"O melhor país do mundo para ser mulher" está a ser processado por misoginia

CNN , Ivana Kottasová
24 jan 2022, 22:00
Membros do Öfgar, um grupo feminista islandês que luta contra a violência de género, fotografadas em Reiquiavique, em outubro de 2021.

O corpo de Maria Árnadóttir tinha vários hematomas, que variavam de cor desde o amarelo pálido ao roxo.

De acordo com documentos judiciais, as lesões foram provocadas pelo namorado de Maria, que lhe deu vários empurrões pela sala, enquanto tentava tirar-lhe o telemóvel quando ela ameaçou chamar a polícia. Durante dias após o ataque, Maria teve dificuldade em respirar. Até que foi parar às urgências, pelo que indicam os documentos.

No seu apartamento, nos subúrbios de Reiquiavique, ela disse à CNN que o namorado já a tinha atacado, mas nunca de forma tão cruel como dessa vez, em julho de 2016. "Pensei mesmo que ia morrer. Ele empurrava-me para todo o lado. Pensei: ‘É hoje que vou morrer'", disse ela.

Meses depois, ganhou coragem para ir a uma esquadra entregar fotografias das lesões, relatórios médicos, uma lista de testemunhas da violência e abusos psicológicos a que foi sujeita, bem como mensagens de texto do alegado atacante, com quem na altura já tinha terminado o relacionamento. Maria diz que ele confessou a agressão e ameaçou divulgar fotografias dela nua, se ela fizesse queixa dele. Existe um processo judicial com todos esses documentos.

De acordo com os documentos, o homem negou as agressões, mas reconheceu que a ameaçou. Embora diga que nunca tencionou cumprir as ameaças. A CNN conseguiu falar com o advogado do homem.

Mas, para a polícia, as provas não eram suficientes. Um ano e meio depois de apresentar queixa, informaram Maria de que o caso fora arquivado, pois não levaria a uma condenação.

Mais tarde, ela descobriu que isto não era verdade. O caso não tinha sido arquivado. A polícia não conseguiu interrogar o acusado e, consequentemente, o prazo de prescrição terminou, segundo as autoridades judiciais que mais tarde reviram o caso.

Maria Árnadóttir foi uma de várias mulheres que levaram o seu Governo ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por dizerem que se trata de um sistema judicial misógino que viola sistematicamente os direitos das vítimas de violência de género.

Qual é a estranha reviravolta nesta história? Estas mulheres vivem na Islândia, há muito aclamada como o país com maior igualdade de género.

Maria Árnadóttir foi uma das mulheres que processou a Islândia por violação dos direitos das vítimas de violência doméstica.

Em teoria, a Islândia é um excelente país para qualquer mulher. Durante 12 meses consecutivos, foi eleito o melhor país para a igualdade de género pelo Fórum Económico Mundial.

Foi pioneiro na igualdade salarial e nas leis anti-discriminação. As mulheres detêm 47% dos assentos no Parlamento e constituem 46% dos conselhos de administração das empresas islandesas.

As creches são fortemente subsidiadas e acessíveis a toda a gente. A assistência à maternidade é gratuita.

Mas, para Maria Árnadóttir e muitas outras mulheres que lutam para que se faça justiça, o retrato da Islândia como paraíso feminista está longe da realidade. Suficientemente longe para terem levado o país a tribunal.

A ação, instaurada em março, foi coordenada por várias ONG islandesas, como a Stígamót, uma organização não-lucrativa que faz campanha contra a violência doméstica e sexual, além de dar aconselhamento a quem sobrevive.

Steinunn Guðjónsdóttir, porta-voz e responsável pela angariação de fundos da Stígamót, disse à CNN que o grupo reviu alguns casos recentes de alegada violência contra mulheres que tinham sido arquivados e concluiu que os direitos das vítimas tinham alegadamente sido violados em vários.

