A situação na fronteira entre Israel e o Líbano continua a piorar. Esta noite, o Conselho de Segurança das Nações Unidas reúne-se de emergência para discutir a escalada do conflito com o Hezbollah, enquanto a administração Biden tenta negociar uma trégua temporária na chamada Linha Azul, onde a ONU tem mais de 10 mil tropas de 50 países estacionadas desde 2006
“Dizem que a idade traz sabedoria, mas nós que trabalhamos há décadas para unir as sociedades e negociar a paz temos a memória do que aconteceu gravada no nosso ADN, lembramo-nos das coisas como elas aconteceram, o que é bem diferente de ler sobre o passado num livro”, afirma Nomi Bar-Yaacov, negociadora internacional e bolseira associada da Chatham House.
Para entender o que está a acontecer neste momento na fronteira do Líbano com Israel, diz a especialista à CNN Portugal, é preciso viajar no tempo. E não apenas até ao ano passado, quando o Hamas levou a cabo um ataque sem precedentes contra Israel a 7 de outubro, nem sequer até 2006, quando a última guerra entre o Hezbollah e Israel ficou a marinar após 33 dias de ataques, graças a uma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU para reduzir as tensões e abrir caminho à desmilitarização da fronteira israelo-libanesa – a resolução 1701, aplicada na chamada Linha Azul.
“Esta resolução surgiu no seguimento de uma outra, a resolução 425, que foi originalmente aprovada em 1978, após Jimmy Carter ter conseguido negociar o primeiro acordo entre Israel e uma nação árabe, no caso o Egito”, explica Bar-Yaacov. “Houve países árabes que não gostaram desse acordo, o que culminou no massacre de 37 civis israelitas, incluindo 13 crianças – o que, claro, foi um grande choque e levou as forças israelitas a invadir o sul do Líbano, mesmo quando os Acordos de Camp David estavam prestes a ser assinados.”
Conhecido como o massacre da estrada costeira, a 11 de março de 1978 militantes palestinianos sequestraram um autocarro que seguia na autoestrada costeira de Israel e mataram todos os tripulantes. Isso aconteceu oito dias antes de o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotar a resolução 425 – que viria a dar lugar à resolução 1701, sob a qual se previa a retirada das tropas de Israel do sul do Líbano e o estabelecimento da Força Interina da ONU no Líbano (UNIFIL), estacionada no sul do país até hoje.
“É preciso olhar para o contexto e para as duas resoluções em conjunto”, refere a negociadora israelita. “Os Acordos de Camp David quando Carter era presidente [dos EUA] e a criação da UNIFIL foram, na verdade, grandes conquistas durante a Guerra Fria. Mas a resolução 425, prelúdio da resolução 1701, é uma resolução de capítulo VI, não de capítulo VII, o que significa que [as tropas da ONU] não têm o poder de impor a paz, apenas o poder de a manter.”
"Tudo depende de ações e decisões políticas"
Como delineado na Carta das Nações Unidas, que completa 80 anos em junho próximo, os poderes e o papel do Conselho de Segurança variam consoante o capítulo que sustenta cada resolução. Sob o capítulo VI, o CS “insta os Estados” envolvidos em determinado conflito, mesmo que não pertençam à ONU, a resolvê-lo por meios pacíficos - e as resoluções com base nele são meras recomendações, não são juridicamente vinculativas nem têm qualquer autoridade do ponto de vista legal, ao contrário das resoluções de capítulo VII, ao abrigo do qual podem prever outro tipo de atuação em caso de “ameaças à paz, rutura da paz ou atos de agressão”.
Sendo a resolução 1701 (e a sua precursora) baseada no capítulo VI, as forças da ONU estacionadas no sul do Líbano não podem fazer nada a não ser tentar manter a paz no terreno. E neste momento de elevadas tensões, refere Bar-Yaacov, “é fulcral perceber isso: que a UNIFIL não pode estabelecer a paz, apenas mantê-la, e que é errado culpar a UNIFIL – tudo está dependente de ações e decisões políticas, do lado do Líbano e do lado de Israel”.
Após o ataque em massa da semana passada a pagers e walkie-talkies do Hezbollah, a troca de fogo na fronteira com Israel intensificou-se – e em apenas dois dias, os ataques israelitas fizeram pelo menos 558 mortos, incluindo 50 crianças, e milhares de feridos no sul do país vizinho, de acordo com as autoridades de saúde libanesas. O número de vítimas mortais corresponde a cerca de metade dos quase 1.200 libaneses que morreram na guerra dos 33 dias, a par de 160 israelitas, na sua maioria soldados.
Esta quarta-feira, Telavive anunciou bombardeamentos em larga escala no sul do Líbano, e voltaram a disparar os alarmes sobre uma iminente incursão terrestre no país. Se isso se concretizar, o que podem as tropas da ONU fazer? “Não podem fazer nada”, responde Bar-Yaacov, remetendo novamente para a resolução 1701, que o Conselho de Segurança da ONU prolongou no mês passado, até 31 de agosto de 2025.
