Itália quer construir a ponte suspensa mais longa do mundo. A máfia e a geografia são o problema

CNN , Barbie Latza Nadeau
6 mai 2023, 14:00
Projeto da ponte que ligaria o continente italiano à Sicília. Webuild Library

Há um ditado popular em italiano - semelhante ao que os anglófonos usam para dizer "quando o inferno congelar" - que se traduz como "farei isso quando a ponte de Messina estiver terminada".

O sonho de uma ponte que ligasse o continente à Sicília através do estreito de Messina remonta ao tempo dos romanos, quando o cônsul Metelo juntou barris e madeira para transportar 100 elefantes de guerra de Cartago para Roma em 252 a.C., de acordo com os escritos de Plínio, o Velho.

Desde então, vários planos, incluindo uma ideia efémera de um túnel, foram surgindo e desaparecendo - como água debaixo da ponte.

Se for construída, a ponte sobre o estreito de Messina terá uma extensão de 3,2 quilómetros e seria a mais longa ponte suspensa do mundo.

Agora, o enorme projeto de engenharia poderá ser concretizado, graças a um decreto aprovado pelo governo de Giorgia Meloni no mês passado, depois de o ministro dos Transportes, Matteo Salvini, ter reavivado um plano que foi apresentado pela última vez quando Silvio Berlusconi era primeiro-ministro.

Em 2006, o concurso para a construção da ponte foi atribuído a um consórcio liderado pela empresa italiana Salini Impregilo, atualmente denominada WeBuild. Quando o governo de Berlusconi caiu nesse ano, os planos para a construção da ponte caíram com o seu governo, depois de o primeiro-ministro seguinte, Romano Prodi, a ter considerado um desperdício de dinheiro e um risco para o ambiente.

Desde então, vários governos tentaram reavivar a ponte e a atual coligação no poder, liderada por Meloni, Salvini e Berlusconi, incluiu-a na sua lista de promessas de campanha. Quando Salvini se tornou ministro dos Transportes, fez dela a sua prioridade, apostando o seu legado na ponte.

A WeBuild, que ainda tem a adjudicação do concurso no papel, processou o governo por quebra de contrato depois de o projeto ter sido suspenso, mas continua a ser a empresa mais provável de voltar a receber o trabalho, apesar das "manifestações de interesse de todo o mundo, incluindo da China", disse Salvini à Associação da Imprensa Estrangeira em Itália, em março, quando apresentou o plano.

"Os que ganharam o concurso de 2006 são os que muito provavelmente continuarão com a versão final do projeto", afirmou, sem nomear diretamente a WeBuild.

O diretor de engenharia da WeBuild, Michele Longo, foi convidado a ir ao parlamento, a 18 de abril, para falar sobre o plano ressuscitado.

"A ponte sobre o estreito de Messina é um projeto que pode ser iniciado imediatamente. Assim que o contrato for retomado e atualizado, o projeto pode começar", garantiu Longo aos deputados. "O projeto executivo deverá demorar oito meses, enquanto o tempo necessário para construir a ponte será de pouco mais de seis anos."

O custo do projeto é de 4,5 mil milhões de euros só para a ponte e de 6,75 mil milhões de euros para as infraestruturas de apoio de ambos os lados, que incluem a melhoria das ligações rodoviária e ferroviária, a construção de terminais e a realização de trabalhos preparatórios em terra e no fundo do mar para "reduzir os riscos hidrogeológicos" durante a construção, segundo o plano apresentado ao Ministério dos Transportes.

Desde 1965, já foram gastos 1,2 mil milhões de euros de fundos públicos em estudos de viabilidade, segundo o Ministério do Tesouro italiano. Salvini gosta de dizer que vai custar mais "não construir a ponte do que construí-la".

Divisões e a máfia

Os planos podem parecer bem avançados, mas os desafios são complexos.

O sul de Itália é propenso à corrupção, com duas grandes organizações criminosas - a 'Ndrangheta calabresa e a Cosa Nostra siciliana - a destacarem-se na infiltração de projetos de construção.

A recente detenção do chefe da Cosa Nostra, Matteo Messina Denaro, na Sicília, após 30 anos de fuga, representou uma vitória.

Denaro era contra a construção da ponte, tal como outros chefes da máfia, de acordo com o testemunho de informadores que contribuíram para a sua detenção, em parte porque as associações de crime organizado alimentam-se da pobreza e do subdesenvolvimento.

Apesar disso, os receios mantêm-se. Um estudo antimáfia do think tank ucraniano Nomos Centre, publicado há 20 anos e agora atualizado, alertava para a possibilidade de partes do projeto, como o transporte e o abastecimento, ficarem sob controlo criminoso, bem como para a possibilidade de as máfias locais exigirem dinheiro para proteção.