Steinunn Guðjónsdóttir é a porta-voz e responsável pela angariação de fundos da Stigamot, uma ONG que luta contra a violência sexual, dando aconselhamento a sobreviventes e realizando workshops de prevenção.

Segundo Guðjónsdóttir, nestes incluíam-se exemplos em que as provas tinham sido ignoradas, os prazos de prescrição tinham terminado por inação da polícia, a vítima tinha sido culpabilizada ou houvera uma total falta de transparência.

Para Guðjónsdóttir, ainda há uma diferença significativa entre a lei e a forma como ela é implementada.

"Para o sistema judicial, a violação é um crime muito, muito, muito grave, em termos de punição, mas não são disponibilizados meios nem é dedicada atenção suficiente a estes casos. Quando há um homicídio, o que raramente acontece na Islândia, as forças policiais em peso investigam e esta torna-se uma grande prioridade. Não acontece o mesmo com a violação", diz ela.

A transparência também é um problema, diz Guðjónsdóttir, sublinhando que ao abrigo da lei islandesa, as vítimas não têm o direito de consultar os seus processos, o que significa que não podem acompanhar o progresso da investigação.

Num comunicado à CNN, o Ministério da Justiça islandês afirma que apesar "de ter concluído que foi cometido um determinado erro durante a investigação [do caso de Árnadóttir], a opinião do Governo é que o erro não atinge o nível mínimo de gravidade" para se qualificar como violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A Polícia islandesa não comentou o caso, remetendo-o para o Ministério da Justiça.

O paraíso feminista com um problema de violência de género

Os homicídios podem ser raros na Islândia, mas as violações não.

De acordo com um estudo de referência de 2018, um quarto das mulheres islandesas já foi vítima de violação ou tentativa de violação ao longo da sua vida e cerca de 40% este sujeita a violência física ou sexual. Esse número é significativamente maior do que a média global. A Organização Mundial de Saúde refere que cerca de 30% das mulheres de todo o mundo já foi sujeita a violência física ou sexual por um parceiro íntimo ou violência sexual por um não-parceiro.

Unnur Anna Valdimarsdóttir e Arna Hauksdóttir, duas especialistas em saúde pública e epidemiologistas na Universidade da Islândia que levaram a cabo a investigação, chegaram a quase todas as islandesas. Acabaram por entrevistar mais de 30 mil pessoas, quase um terço da população feminina adulta do país, distribuída pelas zonas rural e urbana, e representando de modo transversal a sociedade islandesa.

Elas reconhecem que o resultado do estudo foi chocante. "Ficámos estupefactas com a elevada proporção de mulheres que já tinham sido vítimas de violência física ou sexual", disse Hauksdóttir à CNN.

"As pessoas não queriam acreditar que se tratavam de números reais", acrescentou Valdimarsdóttir. "A reação espontânea é basicamente: '40%?! Nem pensar!'"

Unnur Anna Valdimarsdóttir e Arna Hauksdóttir são especialistas em saúde pública e epidemiologistas na Universidade da Islândia.

"Mesmo eu, devo admitir que não quis acreditar", disse ela. "Mas depois comecei a falar com as minhas amigas, falámos muito sobre isso e pareceu-me plausível... Num grupo de 20 amigas nossas... eu diria que talvez oito já passaram por isso."

Valdimarsdóttir e Hauksdóttir disseram que os resultados foram especialmente difíceis de coadunar com a cultura enraizada de igualdade de género na Islândia.

"A Islândia é um ótimo país para ser mulher. Temos acesso a cuidados de saúde, cuidados infantis, ao ensino e a muitas coisas que a maioria de pessoas neste planeta não tem... Contudo, temos estes números", disse Hauksdóttir.

Segundo ela, é possível que os próprios  progressos que a Islândia fez em termos de igualdade de género possam explicar o número relativamente elevado de mulheres vítimas de violência.

"Em sociedades onde há igualdade de género, vemos números elevados de casos de violência e isso é paradoxal. Mas isso pode acontecer porque as mulheres estão bem cientes de que estão a ser abusadas de alguma forma", diz ela. "Será assim noutros países? Estes números poderão ser mais fiáveis."