Sob as duas resoluções, Israel comprometeu-se a sair do sul do Líbano e o governo e as tropas libanesas comprometeram-se a desmantelar todos os grupos armados do país e a garantir que o Hezbollah não continuava instalado a sul do rio Litani. Mas em vez disso, observa a negociadora internacional, a milícia xiita apoiada pelo Irão “fortificou as suas posições a sul do rio Litani, ou seja, no sul do Líbano”, deixando a descoberto um profundo problema interno.
“A ideia geral da resolução era dar algum poder ao governo libanês para controlar o sul do país, mas sabemos que o governo é extremamente frágil política e economicamente e o Hezbollah nunca se retirou para o norte do rio Litani. A menos que se resolva a situação política do Líbano e que haja vontade política em Israel, nada disto se vai resolver.”
"Ninguém quer a ONU no meio de uma guerra"
No rescaldo do ataque dos pagers, o Atlantic Council referia numa análise à escalada do conflito entre Israel e o Hezbollah que, “mesmo sob condições ideais, a Resolução 1701 continuaria a ser impraticável” – uma visão que Bar-Yaacov não partilha. “Não é que seja impraticável, a questão é o mandato [da UNIFIL], que não é para estabelecer a paz, é apenas de manutenção da paz, foi a esse acordo que foi possível chegar durante a Guerra Fria” – e novamente em 2006.
Desde esse ano, a UNIFIL integra cerca de 10.500 soldados responsáveis por manter a paz no sul do Líbano, oriundos de 50 países, apoiados por uma Força Marítima de cinco embarcações, e que em conjunto levam a cabo “aproximadamente 14.500 atividades por mês, de dia e de noite, no teatro de operações”, como indica a ONU no seu site – sendo que dessas apenas 17% são executadas em conjunto com as forças armadas libanesas.
“O que falta é vontade política, porque se fôssemos reforçar o mandato [das tropas da ONU] teríamos uma guerra aberta, muitas mortes na UNIFIL, e ninguém quer realmente a ONU no meio de uma guerra”, adianta a especialista. “A chave deste conflito é encontrar mecanismos de resolução, que na prática é o que temos sob o mandato da UNIFIL, só que neste momento não há vontade política para os implementar. E aqui também temos o Irão em violação, porque continua a armar e a usar o Hezbollah como o seu braço militar na região.”
Quando falta pouco mais de um mês para as eleições presidenciais nos Estados Unidos, a administração norte-americana “vê-se confrontada com uma catástrofe que, pelo menos em parte, é da sua própria responsabilidade”, indicava o International Crisis Group (ICG) na segunda-feira num artigo intitulado “Os EUA devem impedir uma guerra total entre Israel e o Hezbollah”. Mas para Nomi Bar-Yaacov, esta é uma leitura “superficial”.
“Não são apenas os EUA, há muitas forças envolvidas – temos de olhar para o panorama a 360 graus, não chegámos a este momento de um dia para o outro”, defende. “Sou muito crítica de algumas políticas norte-americanas, mas não é justo culpar apenas os EUA, cujo grande erro tem sido permitir a construção e expansão dos colonatos [israelitas] em territórios ocupados, uma das questões-chave para os palestinianos.”
Trégua em Gaza não vai pôr fim ao conflito com o Hezbollah
Na terça-feira, no mesmo dia em que Joe Biden proferiu o seu último discurso na Assembleia Geral da ONU enquanto presidente dos EUA, fontes da sua administração assumiram à CNN Internacional que há esforços “fervorosos” em curso para evitar que Telavive invada o Líbano e dê oficialmente início a uma guerra com o Hezbollah – mas as mesmas fontes assumiam que “estamos mais perto do que nunca de uma guerra regional” desde os ataques do Hamas a 7 de outubro.
Como refere à CNN Portugal o major-general Carlos Branco, especialista militar que serviu em missões da ONU no Médio Oriente, uma possível invasão terrestre do Líbano enquadra-se no “objetivo final” delineado pelo governo de Benjamin Netanyahu de infligir uma “derrota decisiva” ao Irão – só que Israel “não tem a capacidade para o fazer sozinho”, precisa dos Estados Unidos, numa altura em que a administração democrata continua sem conseguir alcançar um cessar-fogo para a Faixa de Gaza.
Apesar de o conflito entre Hezbollah e Israel ser anterior à atual ofensiva de Israel contra o enclave palestiniano, que em mais de 11 meses já provocou pelo menos 42 mil mortos, “os conflitos estão profundamente interligados”, ressalta Nomi Bar-Yaacov – “e a solução passa, antes de mais, por se alcançar um cessar-fogo em Gaza”.
