Ataque dos pagers. "Hoje em dia não sabemos quem fabrica os equipamentos e isto tanto se aplica ao Hezbollah como aos serviços públicos portugueses ou à NATO"

19 set, 22:00
Funeral de elementos do Hezbollah em Beirute, capital do Líbano, mortos nas explosões de pagers alegadamente plantados por Israel (Houssam Shbaro/Anadolu via Getty Images)

Foi um "Cavalo de Troia" da modernidade o ataque de Israel com recurso a pagers e walkie-talkies encomendados em barda pelo grupo xiita libanês e representou "o corolário da falta de segurança que resulta da globalização", refere um especialista à CNN. Após as explosões de dispositivos armadilhados por todo o Líbano, restam questões sobre o objetivo de Israel, no mesmo dia em que o negociador dos reféns apresentou uma nova proposta de cessar-fogo para a Faixa de Gaza. Para onde se movem as peças do xadrez geopolítico no Médio Oriente?

Depois de um dia e meio de dúvidas e confusão, na sequência de um ataque em duas fases que levou à explosão de milhares de pagers e walkie-talkies de alegados membros do Hezbollah no Líbano, 12 fontes da defesa e dos serviços de informação de Israel confirmaram ao New York Times que a operação foi orquestrada por Telavive.

Oficialmente, o governo de Israel não confirma nem desmente a autoria do ataque, descrito como “sem precedentes” à CNN Portugal por um consultor independente de cibersegurança. Afastada a hipótese de um ciberataque, vários analistas indicaram inicialmente que o mais provável era que os pagers tivessem sido alvo de sabotagem na cadeia de abastecimento, meses depois de os dirigentes do grupo libanês apoiado pelo Irão terem dado ordens aos seus militantes para se livrarem dos smartphones. Mas não foi esse o caso.

“O Hezbollah estava desde fevereiro com muitas dúvidas relativamente à utilização de telemóveis e, na busca por opções mais seguras, tinhas duas vias de ação: comprar no mercado, com a vantagem de os equipamentos já existirem e não terem sido vandalizados, ou fazer uma encomenda em quantidade industrial de milhares de pagers, o que, naturalmente, atraiu a atenção de Israel, que tem uma poderosa indústria de defesa capaz de construir tudo”, refere à CNN o major-general Arnaut Moreira, especialista em geopolítica e geoestratégia.

A encomenda dos pagers, aparelhos relativamente arcaicos que só recebem sinal sem o transmitir, sendo portanto impossíveis de localizar, permitiu ao grupo libanês criar uma rede de comunicações de baixa tecnologia para contornar as operações de ciberespionagem do inimigo. Mas dado que foram construídos de raiz, e como confirmado por vários fontes ao NYT, agentes da Mossad conseguiram instalar nas suas baterias explosivos, numa “operação complexa e há muito em preparação” que envolveu o investimento de “milhões de dólares” para criar uma espécie de 'Cavalo de Troia' dos tempos modernos.

Imagens partilhadas nas redes sociais no rescaldo do primeiro ataque mostraram que os pagers eram da marca Gold Apollo, uma empresa de Taiwan que rapidamente se distanciou do sucedido, garantindo que os aparelhos foram concebidos e fabricados pela BAC Consulting, com sede na Hungria. Segundo as mesmas fontes ao jornal norte-americano, a BAC foi criada por Israel, uma de pelo menos três empresas-fachada montadas para mascarar as identidades dos responsáveis israelitas. Contactada pela NBC News na terça-feira, a diretora executiva da BAC garantiu que foi apenas "intermediária" no negócio dos pagers.

Sobre os walkie-talkies armadilhados, a empresa japonesa Icom disse não ter como saber se foram produzidos nas suas fábricas. “Não podemos excluir a possibilidade de serem falsos, mas também existe a possibilidade de serem do nosso modelo IC-V82”, disse o diretor da empresa, Yoshiki Enomoto, à agência de notícias Kyodo – cerca de 160 mil unidades desse modelo foram vendidas no Japão e no estrangeiro, adiantou Enomoto, antes de a Icom parar de os fabricar em 2014.

