No seu discurso de mais de uma hora no Knesset, quase exclusivamente focado no alegado "fim da guerra" de Israel na Faixa de Gaza, o presidente norte-americano mandou uma direta ao homólogo. Foi uma "intervenção impressionante" de um chefe de Estado nos assuntos internos de outro país – a menos de um ano das próximas eleições legislativas em Israel
Dois anos depois dos ataques sem precedentes do Hamas em Israel, a 7 de outubro de 2023, vislumbra-se finalmente uma nesga de paz, com base no acordo proposto pela administração norte-americana na semana passada e cuja primeira fase, que previa um cessar-fogo na Faixa de Gaza e a troca de reféns israelitas por palestinianos, foi posta em marcha ao longo do fim de semana.
Seguro de que “a guerra chegou ao fim”, como proclamou ainda a bordo do Air Force 1 à chegada a Jerusalém, esta segunda-feira de manhã, Donald Trump foi cabeça de cartaz do Parlamento israelita, o Knesset, onde discursou durante mais de uma hora sobre o que já foi conquistado e sobre o que ainda está por vir para inaugurar o que diz ser “a era dourada do Médio Oriente”. Pelo meio, mandou uma direta ao presidente israelita, Isaac Herzog, assumindo estar a acrescentar coisas ao discurso que estava previsto fazer.
“Tenho uma ideia, sr. presidente: porque é que não lhe concede um perdão?”, disse Trump referindo-se ao primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, réu em três processos judiciais desde 2019 por suspeitas de corrupção. “Charutos e champanhe, quem raio quer saber?”, acrescentou Trump, referindo-se aos alegados presentes ilícitos que o chefe do governo hebraico terá recebido de um magnata de Hollywood, peça central de uma das acusações. Num golpe de confusão, Trump referiu-se ainda a Netanyahu como “um dos grandes presidentes em tempos de guerra”.
Foi uma “intervenção impressionante na política interna e no sistema judicial de Israel, feita a partir do pódio do Knesset”, escrevia o Axios pouco depois. “Trump já se tinha pronunciado anteriormente sobre o julgamento de Netanyahu, mas no seu discurso foi mais longe do que nunca para reforçar a posição política interna do seu aliado.”
Essa tentativa de reforçar a posição de Netanyahu dentro de portas surge depois de dois anos de uma guerra que, segundo vários analistas, só foi prolongada para garantir a sobrevivência política de Netanyahu, à custa de mais de 67 mil vidas palestinianas, incluindo as de 18.500 crianças.
“Depois da catástrofe de 7 de outubro, a guerra tornou-se mais um instrumento para [Netanyahu] se manter no poder”, referia há alguns meses Raviv Drucker, jornalista de investigação israelita que coproduziu o filme The Bibi Files – “o motor são os casos de corrupção e tudo teve origem no facto de o primeiro-ministro não respeitar a lei”.
As crises domésticas de Netanyahu, como refere Drucker, têm sido o seu motor ao longo dos últimos 24 meses, com informações e detalhes sobre os vários casos que pendem sobre o primeiro-ministro israelita a serem obscurecidos por novas frentes de ataque – desde outubro de 2023, atacou a Faixa de Gaza, o Líbano, a Síria, o Iémen, o Irão e o Catar. Pelo caminho, tentou impedir a chegada aos cinemas nacionais e internacionais de “The Bibi Files”, um documentário montado com imagens dos interrogatórios policiais a que Netanyahu foi sujeito, que “argumenta que as ações de Netanyahu desde a sua aliança com a extrema-direita que pretende destruir o sistema judicial do país até ao prolongamento da guerra em curso em Gaza – podem estar todas relacionadas com os seus esforços para fugir às acusações que enfrenta”, como refere a revista TIME.
Em causa estão três processos distintos, o primeiro deles o processo 1000, o tal dos “charutos e champanhe”. Nele, Netanyahu é acusado de fraude e quebra de confiança face a alegações de que ele e a mulher, Sara, receberam presentes ilícitos caros do magnata de Hollywood Arnon Milchan, no valor de cerca de 177 mil euros, e também de que ele, Netanyahu, violou a legislação israelita em matéria de conflito de interesses quando prestou assistência a Milchan na renovação do seu visto de residência de longa duração nos EUA e o ajudou em “questões fiscais”.
