Os receios de uma incursão terrestre de Israel no sul do Líbano mantêm-se, após os ataques com pagers e walkie-talkies armadilhados terem provocado dezenas de mortos e milhares de feridos em todo o país – e depois de, esta sexta-feira, as forças israelitas terem executado um "ataque cirúrgico" contra a capital, Beirute, que provocou pelo menos três mortos, incluindo um líder militar da milícia procurado pelos Estados Unidos desde 1983
Eram 15:30 de terça-feira no Líbano, mais duas horas em Lisboa, quando milhares de membros do Hezbollah receberam nos seus pagers uma curta mensagem em árabe: “Podemos levá-lo a qualquer lado.” Segundos depois, os dispositivos explodiram.
Passados três dias, algumas questões parecem já ter sido esclarecidas quanto ao que os analistas definem em uníssono como um “ataque sem precedentes”, e que várias fontes em Telavive já confirmaram ao New York Times e à Reuters ter sido executado por Israel. Mas outras continuam por esclarecer, à cabeça qual terá sido o seu objetivo estratégico.
Sabe-se que não se tratou de um ciberataque que causou o sobreaquecimento das baterias dos aparelhos, como chegou a ser sugerido pelos media libaneses e pelo próprio grupo xiita, nem de sabotagem dos dispositivos ainda na cadeia de abastecimento, antes de terem sido adquiridos pelo Hezbollah.
Graças às fontes citadas pelo New York Times, sabe-se que foi Israel que fabricou os aparelhos de raiz com recurso a empresas-fachada criadas na Europa, colocando explosivos nas suas baterias para levar a cabo o ataque – da mesma forma que terá fabricado e armadilhado os walkie-talkies que o grupo estava a usar há vários meses, e que explodiram em uníssono na quarta-feira. Ao todo, os ataques consecutivos provocaram 37 mortos, incluindo pelo menos duas crianças, e mais de 3 mil feridos, entre os quais o embaixador do Irão em Beirute.
Esta sexta-feira, a Reuters noticiou em exclusivo que o Hezbollah ainda estava a distribuir novos pagers Gold Apollo horas antes de os explosivos terem sido detonados. Um membro da milícia apoiada pelo Irão recebeu um novo pager na segunda-feira, que explodiu no dia seguinte ainda dentro da caixa, adianta uma das fontes de segurança à agência. Outra refere que o grupo estava confiante de que os pagers eram seguros apesar da verificação contínua dos aparelhos eletrónicos para despistar potenciais ameaças.
A “sigilosa” Unidade 8200 de ciberguerra dos serviços secretos militares de Israel esteve envolvida no planeamento do ataque, diz uma outra fonte de segurança ocidental à Reuters. Israel, que hoje continuava a intensificar os ataques no sul do Líbano e que lançou inclusivamente um “ataque preciso” contra a capital do país, que provocou pelo menos três mortos - incluindo Ibrahim Aqil, líder militar do Hezbollah procurado pelos EUA desde o atentado de 1983 contra a embaixada norte-americana em Beirute -, continua sem confirmar nem desmentir o seu envolvimento.
As baterias dos pagers, noticia a Reuters, estavam armadilhadas com um componente altamente explosivo chamado PETN – e até três gramas de explosivos escondidos nos pagers não foram detetados pelo Hezbollah durante meses. Uma das fontes diz que era muito difícil conseguir identificá-los “com qualquer aparelho ou scanner”.
Ao todo, a agência falou com seis fontes familiarizadas com os pagers que o Hezbollah terá começado a distribuir pelos seus militantes tão cedo quanto 2022, um ano antes de a milícia intensificar os ataques no norte de Israel no que diz ser “solidariedade” pelo povo palestiniano, em resposta à ofensiva armada em curso contra a Faixa de Gaza há quase um ano, na sequência dos ataques de 7 de outubro perpetrados pelo Hamas.
