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Master em Relações Internacionais pelas Universidades de Groningen e Universidade de Estrasburgo

A ONU e o multilateralismo falharam?

27 set, 19:40

Na 79.ª Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, os discursos de líderes globais foram carregados de críticas à organização. De todos os lados, a ONU foi acusada de falhar no que deveria ser a sua missão central: lidar com crises globais e evitar grandes conflitos. Para piorar, o Conselho de Segurança, cuja composição reflete o equilíbrio de poder do pós-Segunda Guerra, é cada vez mais visto como um antiquário. Ele reflete um mundo que já não existe, deixando as potências atuais presas a um sistema que controlam, mas que se tornou obsoleto para os desafios contemporâneos.

A crise do multilateralismo, ou seja, a aceitação de que os países já não conseguem encarar sozinhos os desafios globais, não é novidade. Ela foi-se desenhando lentamente ao longo dos anos, não por um único evento, mas por uma sucessão de falhanços globais. O Norte Global — o clube dos países ricos que historicamente ditaram as regras — já não tem o mesmo controlo, enquanto o Sul Global — composto por nações em desenvolvimento, cansadas de serem ignoradas — deixou claro que já não está disposto a seguir as regras de um sistema que não as representa. A ordem mundial, que antes atendia aos interesses das potências, hoje parece cada vez mais distante da realidade e das necessidades das nações marginalizadas.

A pandemia de COVID-19 expôs, de forma brutal, as falhas do sistema global de distribuição de vacinas. O COVAX, que deveria ter garantido acesso equitativo, foi um desastre completo. Enquanto países como os EUA e o Reino Unido tinham mais de 70% das suas populações vacinadas em 2021, regiões da África Subsaariana, como a República Democrática do Congo, não tinham sequer vacinado 1% da população. Os países ricos, que representam menos de 20% da população mundial, garantiram mais de 60% das vacinas. Um relatório da Oxfam mostrou que, em agosto de 2021, 130 países ainda não tinham recebido sequer uma dose de vacina. A pandemia revelou aquilo que muitos já sabiam: em tempos de crise, os discursos sobre igualdade e solidariedade internacional desaparecem, e o instinto egoísta de "salvar os nossos primeiro" prevalece, sem pudor.

O mesmo acontece em relação ao tratamento dos refugiados. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a Europa agiu com uma rapidez impressionante para acolher milhões de ucranianos. Em apenas seis meses, mais de 4 milhões já estavam sob proteção temporária, com acesso garantido a serviços de saúde, habitação e educação. O Reino Unido, por exemplo, criou o programa Homes for Ukraine, onde os cidadãos eram pagos para acolher famílias ucranianas.

Agora, se recuarmos a 2015, durante a crise de refugiados sírios, a história é bem diferente. Países como a Hungria construíram muros, e a reação geral da Europa foi de contenção e rejeição. Recentemente, a Alemanha, a 16 de setembro, voltou a impor fiscalizações nas fronteiras para restringir a entrada de imigrantes ilegais. Estes padrões duplos deixam claro: a solidariedade existe, mas só para alguns. Refugiados do Sul Global são vistos como um problema a ser contido, enquanto os europeus recebem a chave de casa.

Os exemplos não param por aqui e demonstram as diferenças de padrões em várias áreas, como nas mudanças climáticas. Segundo o relatório "Climate Finance Shadow 2023", os países ricos, além de falharem vergonhosamente em cumprir a promessa de 100 mil milhões de dólares anuais para ajudar as nações mais pobres a enfrentar a crise climática, ainda distorcem o pouco que oferecem. Grande parte desse "financiamento" é concedido em forma de empréstimos, que apenas agravam ainda mais as dívidas dessas economias, em vez de aliviar a sua carga.

A frustração do Sul Global tem sido alimentada por décadas de políticas económicas injustas: acordos comerciais desequilibrados, pacotes de resgate financeiro com exigências de austeridade draconiana e uma "ajuda humanitária" que parece mais um jogo de interesses políticos do Norte Global. É evidente que estas ações não só agravam a desigualdade global, como também minam diretamente a já frágil legitimidade das organizações multilaterais, que deveriam garantir justiça e equidade.

Entretanto, as grandes potências ocidentais continuam a ditar as regras do jogo, bloqueando qualquer tentativa de reforma significativa e mantendo a sua hegemonia intacta. Para o Sul Global, as promessas de "solidariedade internacional" soam cada vez mais como palavras vazias de um sistema que nunca os representou de verdade.

Em março de 2023, quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de captura contra Vladimir Putin por crimes de guerra na Ucrânia, os Estados Unidos — com o Senado à frente — não perderam tempo a exaltar a decisão, aplaudindo o tribunal como um bastião da justiça internacional. No entanto, a postura mudou drasticamente quando o procurador-chefe Karim Khan, do mesmo TPI, solicitou mandados de captura para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Gaza.