O estudo revelou outro aspeto preocupante: a proporção de mulheres que foram vítimas de violência era muito semelhante em todos os quadrantes da sociedade islandesa. "Diferentes contextos, diferentes níveis de escolaridade, diferentes níveis de rendimentos... Por isso, não é um problema de estrato social", disse Valdimarsdóttir. "Então, começamos a pensar: 'Será algum tipo de lei da natureza? Será uma parte essencial do comportamento humano?'"

‘A maldição geracional’

Um grupo que não ficou surpreendido com os resultados do estudo foi o Öfgar, um coletivo feminista que pretende elucidar a população quanto à cultura da violência e da violação.

Na verdade, este grupo pensa que os números reais podem ser mais elevados.

"Não conheço uma namorada que não tenha sido sexualmente abusada, assediada, molestada ou estado numa relação tóxica", disse à CNN Helga Ben, uma das ativistas, durante uma entrevista com o grupo num café, no centro de Reiquiavique.

Uma a uma, as cinco mulheres descreveram as suas experiências com violação no namoro, consentimento forçado, abuso e assédio sexual. Falaram sobre a vergonha por que passaram vezes sem conta.

Chamam-lhe "maldição geracional".

"A ideia de que a Islândia é um paraíso feminista foi-nos impingida desde que éramos crianças: 'Porque estás tão revoltada? Não vês as mulheres dos países de terceiro mundo?... Estás tão bem aqui'", disse Ólöf Tara, uma das mulheres do grupo.

"Mas nunca tivemos o poder de levantar a voz contra a violência que as mulheres têm enfrentado ao longo dos anos. A violência aumenta com o silêncio. Quando falamos, há alguém que se identifica com a nossa história e percebe que essa é também a sua história. E então, essa pessoa pode pedir ajuda e interromper esse padrão, pois é um padrão geracional. Foi-me transmitido pela minha mãe, que lhe foi transmitido pela mãe dela, tal como foi transmitido à minha avó pela mãe dela. E eu vou transmiti-lo às minhas filhas, se não falarmos abertamente sobre isso", acrescenta Hulda Hrund Sigmundsdóttir.

O Öfgar assimiu como missão o trabalho com os jovens, tentando consciencializá-los através de vídeos nas redes sociais sobre consentimento sexual e violação no namoro.

Também oferece ajuda e apoio às vítimas e desempenhou um papel crucial na segunda vaga do movimento #MeToo na Islândia.

O grupo entendeu que precisava "de agir", pois não parava de receber acusações de violação e assédio sexual por parte de um homem, uma celebridade islandesa.

Tanja Ísfjörð é uma das ativistas pelos direitos das mulheres do grupo Öfgar.

"Éramos abordados por vítimas, que nos contavam o que ele tinha feito e havia um período de 10 anos de violência contra mulheres, contra raparigas, e nós pensámos: “Isto não pode continuar. Ele não pode continuar a fazer isto", disse Tanja Ísfjörð, que participou na reunião remotamente, falando para o restante grupo a partir de um portátil.

Sem identificá-lo, o Öfgar publicou testemunhos de mais de 20 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso e assédio por parte deste homem, provocando uma onda de protestos por todo o país. Surgiram mais vítimas, mas o grupo também sofreu represálias, entre as quais ameaças pessoais.

"Fomos acusadas de inventar histórias e tentar cancelar [o homem], mas as únicas pessoas que foram canceladas foram as sobreviventes", disse Tanja Ísfjörð.

O homem foi retirado do alinhamento de um grande evento cultural na Islândia e alega que sofreu consequências a nível profissional, na sequência das acusações. Negou que tenha cometido qualquer delito e ameaçou processar o grupo. Não foi acusado de qualquer crime. A CNN tentou por várias vezes falar com ele, mas sem êxito.