No rescaldo do ataque dos pagers, um especialista em geopolítica lembrava que “a questão de Gaza foi usada pelo Hezbollah para gerar simpatia internacional, num ato de solidariedade com o povo palestiniano, mas o Hezbollah não morre de amores pelo povo palestiniano [...] e nada se vai alterar com um potencial acordo em Gaza”. A negociadora israelita não discorda totalmente, mas mantém que tudo tem de começar com uma trégua no território palestiniano.
“O cessar-fogo em Gaza não é uma solução de longo prazo para o problema do Hezbollah, mesmo tendo o seu secretário-geral, Hassan Nasrallah, dito no seu discurso que um cessar-fogo vai pôr fim ao conflito [com Israel] – não vai. Mas precisamos desse cessar-fogo urgente, da mesma forma que é preciso acabar com a violência na Cisjordânia e também no Líbano, porque as três coisas estão interligadas. Temos de olhar para a forma de resolver Gaza, a Cisjordânia e o Líbano e, realisticamente, o único caminho é, primeiro que tudo, tentar obter um cessar-fogo, a retirada das tropas israelitas e a libertação de todos os reféns, vivos ou mortos, em vez de uma coisa a conta-gotas.”
Cada lado com a sua responsabilidade
A grave escalada do conflito entre Israel e o Líbano coincidiu com a 79.ª Assembleia Geral da ONU, em curso esta semana, durante a qual vários líderes, à cabeça o secretário-geral da organização, António Guterres, alertaram para os riscos de uma guerra alargada no Médio Oriente.
Na sua intervenção, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, disse que esteve no Líbano alguns dias “antes da explosão dos aparelhos eletrónicos [do Hezbollah] que espalhou o terror entre a população libanesa” e alertou para a situação “extremamente perigosa e preocupante” – e questionado sobre a potencial invasão terrestre do Líbano e uma “guerra total” com Israel, respondeu assim: “Em menos de uma semana, menos de uma semana, 4.400 pessoas ficaram feridas e 500 foram mortas – se isto não é uma situação de guerra, diga-me o que lhe chamar.”
Na mesma conferência de imprensa, Borrell não esqueceu as tropas da UNIFIL, com quem também se encontrou na fronteira, tendo sido informado em primeira mão da “intensidade dos combates, dos bombardeamentos, de ambos os lados – cada lado tem a sua responsabilidade”.
Dias depois, à hora em que este artigo foi fechado, Israel estava a lançar “vastos” ataques contra o Líbano, incluindo contra a capital, e um rocket do Hezbollah quase conseguiu alcançar Telavive de forma inédita. Com milhares de libaneses a entupirem as estradas em fuga para o norte, com cerca de 10 mil pessoas já deslocadas em Beirute e um número indeterminado de crianças presas sob os escombros após os ataques israelitas, mais do que nunca é essencial suspender o conflito em Gaza e delinear um plano para estabilizar toda a região – mas as perspetivas não são animadoras.
Horas antes de uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU para debater a situação no Líbano, os media norte-americanos noticiaram que a administração Biden pode anunciar já hoje um cessar-fogo temporário entre Hezbollah e Israel, numa altura em que Washington e Israel tentam dissociar este conflito da ofensiva contra Gaza. Mas tal como o ICG, Nomi Bar-Yaacov e outros especialistas apontam, um cessar-fogo para a Faixa de Gaza "continua a ser o caminho mais seguro para estabilizar" também o norte de Israel e permitir o retorno dos seus residentes a casa.
“Mesmo alguns antigos oficiais de segurança israelitas que apoiam as medidas de escalada de Israel no Líbano continuam a sublinhar a importância de as usar para potenciar um cessar-fogo [em Gaza] e um acordo sobre os reféns”, referiam os analistas do Crisis Group no início da semana. “Tem de haver um incentivo para que Israel aceite um cessar-fogo e a chave está em assegurar que um futuro Estado palestiniano e o atual Estado de Israel têm garantias de segurança”, acrescenta Bar-Yaacov.
“Neste momento, o povo israelita não vê como é que um Estado palestiniano vai tornar Israel mais seguro depois de 7 de outubro, no curto, no médio e no longo prazo. Israel não vai retirar [as tropas] sem a presença de uma força internacional, e é preciso apoiar um novo governo palestiniano, e tudo tem de ser feito ao mesmo tempo. O plano [para a solução de dois Estados] acordado já define os parâmetros de referência, o calendário de implementação, os mecanismos de aplicação, as garantias de conformidade...”
Só depois de começar a ser posto em prática é que, “mais à frente”, será hora de organizar eleições nos dois lados, Palestina e Israel, “porque o governo de Mahmoud Abbas não está a funcionar e Netanyahu só está interessado na sua sobrevivência política”, adianta a negociadora. E quanto à situação no Líbano? “No Líbano, o exército não tem qualquer controlo sobre o sul e a solução está na implementação da resolução 1701, que prevê a retirada do Hezbollah da margem sul do rio Litani. E como é que conseguimos isso? Começando com um cessar-fogo em Gaza.”