EUA falam num acordo iminente de trégua em Gaza, mas o chefe do governo israelita continua a insistir na manutenção de tropas no enclave palestiniano, enquanto lida com enormes protestos nas ruas (que o seu ministro Ben Gvir quer ilegalizar). Com a morte de seis reféns levados pelo Hamas a 7 de outubro, pouco antes de as forças israelitas chegarem ao túnel onde eram mantidos, ressurge a pergunta: chegou finalmente a hora do adeus para Netanyahu?
Passavam quase 10 meses dos ataques perpetrados pelo Hamas a 7 de outubro quando Benjamin Netanyahu pediu desculpas pela primeira vez. “Pedir desculpa?”, perguntou o primeiro-ministro de Israel em agosto, numa entrevista exclusiva com a revista TIME. “Claro, claro. Peço desculpa, profundamente, por algo assim ter acontecido. Uma pessoa olha sempre para trás e diz ‘Poderíamos ter feito coisas para impedir isto?’”
Um mês depois, com centenas de milhares de pessoas mobilizadas nas ruas de Telavive e de outras cidades contra o governo na segunda-feira, surgiu outro pedido de desculpas, o primeiro dirigido por Netanyahu a familiares de reféns levados pelo grupo palestiniano há 11 meses, mais concretamente dirigido às famílias dos seis reféns encontrados mortos num túnel da Faixa de Gaza no sábado. “Às famílias dos seis reféns: peço-vos perdão por não termos conseguido trazê-los de volta vivos. Estivemos perto, mas não conseguimos.”
As desculpas foram apresentadas numa conferência de imprensa especial convocada pelo líder israelita face à greve geral que, apesar da enorme adesão, falhou em “parar a economia” como pedido pelo líder da oposição, Yair Lapid, e os dirigentes de vários sindicatos – sobretudo depois de um tribunal a ter declarado “ilegal”.
Na mesma conferência em Jerusalém, o primeiro-ministro manteve-se inflexível quanto ao que diz ser a única forma de “ganhar a guerra” em Gaza – manter tropas no chamado Corredor de Filadélfia, uma faixa de 14 quilómetros a ligar o enclave palestiniano ao Egito, e na estrada que percorre o território de leste a oeste – naquele que é um dos maiores entraves a um acordo de cessar-fogo, que o Hamas diz que só aceitará se todas as forças israelitas baterem em retirada de Gaza.
No rescaldo dos protestos, Alon Pinkas, antigo cônsul-geral de Israel em Nova Iorque, publicou um artigo de opinião no Guardian onde questionava: “Os israelitas têm mantido o seu desprezo pelo primeiro-ministro sob controlo, em nome do esforço de guerra, [mas] terá finalmente chegado a sua hora? [...] A resposta é: possivelmente – mas isso depende de quão sustentáveis são estes protestos.”
Netanyahu está a fazer o suficiente? "Não"
As pressões sobre Netanyahu não param de aumentar e não apenas internamente. Quando as forças hebraicas encontraram os corpos dos seis reféns e se confirmou que faziam parte da lista apresentada pelo Hamas para libertação sob um potencial acordo de trégua, o presidente norte-americano também deu um passo inédito – responsabilizar o primeiro-ministro israelita por não garantir a libertação das cerca de 100 pessoas que continuam sob cativeiro do Hamas.
Questionado por um jornalista da Casa Branca sobre se “Netanyahu está a fazer o suficiente” para alcançar um acordo, Joe Biden respondeu simplesmente: “Não.” Confrontado com a resposta, um Netanyahu visivelmente irritado respondeu: “Depois disto, pedem-nos que mostremos seriedade? Pedem-nos que façamos concessões? Que mensagem é que isso envia ao Hamas? Diz-lhes ‘matem mais reféns’. A pressão internacional devia ser dirigida a estes assassinos e não a Israel.”
Mais longe foi o governo do Reino Unido, que esta terça-feira anunciou que vai limitar o fornecimento de armas a Israel, face ao “claro risco” de virem a ser usadas para cometer “sérias violações”. O anúncio foi feito por David Lammy, chefe da diplomacia britânica, numa medida que abrange 30 das 350 licenças de exportação de armas, incluindo peças para caças, helicópteros e drones (uma decisão com mais peso político do que militar, se se considerar que a venda de armas pelo Reino Unido representa apenas 1% das importações de defesa israelitas).
“A avaliação que recebi não me permite concluir nada a não ser que, com certas exportações de armas do Reino Unido para Israel, existe um claro risco de poderem vir a ser usadas para cometer ou facilitar sérias violações do direito humanitário internacional”, disse Lammy, referindo-se à análise pedida pelo governo trabalhista quando chegou ao poder, em julho, com a ressalva de que essa avaliação preliminar não permite ainda apurar se Israel está ou não a cometer crimes de guerra e contra a humanidade.
Para a Amnistia Internacional e outros grupos de direitos humanos, a suspensão é “demasiado limitada”. Para o governo israelita, nas palavras de um ministro citado pela BBC, é uma “desilusão” e envia “a mensagem errada” num “momento sensível” para Israel.
Morte dos reféns era "tragicamente previsível"
Já não é só uma a guerra que Netanyahu e o seu gabinete de extrema-direita estão a travar. Quando falta cerca de um mês para o primeiro aniversário dos ataques do Hamas, que vitimaram cerca de 1.200 pessoas e resultaram em cerca de 250 reféns levados para a Faixa de Gaza, o balanço oficial da ofensiva armada contra o enclave aproxima-se dos 41 mil palestinianos mortos, com um estudo publicado na prestigiada revista britânica The Lancet a indicar que o verdadeiro número poderá ultrapassar os 186 mil. Mas as atenções deixaram há muito de estar apenas focadas na pequena faixa de território.