Estas revelações desencadearam uma nova vaga do movimento #MeToo na Islândia, e muitos outros homens, entre os quais membros da seleção nacional de futebol, foram acusados de conduta sexual imprópria e encobrimento. O comité executivo da Associação Islandesa de Futebol demitiu-se em agosto, quando o seu presidente, Gudni Bergsson, negou que a associação tinha recebido queixas de violência sexual. Mais tarde, provou-se que isto era falso. O presumível atacante, identificado como Kolbeinn Sigþórsson, emitiu depois um comunicado, admitindo que tivera uma conduta imprópria, mas negando qualquer tipo de violência.

A “forma correta” não está a funcionar

As retaliações ao movimento #MeToo na Islândia foram um dos motivos para a ação judicial contra o Governo.

"Com o #MeToo, agora as mulheres denunciavam os homens que as violavam, mesmo que não tivessem apresentado queixa contra eles, e muitas pessoas diziam: 'Isto não pode ser assim. Tem de ser feito da forma correta'", disse Guðjónsdóttir à CNN.

"Há muita pressão sobre as vítimas para fazerem ' o que é correto', apresentar queixa e tentar condenar o agressor. Mas a 'forma correta' não está a funcionar. A grande maioria dos casos nem sequer vai a tribunal. Então, não chega a haver qualquer julgamento sobre a inocência ou culpa do agressor. É uma confusão", diz ela.

Deverá demorar vários anos até que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos chegue a uma decisão sobre este processo. Entretanto, a luta de Árnadóttir continua.

Desde que lhe diagnosticaram perturbação de stress pós-traumático (PSPT), teve de tirar uma licença no emprego, e por vezes ainda tem dificuldade em enfrentar as tarefas do dia a dia. Para ela, os seus problemas de saúde mental devem-se ao sistema judicial, que lhe falhou.

"O Governo islandês reconhece erros na investigação do caso, resultando no seu arquivamento, devido ao fim da data de prescrição", disse à CNN em comunicado, Fjalar Sigurðarson, do Ministério da Justiça da Islândia.

Disse também que o motivo para o atraso na investigação foi a "incerteza" sobre que acusações deviam ser incluídas e acrescentou que "haver casos que prescrevem é muito incomum nos processos penais da Islândia".

Enquanto o caso das agressões a Árnadóttir prescreveu, o seu ex-companheiro foi condenado por tê-la ameaçado em 2020. De acordo com documentos judiciais, ele admitiu que enviou as ameaças, mas disse que nunca tencionou levá-las por diante. Foi condenado a 45 dias de prisão suspensa e obrigado a pagar uma indemnização, de acordo com os documentos judiciais acessíveis ao público. O Tribunal Nacional rejeitou o recurso dele, no início deste ano, mantendo a decisão anterior. A CNN tentou falar com o advogado do homem.

"Isto só mostra que o caso foi levado a sério pelo sistema judicial", disse Sigurðarson.

Árnadóttir dedicou toda a sua energia ao ativismo, falando sobre a sua experiência e conseguindo a atenção de alguns altos representantes islandeses. Enquanto jurista, falou do caso dela ao Ministério da Justiça, tentando implantar reformas.

A Comissária Nacional da Polícia islandesa, Sigríður Björk Guðjónsdóttir pediu-lhe desculpas publicamente "pelos danos que ela sofreu pelo nosso sistema", sublinhando que a Polícia está a trabalhar em reformas e "a adotar uma abordagem orientada para as vítimas" nos casos de violência de género.

Existe um certo dinamismo no sentido da reforma, e para Árnadóttir, é isso que importa. "Eu tenho uma filha, tenho amigas. Não quero que nenhuma delas passe pelo que eu passei", diz ela. "Temos de mudar o sistema."

Correção: Esta história foi atualizada para clarificar as conclusões de um estudo islandês, segundo o qual 40% das mulheres desse país tinham sido sujeitas a agressões físicas ou sexuais, independentemente da identidade do agressor.

Europa

Mais Europa

Patrocinados