Para além desse, Netanyahu enfrenta ainda o processo 2000, em que é acusado de fraude e quebra de confiança pela sua alegada tentativa de chegar a um acordo quid pro quo com o editor do jornal Yedioth Ahronoth, Arnon (Noni) Mozes, para este lhe garantir cobertura mediática mais positiva em troca de legislação que enfraquecesse o seu principal rival, o jornal Israel Hayom. Em tudo semelhante, o processo 4000, também conhecido como o Caso Bezeq-Walla, envolve alegadas decisões regulatórias da parte de Netanyahu para beneficiar financeiramente Shaul Elovitch, acionista da gigante de telecomunicações Bezeq, em centenas de milhões de shekels, em troca de cobertura noticiosa favorável ao seu governo no site de notícias Walla, detido pelo magnata de media.
Os frutos do apoio de Trump
Para Netanyahu, tudo não passa de uma caça às bruxas, precisamente a expressão que Trump tem usado para rejeitar acusações contra a sua pessoa e contra outros líderes mundiais alinhados consigo, como Jair Bolsonaro, o ex-presidente do Brasil. Netanyahu diz, desde o início e sem apresentar provas, que todas as acusações foram fabricadas como parte de um golpe político orquestrado pela polícia e pelo Ministério Público israelitas.
Estas acusações surgiram lado a lado com os enormes protestos que estavam a varrer Israel semanalmente antes dos ataques de 7 de outubro de 2023, perante as tentativas do governo para limitar o poder judiciário, uma reforma que contemplava, entre outras medidas, permitir maior influência do governo na seleção de juízes e restringir as capacidades dos magistrados para revogar legislação, arriscando criar aquilo que a jurista Kim Schappele deu o nome de "Frankenestado", uma democracia desfigurada com uma alta concentração de poder nas mãos do executivo.
Quando, em junho passado, o tribunal de Jerusalém decidiu avançar com o julgamento de Netanyahu, os ministros mais extremistas do seu governo saíram em sua defesa, com Bezalel Smotrich a acusar os procuradores de “um alheamento incrível”, ao “insistirem em ser pessoas pequenas, sem qualquer visão, estratégia ou compreensão da realidade, e sem discrição ou compreensão mínimas das prioridades e interesses nacionais”.
Ecoando as palavras de Smotrich, Itamar Ben Gvir, o responsável pela Segurança Nacional de Israel, criticou em comunicado a atitude do tribunal por estar “desligada da realidade” e reiterou um apelo que o próprio Trump fizera então na sua Truth Social – “O julgamento de Bibi Netanyahu deveria ser CANCELADO IMEDIATAMENTE ou deveria ser concedido um Perdão a um Grande Herói que tanto fez pelo Estado”, escreveu o presidente americano no final de junho.
Foi essa a mensagem que trouxe novamente à baila, desta vez em Israel, perante os deputados eleitos do país, menos de um mês depois de o próprio Herzog ter admitido numa entrevista que poderá mesmo conceder um indulto presidencial a Netanyahu dado que os casos judiciais que enfrenta “pesam muito sobre a sociedade israelita”.
Se a guerra em Gaza tiver mesmo chegado ao fim, como Trump acaba de anunciar, o que significa isso para Netanyahu neste contexto? Só mesmo um perdão poderá salvá-lo da prisão, quando falta menos de um ano para novas eleições legislativas em Israel. No seu discurso no Knesset, Trump também fez questão de referir que Netanyahu “é um líder muito popular, porque sabe como ganhar.” A questão é que não é, ou não era, a julgar pelo grosso das sondagens dos últimos meses.
Mas também aqui o apoio de Trump pode valer a Netanyahu a sua sobrevivência política. Se, há uma semana, uma sondagem mostrava que 45% dos israelitas queriam a demissão imediata do primeiro-ministro, o acordo de cessar-fogo parece ter vindo a adocicar o futuro de Netanyahu, com um inquérito de opinião há três dias, conduzido no rescaldo do anúncio de Trump, a mostrar o Likud de Netanyahu a subir nas intenções de voto. E nada garante que não continue a subir até à data das próximas legislativas, que têm de acontecer antes de 27 de outubro de 2026.
Como referia uma analista da CNN Internacional no sábado, “Trump encurralou Netanyahu, mas também pode tê-lo salvado”. Poderá o apoio de Trump ajudar a "reescrever o legado de Netanyahu como o primeiro-ministro que presidiu ao pior fracasso de segurança e à guerra mais longa de Israel", questionava Tal Shalev nesse artigo. Esse, responde logo a seguir, "será o derradeiro teste à memória dos eleitores israelitas".