidade.
O carro onde a fadista Cristina Branco seguia com a filha menor de idade foi o primeiro a entrar na zona de perigo criada pela condução lenta e perigosa de Paulo Neves. Apesar de seguir a uma velocidade dentro dos limites legais, a cerca de 110 quilómetros por hora, o Ministério Público considerou que Cristina Branco “não reduziu a velocidade que havia imprimido ao seu veículo, não travou ao aproximar-se” do carro da frente. E acabou por “embater, violentamente, com a parte dianteira do mesmo na retaguarda deste”.
O forte embate levou a que o carro fosse projetado para a faixa da esquerda, tendo conseguido parar a mais de 120 metros do local do acidente, na berma, mas sem embater contra nenhuma outra viatura ou sequer o separador. Já a viatura da fadista rodopiou várias vezes sobre si e ficou parada, no sentido contrário da marcha, na faixa do meio da autoestrada. A fadista e a filha saíram do carro e mantiveram-se na berma da autoestrada. O carro ficou no meio da autoestrada “com o sistema de iluminação ligado e com as luzes indicadoras de perigo ligadas”, descreve a acusação, que não refere a hora exata deste acidente.
Momentos depois, pelas 18:49, surge naquele lanço da A1 a viatura de cantora Sara Carreira, que estava a ser conduzida pelo namorado, o ator Ivo Lucas. Circulava na faixa central a pouco mais de 130 quilómetros por hora. “Ivo Lucas não reduziu a velocidade que havia imprimido ao seu veículo, não travou ao aproximar-se” do carro de Cristina Branco acidentado e parado nessa faixa de rodagem.
Apercebendo-se do acidente, Ivo Lucas virou o volante para a esquerda da via “numa tentativa frustrada de evitar o embate”, que não conseguiu. Depois de embater “violentamente” na viatura de Cristina Branco, que obstruía a via, o carro onde seguia com a namorada Sara Carreira rodopiou da esquerda para a direita na autoestrada, capotou várias vezes e só parou na faixa de trânsito mais à esquerda. Por causa do impacto deste acidente, Sara Carreira ficou com várias lesões traumáticas, descritas no relatório pericial e que “foram a causa direta e necessária da sua morte”, conclui o Ministério Público.
Para os procuradores, “o embate ocorreu porque a arguida, Cristina Isabel Branco, seguia desatenta à condução, não se apercebendo, em devido tempo, da presença do veículo” que circulava abaixo da velocidade permitida por lei nas autoestradas. Também Ivo Lucas “conduzia de forma desatenta e, por tal motivo, não se apercebeu, em devido tempo, do veículo” da fadista, que estava parado na faixa central da autoestrada.
Três minutos depois do acidente da viatura de Ivo Lucas, que foi hospitalizado, e Sara Carreira, que veio a falecer, outro carro, conduzido por Tiago Pacheco a cerca de 150 quilómetros por hora, e “sem nunca ter reduzido a velocidade”, seguia pela faixa central - conseguiu, a tempo, ultrapassar a viatura acidentada de Cristina Branco e, tendo continuado durante 96 metros por entre os vários destroços que estavam na autoestrada, acabou por embater “com a frente esquerda do seu veículo na frente direita do veículo” onde se encontravam Ivo Lucas e Sara Carreira.
Cristina Branco e Ivo Lucas estão acusados pelo Ministério Publico do crime de homicídio por negligência. Paulo Neves e Tiago Pacheco respondem por condução perigosa.