opinião
Comentador da CNN Portugal

Israel vs Irão: Realpolitik em Estado Puro

14 jun, 12:52
Iranianos celebram ataque com mísseis contra o Irão (Abedin Taherkenareh/EPA via Lusa)

“A verdadeira questão não é se Israel agiu com razão. A verdadeira questão é se o mundo está preparado para lidar com as consequências.”

Há momentos em que a dissuasão deixa de ser uma linguagem implícita e se transforma num acto formal de poder. A ofensiva israelita do passado dia 13 de Junho de 2025 — Operação Rising Lion — sobre centros nucleares iranianos, fábricas de mísseis e infra-estruturas subterrâneas, não é apenas uma operação cirúrgica: é um reposicionamento táctico no xadrez do Médio Oriente. A sua natureza não reside no número de aviões ou alvos, mas no gesto político: Israel decidiu que a ordem regional, tal como está, se tornou intolerável. O ataque é menos um episódio do conflito israelo-iraniano e mais um ponto de ruptura na arquitectura da dissuasão — essa gramática frágil onde o direito internacional e a prática estratégica colidem, e onde os actos unilaterais começam a suplantar as doutrinas da contenção.

Para Israel, o Irão representa, desde a Revolução Islâmica, não apenas um rival regional, mas o principal arquitecto de uma teia transnacional de terrorismo. Hezbollah, Hamas, Houthis, milícias xiitas iraquianas — todos recebem de Teerão apoio táctico, financeiro e ideológico. Mas a ameaça não é exclusivamente externa. Desde 2022, a liderança iraniana enfrenta uma crescente erosão da sua autoridade interna, marcada por protestos prolongados, repressão sangrenta e divisões profundas entre elites religiosas e militares. É neste contexto que Benjamin Netanyahu, politicamente fragilizado por uma conjuntura interna de contestação social, degradação institucional e processos judiciais por corrupção, actua com um duplo propósito: travar a ameaça atómica iraniana e recentrar a sua própria legitimidade política com um gesto de força inequívoco. Mais do que conter o programa nuclear, Israel parece testar os limites da resiliência do regime iraniano — e, talvez, precipitar a sua queda. É a doutrina Begin com assinatura digital e ambição sistémica.

A operação, embora tecnicamente violadora das normas do jus ad bellum, surge também como resposta à evidente falência dos instrumentos multilaterais. A IAEA tem alertado, sem consequências práticas, para o avanço acelerado do programa de enriquecimento de urânio por parte do Irão. As negociações em Omã — que, ironicamente, teriam nova ronda marcada para o fim-de-semana após o ataque — arrastam-se num pântano de desconfiança mútua. Não por acaso, Marco Rubio apelou a que o Irão não retaliasse contra interesses americanos, numa tentativa desesperada de evitar a derrocada do diálogo diplomático. A diplomacia esvazia-se; as centrífugas, não. E a pergunta que Israel parece lançar ao mundo é esta: até quando poderá a legalidade internacional impor-se à lógica crua da sobrevivência estratégica?

No plano operacional, Rising Lion constitui uma ruptura: drones suicidas, sabotagem electrónica, sensores submarinos, unidades do Mossad operando dentro do Irão. A guerra híbrida tornou-se uma arte de camadas, invisível, combinada, silenciosa. Israel deixou de operar como um actor reactivo e passou a assumir o papel de escultor táctico do equilíbrio regional.

A resposta iraniana, ainda que moderada no plano convencional, foi profundamente simbólica e estrategicamente calibrada. Os 150 mísseis e drones lançados não configuraram um contra-ataque com impacto militar substancial, mas funcionaram como uma prova de vida operacional: o Irão pode retaliar, mesmo que o faça de forma contida e comunicacionalmente eficaz. Mais do que um acto de guerra em larga escala, foi uma performance de dissuasão — dirigida ao seu próprio povo, aos seus aliados regionais e aos adversários externos.

No entanto, os contornos de uma escalada assimétrica são evidentes. O Hezbollah intensifica os alertas a partir do sul do Líbano, numa manobra que visa mais dissuadir do que agir; os Houthis, fortalecidos pelo seu protagonismo recente no Mar Vermelho, voltam a ameaçar o tráfego marítimo internacional, pressionando aliados de Israel por via indirecta; e o ciberespaço, dominado por redes associadas à Guarda Revolucionária Iraniana, revela sinais crescentes de mobilização contra infra-estruturas críticas em países do Golfo. Esta não é uma guerra convencional, nem uma guerra de retaliação clássica. É a guerra da dispersão: sem linhas de frente, sem começo visível nem fim previsível, onde o Estado age através de múltiplos braços não estatais, mantendo a negação plausível e a imprevisibilidade táctica como principais activos estratégicos.