Salvini minimizou as preocupações. "Não tenho medo de infiltrações criminosas", assumiu, recentemente, ao Parlamento Europeu. "Seremos capazes de garantir que as melhores empresas italianas, europeias e mundiais trabalhem ali. Haverá organismos de controlo, em que estamos a trabalhar, para cada euro investido na ponte."

Há também problemas geofísicos que podem ser ainda mais difíceis de resolver.

Projeto da ponte sobre o estreito de Messina. Webuild Library

 

Governo diz que a ponte dará um enorme impulso à economia local, mas o projeto enfrenta muitos desafios. Webuild Library

O estreito de Messina situa-se ao longo de uma falha onde um sismo de 7,1 em 1908 matou mais de 100.000 pessoas e gerou tsunamis que devastaram as zonas costeiras dos lados calabrês e siciliano. Este continua a ser o acontecimento sísmico mais mortífero registado na Europa até à data.

As águas também são turbulentas. As correntes são tão fortes que muitas vezes arrancam as algas do fundo do mar e mudam de seis em seis horas, de acordo com a NASA, que refere que os padrões das ondas fortes são visíveis do espaço.

De acordo com o plano original da WeBuild, que é o único atualmente em consideração, uma vez que as propostas não foram, nem poderão ser, abertas, o tabuleiro da ponte seria construído para suportar ventos de até 300 quilómetros por hora - e poderia permanecer aberto ao tráfego com ventos de até 150 quilómetros por hora.

Haveria três faixas de rodagem em cada sentido - duas para tráfego e uma para emergência, com linhas de comboio no meio. Segundo o plano atual, poderiam passar 6.000 carros e camiões por hora e 200 comboios por dia.

A ponte situar-se-ia a cerca de 74 metros acima do nível do mar e permitiria um canal de navegação de 600 metros, assegurando a passagem de navios de carga e até dos mais altos navios de cruzeiro. Seria igualmente concebida para resistir a um terremoto de magnitude 7,5.

Só a fase de construção contribuirá com 2,9 mil milhões de euros para o PIB nacional e empregará 100 mil pessoas e 300 fornecedores, indicou Longo ao parlamento, acrescentando que "a maioria destas pessoas virá das regiões da Sicília e da Calábria, onde as taxas de desemprego são elevadas".

O estreito é "um dos mais dinâmicos entre as profundidades e as correntes, mas é também uma das áreas mais estudadas", explicou Longo à CNN. "Há milhões de páginas de estudos dedicados a esta zona. E nós lemos todos." Sobre os perigos do envolvimento do crime organizado, disse que "nada é impossível, mas este é um risco baixo".

"Devastador" para a vida selvagem

Os ambientalistas há muito que argumentam que a ponte seria devastadora para o terreno e para a vida selvagem.

"No estreito de Messina, um local de trânsito muito importante para aves e mamíferos marinhos, está uma das maiores concentrações de biodiversidade do mundo", sublinhou um porta-voz do grupo Legambiente, acrescentando que a ponte - durante e após a construção - iria perturbar as rotas de migração entre África e Europa.

O Fundo Mundial para a Natureza (WWF) também fez campanha contra o relançamento do projeto. "Toda a área do estreito de Messina é uma área protegida ao abrigo da Diretiva Habitats da UE", apontou o diretor de Relações Institucionais do WWF, Stefano Lenzi, em comunicado. Em 2006, antes de o plano ter sido arquivado, o grupo estava a preparar uma ação judicial para tentar impedi-lo por violar as áreas protegidas da União Europeia.

Salvini a apresentar o projeto da ponte em março. Angelo Carconi/EPA-EFE/Shutterstock

Os grupos ambientalistas afirmam que o ferry de meia hora é a rota menos perturbadora.

O impacto pós-ponte na economia seria indiscutivelmente elevado, insistiu Salvini, afirmando que os navios de carga da Ásia poderiam atracar na Sicília e que essas mercadorias poderiam ser transportadas em comboios de alta velocidade para a Europa, assim que fossem construídos carris de alta velocidade na Sicília - embora estes não existam atualmente.

A opinião pública de ambos os lados do estreito continua a ser mista, com os que estão em posição de prosperar através do aumento do comércio e da facilitação do turismo a apoiarem-na e os que não se importam de manter a Sicília isolada a oporem-se.

A ponte nunca esteve tão perto de ser construída como agora, depois de Meloni ter assinado o decreto que abre caminho à elaboração de planos concretos. O decreto tornar-se-á lei em junho e Salvini disse que espera iniciar a construção em julho de 2024.

O estreito de Messina há muito que é associado a águas agitadas. Por alguma razão, Homero criou ali o covil dos monstros marinhos Cila e Caríbdis. E, embora os únicos monstros possam ser ecológicos e criminosos, não há dúvida de que, independentemente da data, o sonho de alguns de construir a ponte para Messina não será posto de lado enquanto não estiver concluída.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Mais Lidas

Patrocinados