Os pagers foram sendo examinados desde então, dizem as fontes, sendo inclusive transportados por aeroportos, para garantir que não faziam disparar os alarmes. “Mais do que uma suspeita específica em relação aos pagers, estes controlos fizeram parte de uma verificação rotineira dos equipamentos [do Hezbollah], incluindo aparelhos de comunicação, para detetar quaisquer indicações de que tinham sido armadilhados ou sabotados com mecanismos de vigilância”, indica uma das fontes.
Eram uma vantagem para o Hezbollah, mas foram sabotados - só não se sabe como nem quando
Ainda permanecem várias dúvidas sobre quem, como e onde foram armadilhados os aparelhos. Como explica à CNN o major-general Arnaut Moreira, sabe-se que o Hezbollah estava “pelo menos desde fevereiro com muitas dúvidas relativamente à utilização de smartphones”, pelos riscos de ciberespionagem e ciberataques. “E na busca por opções mais seguras”, indica o especialista, a milícia tinha duas opções: “comprar no mercado, com a vantagem de os equipamentos já existirem e não terem sido vandalizados, ou fazer uma encomenda em quantidade industrial de milhares de pagers, o que naturalmente atraiu a atenção de Israel, que tem uma poderosa indústria de defesa capaz de construir tudo”.
Várias fontes citadas pelos media internacionais nos últimos meses já tinham avançado que os dirigentes do Hezbollah estavam pelo menos desde outubro a dar indicações aos seus militantes para se livrarem dos telemóveis, na tentativa de criar uma rede de comunicações mais segura e menos vulnerável às elevadas cibercapacidades de Israel. E como explica Arnaut Moreira, o grupo “encontrou nos pagers uma tecnologia robusta, antiga por certo, com menos capacidade, mas adequada a uma organização de natureza hierárquica”.
No mundo da eletrónica, e apesar de terem desaparecido em massa após o surgimento dos primeiros telemóveis no final do século passado, continuam a existir pagers de todo o tipo, mas todos mantêm duas características: só recebem sinal, não emitem, e portanto não permitem a localização dos seus utilizadores.
“Isso é uma desvantagem para quem está habituado a discutir decisões, mas em organizações muito hierarquizadas é uma vantagem, as instruções são transmitidas e quem tem de obedecer obedece”, refere o militar português especializado em geoestratégia. “Como não são localizáveis, os pagers oferecem uma enorme vantagem para quem está sob pressão de natureza militar e sob vigilância eletrónica muito grande, não deixam de oferecer uma vantagem muito apetecível.”
A empresa Gold Apollo, com sede em Taiwan, fabricante dos pagers usados pelo Hezbollah, foi rápida a reagir após as primeiras explosões, garantindo que não produziu os aparelhos armadilhados e remetendo esclarecimentos para a BAC Consulting, uma empresa com sede na Hungria a quem a Gold Apollo vendeu a licença para fabricar pagers da marca – mas contactada pela NBC News, a diretora executiva da BAC garantiu que é uma “mera intermediária”.
“As encomendas e aquisições fazem parte da cadeia de abastecimento: como é que o vendedor/fornecedor foi controlado? Quem o fez e como?” As questões colocadas pelo especialista em cibersegurança Lukasz Olejnik em entrevista à CNN Portugal continuam sem resposta. Até agora, nem a Reuters nem qualquer outro meio de comunicação conseguiu apurar onde é que os pagers – e os walkie-talkies – foram fabricados e em que ponto da cadeia de abastecimento é que foram alvo de sabotagem com explosivos.
Há alguns dias, a Reuters já tinha noticiado a aquisição pelo Hezbollah de um lote de 5 mil pagers no início do ano, após uma série de operações secretas israelitas contra alguns dos seus comandantes, que culminaram no assassínio de Fuad Shukr, responsável pelas operações militares do grupo, num ataque em Beirute no final de julho – no mesmo dia em que um ataque preciso a Teerão matou o anterior líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, cujo lugar foi entretanto assumido por Yahya Sinwar (numa operação que, ao contrário da primeira, Israel não chegou a reivindicar).