Neste ponto, a hipocrisia norte-americana não poderia ser mais evidente. De repente, o tribunal que há poucos meses era celebrado tornou-se alvo de críticas ferozes e tentativas de deslegitimação, tudo porque tocou num aliado estratégico, Israel. E isto, mesmo com Khan a solicitar também mandados contra líderes do Hamas, como Yahya Sinwar e Ismail Haniyeh.

Quando é conveniente para os seus interesses, os EUA são os primeiros a usar o TPI como uma arma moral contra os seus rivais, como fizeram com Putin. Mas basta que a investigação afete um aliado, e a narrativa muda instantaneamente. Este duplo padrão expõe a seletividade e o uso oportunista das instituições internacionais, que só são apoiadas quando não confrontam os aliados estratégicos dos EUA.

O uso do poder de veto pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU expõe a verdadeira fragilidade da instituição, cada vez mais desacreditada, como ficou evidente durante os discursos dos últimos dias. A Rússia, em particular, tem transformado o veto numa ferramenta para blindar as suas ações. Em março de 2022, vetou uma resolução que condenava a sua invasão da Ucrânia e pedia a retirada imediata das suas tropas. Não satisfeita, em setembro do mesmo ano, bloqueou outra resolução que procurava condenar a anexação ilegal de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia. Em outubro, veio o terceiro golpe: a Rússia vetou qualquer responsabilização por crimes de guerra, ignorando as evidências gritantes dos massacres em Bucha e noutras áreas ocupadas.

Esses vetos levam os restantes países da organização a perceber que o Conselho de Segurança não é uma instância decisória para garantir o cumprimento das regras internacionais, mas sim um clube de poderosos que fazem as regras conforme os seus próprios interesses. O poder de veto, nas mãos das grandes potências, permite que estas pisoteiem as normas internacionais e bloqueiem qualquer tentativa de responsabilização real.

Os EUA também desempenharam um papel ativo na deslegitimação do Conselho de Segurança da ONU. A invasão do Iraque em 2003 foi o ponto de partida: ao desrespeitar a decisão do Conselho de não autorizar o uso da força, os EUA mostraram ao mundo que, para eles, as regras só valem quando são convenientes. Esse padrão de comportamento repetiu-se mais recentemente no conflito entre Israel e o Hamas, com o histórico de vetos que impediram resoluções que buscavam cessar-fogo, proteger civis ou investigar as violações de direitos humanos na região.

A recente defesa dos EUA por um cessar-fogo em Gaza é vista com desconfiança. Como podem, agora, clamar pelo fim da violência, quando, ao longo do último ano, bloquearam repetidamente resoluções que poderiam ter evitado a escalada e mitigado o sofrimento civil desde o início?

Embora a ONU esteja mergulhada numa crise de legitimidade, não se pode negar que, por décadas, ela conseguiu impedir que o mundo entrasse em colapso. Desde o fim da Segunda Guerra, a ONU acumulou vitórias importantes. Mas o facto de o sistema estar a ruir agora não é só culpa da organização, como foi apontado durante vários discursos na 79.ª Assembleia Geral — a responsabilidade recai, principalmente, na falta de compromisso dos próprios países que deveriam fazer o multilateralismo funcionar.

A ONU parece ter-se tornado um espelho dos interesses das grandes potências, que a utilizam quando lhes convém e a sabotam quando não. O Conselho de Segurança é o exemplo mais evidente disso: os países com assento permanente abusam do poder de veto, pregando "justiça" e "multilateralismo" apenas quando lhes serve. Os EUA vetam qualquer tentativa de questionar as ações de Israel, enquanto a Rússia bloqueia resoluções que a responsabilizariam pela sua invasão ilegal à Ucrânia.

É importante sublinhar que a percepção de que o multilateralismo falhou não se deve apenas às potências no Conselho de Segurança; resulta de um sistema que prometeu muito e entregou pouco, especialmente aos países mais pobres. Estas nações viram as grandes potências moldar as regras internacionais a seu favor, enquanto as promessas de uma ordem global mais justa ficaram pelo caminho. A ONU, que deveria ser o símbolo máximo de cooperação e justiça internacional, acabou por tornar-se um joguete nas mãos das potências, que a utilizam quando lhes convém e a ignoram quando os seus interesses estão em jogo.

Afirmar que a ONU fracassou sozinha seria simplista. As potências transformaram o multilateralismo num jogo de poder, onde vetos e bloqueios garantem que tudo permaneça como está. Enquanto os países mais pobres aguardam por um sistema que funcione para todos, os poderosos usam a ONU como palco para as suas disputas, mantendo o status quo intacto. Reformas? Promessas vazias. A crise de legitimidade resulta tanto do abuso do veto no Conselho de Segurança quanto da constatação de que o multilateralismo nunca entregou o que prometeu. Para os países em desenvolvimento, o sistema é apenas mais uma ferramenta para as potências manterem tudo sob controlo — ou pelo menos tentarem.

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