“A diferença agora”, escreve o editor da CNN Internacional Nic Robertson, “é que [Israel] está a travar várias guerras: contra o Hamas no sul, contra um inimigo hostil, o Hezbollah, na fronteira norte, contra uma alegada ameaça terrorista na Cisjordânia, para não falar da ameaça de retaliação do Irão pelo assassinato de um dirigente do Hamas em Teerão há um mês, ainda por cumprir.”
Estes desafios em múltiplas frentes continuam a testar as capacidades de malabarismo político de Netanyahu, que apesar de tudo tem conseguido manter as bolas no ar. Antes dos ataques de 7 de outubro, o governo já estava a enfrentar protestos em massa contra a sua planeada revisão do sistema judicial, que muitos em Israel classificaram como “um passo rumo ao autoritarismo”, por concentrar mais poderes no ramo executivo. E agora, repetem-se semanalmente os protestos por um cessar-fogo que assegure a libertação dos 101 reféns que, segundo contas do próprio governo, ainda estão vivos.
“Por mais zangados que os israelitas se sintam, o assassínio dos [seis] reféns era tragicamente previsível”, escreve Robertson. Yoav Gallant, o ministro que Netanyahu afastou do governo há alguns meses, “já tinha avisado que isto ia acontecer, bem como o líder da Mossad e o líder dos Serviços Gerais de Segurança, o Shabak. Mas mesmo assim, Netanyahu nunca quis um acordo de reféns que incluísse um cessar-fogo. Não quer nenhum acordo que não possa rotular de ‘vitória total’ – um objetivo falso e inatingível que estabeleceu para garantir que a guerra se prolonga.”
"Vão ter de dar alguma coisa aos palestinianos, por menor que seja"
Para o editor de diplomacia da CNN, Netanyahu dá por si “com menos opções do que nunca” e as tentativas do seu ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, de ilegalizar as manifestações só ameaçam piorar a situação. Num protesto no domingo à noite, enquanto agentes a cavalo tentavam reprimir a multidão, muitos manifestantes gritaram-lhes: “Não estamos contra a polícia, só contra o vosso patrão Ben Gvir.”
No dia seguinte, Gvir conseguiu que um tribunal alinhasse consigo e ordenasse a todos os funcionários públicos que voltassem ao trabalho, por considerar que a greve convocada para esse dia foi “politicamente motivada” em vez de estar relacionada com direitos dos trabalhadores, sendo por isso “ilegal”. Arnon Bar-David, o dirigente da Histadrut, a maior confederação sindical do país, disse respeitar a ordem judicial, mas sublinhou que “a greve de solidariedade foi um passo importante” e que não se arrepende de a ter convocado. “Provámos que, no que toca ao destino dos reféns, não há direita nem esquerda, apenas a vida ou a morte.”
Dias depois dos ataques de 7 de outubro, antes de fazer uma visita de solidariedade a Israel no rescaldo dos piores ataques sofridos no país desde a sua fundação em 1948, Biden fez um aviso a Netanyahu: “Deixei claro aos israelitas que penso que será um enorme erro acharem que vão ocupar Gaza e manter Gaza.” Mas 11 meses depois, esse continua a ser o objetivo final do governo israelita para “vencer a guerra”.
Com garantias da administração norte-americana sobre um “acordo iminente" ao estilo "pegar ou largar”, as questões sobre a sobrevivência política de Netanyahu voltam a ganhar espaço. “Os seus inúmeros fracassos em matéria de política externa, como o Irão, Gaza e as relações com os EUA, e as suas insuficiências internas – um golpe de Estado constitucional falhado, o elevado custo de vida, os conflitos sociais – não devem ocultar o facto de que é um político muito mais inteligente e astuto do que qualquer dos seus rivais, individualmente ou em conjunto”, refere o antigo cônsul de Israel em Nova Iorque.
“Formar uma coligação que tem no populismo e na demagogia a sua cola e conseguir sobreviver são as únicas coisas em que [Netanyahu] é bom. Mas há indícios de que chegou a um beco sem saída política”, adianta Alon Pinkas. “Em sondagens recentes, 70% dos israelitas exigem a sua demissão. O mesmo parece acontecer com a administração americana. A má gestão de Netanyahu quanto ao destino dos reféns pode ter sido uma manipulação demasiado grande – até mesmo para ele.”
O problema, aponta numa entrevista Daniel Levy, que integrou as negociações por uma solução de dois Estados nos Acordos de Oslo, em 1993, “é a forma como Israel lê o mundo e a região, e o tipo de alternativa que é oferecida para o lugar de Netanyahu”. “A oposição parece sugerir que pode encontrar uma causa comum para trabalhar com a América e com os Estados árabes [aliados] contra o Eixo de Resistência”, adianta o diretor do Projeto EUA-Médio Oriente. Mas “para o fazer, terá de dar alguma coisa em troca aos palestinianos, por menor que seja”.
Na reação à conferência de Netanyahu, em que o primeiro-ministro se fez acompanhar de mapas e gráficos para "provar" que Israel não pode abandonar Gaza, o principal líder da oposição acusou o rival de fazer "propaganda política sem qualquer ligação com a realidade". Citado pelo Times of Israel, Yair Lapid destacou: "Nenhum profissional acredita nesta conversa, nem o pessoal de segurança, nem o sistema internacional, nem os combatentes que estão efetivamente em Gaza e que conhecem a realidade."
"As perspetivas para Israel são sombrias", refere Nic Robertson na sua análise. "As hipóteses de um momento catártico de libertação dos reféns estão a desaparecer – juntamente com a sorte política de Netanyahu."