Uma das fontes de segurança citadas pela Reuters hoje diz que o Hezbollah conseguiu travar algumas operações israelitas de sabotagem de equipamentos importados do estrangeiro – desde telefones fixos a unidades de ventilação usadas nos escritórios do grupo – inclusive no último ano. Mas, pelo contrário, não conseguiu travar a operação dos pagers – nem a dos walkie-talkies, que segundo uma fonte israelita foram detonados menos de 24 horas depois do primeiro ataque para não arriscar que o grupo detetasse os explosivos a tempo de impedir a sua detonação. “Houve vários problemas com eletrónica que conseguimos descobrir – mas não os pagers”, diz a fonte. “Conseguiram enganar-nos, tiramos o chapéu ao inimigo.”
Prelúdio de uma incursão no Líbano?
Entre o ataque dos pagers e o ataque dos walkie-talkies, o New York Times publicou um artigo sobre o “sucesso tático [mas] sem um claro objetivo estratégico” de Israel, citando vários analistas a questionar se este seria um prelúdio de uma incursão terrestre no sul do Líbano. “Ter capacidades incríveis não é uma estratégia”, referia Miri Eisin, do Instituto Internacional de Contraterrorismo, com sede em Israel.
Três dias depois, e após mais uma noite de chuva de rockets do Hezbollah a atingir o norte de Israel, as forças hebraicas anunciaram esta tarde um “ataque cirúrgico” a Beirute, que segundo o Ministério da Saúde do Líbano provocou pelo menos três mortos e 17 feridos – com uma ressalva feita pelo exército em comunicado: “de momento, não há alterações nas orientações defensivas do Comando da Frente Interna.”
Na madrugada de segunda-feira, após uma longa reunião do gabinete de segurança de Benjamin Netanyahu, os assessores do primeiro-ministro israelita emitiram um comunicado a anunciar que os objetivos da guerra de Israel na região tinham sido “atualizados” – já não se limitam a “destruir o Hamas” a sul, mas também a garantir o regresso em segurança de todos os residentes do norte, que têm fugido das suas casas nos últimos meses para escapar aos ataques vindos do outro lado da fronteira.
“Israel vai continuar a agir para implementar este objetivo”, anunciava o gabinete de Netanyahu pelas 02:26 da manhã. “Pareceu ser uma reafirmação branda da política em curso e não despertou grande interesse”, aponta a revista britânica Spectator – mas nem 12 horas depois, explodiram os pagers no Líbano. Nessa noite, com o país e o mundo debruçados sobre as incógnitas em torno do ataque, o ministro israelita da Defesa surgiu em conferência de imprensa a garantir que estava inaugurado “um novo capítulo da guerra”, mais focado na fronteira norte. E aqui persistem as dúvidas sobre a direção a que este capítulo aponta.
Como apontava ontem à CNN o major-general Arnaut Moreira, “não sabemos porque é que este ataque ocorreu neste momento”. Pode ter-se dado o caso, como aliás considerou uma das fontes israelitas hoje citadas pela Reuters quanto à explosão dos walkie-talkies, que “face à desconfiança do Hezbollah sobre as encomendas [dos aparelhos eletrónicos], Israel tenha pensado que ou fazia explodi-los agora ou perdia essa oportunidade”, refere o militar português, que foi diretor de comunicações e sistemas de informação do Exército entre 2013 e 2016.
Contudo, e como apontam vários analistas, também é possível que este seja apenas o início de uma longa guerra entre Israel e o Hezbollah. Após os ataques dos pagers, referia o Washington Post na sua newsletter diário desta manhã, "uma guerra mais alargada entre Israel e o Líbano parece agora inevitável".
“Israel está muito virado para uma incursão terrestre no sul do Líbano e uma operação dessas resultará certamente muito mais fácil se os sistemas de comunicação dentro da estrutura operativa do Hezbollah estiverem extraordinariamente reduzidos”, ressalta o major-general Arnaut Moreira. “Não se pode descartar a possibilidade de uma operação prestes a ser iniciada – mas Israel também não nos vai dizer se assim for.”