Com a população do Líbano aterrorizada face à nova modalidade de guerra eletrónica, a operação representa “o corolário da falta de segurança que resulta do processo de globalização”, indica Arnaut Moreira. "Hoje em dia não sabemos quem fabrica os equipamentos que compramos e isto tanto se aplica ao Hezbollah como se aplica aos serviços públicos portugueses, à NATO e a qualquer outra instituição”, refere o militar – e no caso do ataque ao Líbano, isto resultou numa “operação logística a uma escala a que não estávamos habituados até agora”.

Face às novas informações surgidas desde terça-feira, “mantêm-se as questões sobre a cadeia de abastecimento, a começar pela adjudicação”, refere à CNN Lukasz Olejnik, consultor de cibersegurança e investigador convidado do Departamento de Estudos de Guerra do King’s College. “As encomendas e aquisições continuam a fazer parte da cadeia de abastecimento. Como é que o vendedor/fornecedor foi controlado? Quem o fez e como?”

Cessar-fogo com Hamas não altera tensões com o Hezbollah

O primeiro ataque, na terça-feira, causou pelo menos 12 mortos, entre eles duas crianças e o filho do deputado do Hezbollah Ali Ammar, a par de mais de 2.500 feridos em várias partes do Líbano, incluindo o embaixador do Irão em Beirute. Uma segunda onda de explosões no dia seguinte provocou pelo menos 20 mortos e mais de 450 feridos. 

As autoridades libanesas já lançaram uma operação de grande envergadura para destruir todo o tipo de equipamentos que possam ter sido sabotados. Teerão diz que se reserva o direito “legal” de retaliar em resposta aos ferimentos do seu embaixador. E mergulhado no caos, o Hezbollah promete continuar a lutar contra Israel, ao final de quase um ano de troca de fogo na fronteira, na sequência dos ataques do Hamas de 7 de outubro e da guerra em curso na Faixa de Gaza. 

Citado pela Al-Jazeera, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Hakan Fidan, disse que o “Irão, o Hezbollah e elementos próximos deles não têm opção” a não ser responder às ações israelitas. “Chegámos a um ponto em que estas operações executadas por Israel se tornaram cada vez mais provocadoras.”

Para vários analistas, os recentes ataques não só representam a maior quebra de segurança da história do Hezbollah, como também um “sério dilema” para o grupo xiita. “Vêm aumentar a pressão sobre o grupo para retaliar contra Israel, mas ao mesmo tempo limitam severamente as suas opções militares”, ressalta Lina Khatib, diretora do Instituto do Médio Oriente Soas e bolseira da Chatham House, num artigo no Guardian. “Também deferem um golpe no moral e na credibilidade do Hezbollah enquanto grupo armado que se diz detentor de elevados padrões de segurança.”

Khatib defende que, apesar de todos os desenvolvimentos, apenas um acordo de cessar-fogo para Gaza pode desanuviar as tensões entre Israel e o Líbano. Mas Arnaut Moreira faz outra leitura. “A luta do Hezbollah com Israel não tem nada a ver com a Faixa de Gaza, é anterior e vai continuar”, defende o especialista.

“A questão de Gaza foi usada pelo Hezbollah para criar simpatia internacional, num ato de solidariedade com o povo palestiniano, mas o Hezbollah não morre de amores pelo povo palestiniano – tem uma missão muito específica que passa por ser um braço armado ao serviço dos interesses do Irão e, internamente, continuar a proteger e a dar protagonismo à minoria xiita do Líbano, e nada disto se altera com um potencial acordo em Gaza.” Um potencial acordo para travar a guerra no enclave palestiniano, adianta, seria uma derrota para o Hezbollah, que “perderia esta faceta de solidariedade internacional simpática que certamente gostaria de continuar a alimentar”.