No plano geopolítico, a ofensiva israelita ocorreu numa conjuntura particularmente sensível: dias antes da prevista sexta ronda de negociações nucleares entre Washington e Teerão, marcada para Omã. A intervenção interrompeu um processo já fragilizado, colocando em causa a continuidade diplomática e reposicionando o conflito no plano da acção directa. A resposta do presidente norte-americano, Donald Trump — “we knew everything… I tried to save Iran” — revela mais do que uma contradição pessoal: sintetiza a actual ambiguidade estratégica dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo actores e árbitros, os EUA enfrentam o paradoxo de serem demasiado fortes para abdicar da sua presença no tabuleiro e demasiado incoerentes para imporem qualquer arquitectura de estabilidade duradoura. Este duplo papel — de aliado incondicional de Israel e mediador improvável junto do Irão — enfraquece a legitimidade americana no olhar de aliados e rivais, e reforça a percepção de um império em transição.

Neste contexto, a Turquia emerge como um actor regional com uma posição ambivalente mas não irrelevante. Apesar da sua condenação pública do ataque, apelidando-o de violação flagrante do direito internacional, Ancara mantém canais abertos com Teerão e Telavive, posicionando-se como potencial mediador informal num cenário pós-escalada. O seu envolvimento, ainda que discreto, reflecte a tentativa de Erdoğan em recuperar centralidade no xadrez do Médio Oriente, num momento em que o conflito abre espaços para novos equívocos diplomáticos e rearranjos de poder. A postura turca não representa apenas retórica — é parte de uma estratégia mais ampla de reequilíbrio regional, entre a pertença à NATO, a competição energética e o interesse em conter uma guerra de largo espectro às suas fronteiras.

Na Europa, a reacção foi de uma previsível apatia institucional. A Alemanha apelou à contenção. O Reino Unido reiterou o direito de Israel à autodefesa. A UE condenou a escalada, sem abordar a responsabilidade iraniana na proliferação. A retórica europeia revela mais sobre a impotência da União do que sobre o conflito em si. Trata-se de uma Europa moralista mas irrelevante, que confunde diplomacia com comentário.

Rússia e China condenaram prontamente o ataque. Moscovo, interessado em manter Teerão como parceiro em teatros secundários, como a Síria ou o Cáucaso, vê aqui uma oportunidade para denunciar a hipocrisia ocidental. Pequim, dependente da estabilidade petrolífera, ganha pontos junto do Sul Global com uma narrativa pacifista que mascara a sua própria projecção hegemónica.

No plano regional, os silêncios foram mais eloquentes do que as declarações. Os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e a Arábia Saudita — todos com canais discretos ou abertos com Israel — optaram por usa posição suave. Mas esse silêncio não é neutro: reflecte uma arquitectura geopolítica em mutação, onde o eixo anti-Irão, ainda que informal, se consolida como vector estruturante da ordem de segurança no Golfo. É revelador, no entanto, que Riade tenha instado Washington, nas semanas anteriores ao ataque, a dissuadir Israel de qualquer acção militar directa contra alvos iranianos ou sírios, temendo o colapso das negociações regionais e uma reacção em cadeia que afectasse a estabilidade energética e religiosa da Península Arábica.

A Casa Branca, consciente do risco, terá transmitido a preocupação, mas não interveio de forma vinculativa. No final, prevaleceu a lógica de autonomia estratégica israelita — e o resultado expôs tanto a fragilidade do consenso árabe como os limites da dissuasão americana. A normalização diplomática com Israel, iniciada com os Acordos de Abraão, não apenas resistiu à operação como se revelou funcional.

O que Netanyahu obteve foi triplo: reforço do poder interno, demonstração inequívoca de capacidade estratégica e o redesenho das linhas vermelhas do uso da força preventiva. Mas também desencadeou três consequências: fragilizou ainda mais o sistema de controlo nuclear global, incentivou novos equilíbrios informais baseados em actos unilaterais e empurrou o Médio Oriente para um estado de guerra não declarada mas permanente.

A verdadeira questão não é se Israel agiu com razão. A verdadeira questão é se o mundo está preparado para lidar com as consequências. Porque quando o domo é activado e as centrífugas são destruídas, o que resta não é a paz: é a administração do caos.

Opinião

Mais Opinião
IOL Footer MIN