Só os EUA importam e nada deverá mudar para já

A prometer retaliar contra Israel desde a operação que conduziu à morte de um seu comandante no final de julho, não é certo de que forma vai o Hezbollah responder aos mais recentes ataques, com muitos a anteciparem que o conflito entre os dois países pode intensificar-se. No rescaldo da explosão de milhares de pagers por todo o Líbano, alguns analistas levantaram a possibilidade de este ser um prelúdio de uma ofensiva terrestre no país a norte, com o ministro da Defesa, Yoav Gallant, a anunciar na terça à noite o “início de um novo capítulo da guerra” no Médio Oriente, mais focada na fronteira norte de Israel. À hora de fecho deste artigo, surgiram relatos de caças israelitas a sobrevoar Beirute, a capital libanesa.

“Não sabemos porque é que este ataque ocorreu neste momento, talvez o mais provável seja uma questão de oportunidade”, considera o major-general Arnaut Moreira. “Face à desconfiança entre alguns líderes do Hezbollah sobre as encomendas [dos pagers], Israel pode ter pensado que ou fazia explodi-los agora ou perdia essa oportunidade.” 

Ainda assim, a alternativa também se coloca, assume o especialista. “Israel está muito virado para uma incursão terrestre no sul do Líbano e uma operação dessas resultará certamente muito mais fácil se os sistemas de comunicação dentro da estrutura operativa do Hezbollah estiverem extraordinariamente reduzidos. Não se pode descartar a possibilidade de uma operação prestes a ser iniciada, mas Israel também não nos vai dizer se assim for.”

Para esta quinta-feira estava marcada uma reunião urgente das diplomacias dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália e Alemanha – convocada horas antes de fontes da chancelaria alemã terem adiantado à Reuters que Berlim decidiu suspender as autorizações de exportação de armas de guerra para Israel.

O encontro terá seguramente abordado a nova proposta de cessar-fogo que o responsável israelita pela negociação dos reféns levados pelo Hamas para Gaza, Gal Hirsch, apresentou esta quinta-feira aos mediadores, prevendo a libertação de todos eles numa primeira fase. De acordo com o Haaretz, a proposta passa por garantir ao líder do Hamas, Yahya Sinwar, à sua família e a milhares de operacionais do grupo passagem segura para fora de Gaza, mudando-se para um país terceiro, num passo que seria considerado uma “rendição” ou “exílio”.

Fontes familiarizadas com o processo dizem ao jornal israelita que a proposta pretende “desbloquear” o impasse de meses nas negociações mediadas pelos EUA e o Catar. Ainda não é conhecida a posição do Hamas face à nova proposta, que, como ressalta o major-general Arnaut Moreira, “está numa situação complicada do ponto de vista militar”.

“Os seus militantes estão dispostos a continuar a luta armada, mas a organização está muito debilitada pela ocupação militar de Gaza por parte das forças israelitas”, refere o especialista em geoestratégia. “Enquanto Israel for capaz de resistir à pressão internacional para pôr cabo à ocupação militar de Gaza, terá tempo para percorrer todas as quadrículas possíveis – e, portanto, a questão de encontrar a liderança do Hamas, se é que ainda está em Gaza, é apenas uma questão de tempo. [Esta nova proposta de cessar-fogo] ajuda a flexibilizar a posição do Hamas e não deixa de ser vantajosa para o grupo, mas não é certo que resolva ou acalme a situação.”

Questionado sobre a alegada decisão alemã e qual a latitude que os países ocidentais ainda têm para pressionar Israel, o militar português descarta idealismos. “As coisas podem alterar-se do ponto de vista político, mas do ponto de vista real, perdemos a liderança na Europa. As lideranças europeias perderam a capacidade de ser afirmativas, deixaram de ter iniciativa, e agora estão ao sabor daquilo que se vai ouvindo na rua. A grande maioria dos apoios a Israel vem dos Estados Unidos e nos EUA simplesmente ninguém ganha eleições sem apoiar Israel, isso é absolutamente impossível.”

Com notícias de tensões também no Governo português entre o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, quanto à posição a assumir face a Israel e à Palestina, Arnault Moreira sublinha que nada se pode esperar da Europa, apenas dos EUA. E a menos de dois meses das presidenciais norte-americanas de 5 de novembro "não há qualquer condição de os EUA abandonarem o seu apoio a Israel".

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