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O pesadelo fiscal de quem tem ações em Bolsa (e o erro no IRS nos incentivos aos trabalhadores)

27 jun, 12:03
Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) já começou a reembolsar os contribuintes. (Pexels)

O presente envenenado: como o Fisco trava o investimento e penaliza os pequenos investidores. Bernardo Mota Veiga (d)escreve como a política fiscal “castiga quem quer investir, poupar, empreender ou enriquecer com esforço e risco próprio”

A armadilha fiscal no Orçamento de Estado de 2022

A Lei do Orçamento do Estado para 2022 (Lei n.º 12/2022, de 27 de junho) introduziu uma alteração fiscal profunda — e polémica — com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023. Passou a ser obrigatório englobar mais-valias mobiliárias (ações, fundos, etc.) detidas por menos de 365 dias, mas apenas para contribuintes com rendimento coletável anual acima de 75.009 euros (hoje, 81.199 euros).

Na prática, isso significa que as mais-valias deixam de ser tributadas autonomamente a 28% e passam a somar-se ao rendimento do trabalho, sujeitas à taxa progressiva de IRS, que pode chegar aos 48%.

A mudança que abalou, sobretudo, os pequenos investidores

Antes, o englobamento era opcional — e usado sobretudo por quem queria deduzir perdas. Agora, tornou-se um pesadelo fiscal para quem não mantiver ações por pelo menos um ano.

Esta alteração afeta, de forma significativa, os pequenos investidores mais ativos, que reinvestem regularmente para maximizar rendimentos. O Governo classificou estes ganhos como “especulativos”, mas a fronteira de 365 dias parece, no mínimo, arbitrária: um investidor que detém ações por 367 dias será “não especulativo”, mas outro que vende ao fim de 363 dias já o é?

A medida ignora um princípio básico da economia: a rotação de capital é uma ferramenta legítima para aumentar rendimento sem aumentar recursos. Penalizá-la é dissuadir a eficiência e desincentivar o dinamismo dos mercados financeiros. Um capital que circula menos gera menos liquidez, menos transparência e menos capacidade de financiamento empresarial.

Enquanto se protege o investidor de longo prazo, ignora-se quem pretende construir rendimento com horizontes mais curtos, frequentemente por necessidade e não por especulação. Muitos destes são jovens, freelancers, pequenos aforradores que um dia podem ter dinheiro para investir e no outro precisar dele para comprar um super-computador.

Como alertou a Associação de Investidores de Portugal, “a medida pode travar a literacia financeira e desincentivar o uso responsável do mercado de capitais como alternativa à poupança tradicional”.

"Stock options": um modelo de valorização partilhada... penalizado

A fiscalidade apertou também sobre os planos de "stock options" [opções de compra de ações], uma das formas mais modernas de remuneração e retenção de talento, muito usada por startups e empresas tecnológicas.

Este modelo, comum nos EUA e cada vez mais adotado em Portugal, permite que colaboradores comprem ações da empresa a um preço fixado no passado, geralmente mais baixo, beneficiando da valorização da empresa ao longo do tempo. É um modelo que liga diretamente o sucesso da empresa ao rendimento do colaborador.

Imaginemos que uma empresa é avaliada em 100 mil euros e tem 100 mil ações — cada uma vale 1€. Um colaborador recebe mil "stock options" com exercício possível ao fim de três anos. Se, ao fim desses três anos, a empresa valer 300 mil euros, cada ação valerá 3€.

O colaborador pode então comprar mil ações por 1€ (total de mil euros) e vendê-las no mercado por três mil euros, obtendo uma mais-valia de dois mil euros.

Antes, essa mais-valia era tributada como rendimento de capital: 28%. Agora, se não forem cumpridas várias condições específicas, poderá ser tributada como rendimento do trabalho em até 48%.

Um novo regime... com muitas armadilhas

O Orçamento de 2023 introduziu um regime fiscal especial para "stock options", com diferimento da tributação até à venda das ações e isenção de 50% da mais-valia, resultando numa taxa efetiva de 14%.

Mas há condições:

  • o trabalhador tem de manter as ações por pelo menos 12 meses após o exercício;
  • a empresa tem de cumprir critérios como ser PME ou startup tecnológica;
  • o plano tem de estar formalmente comunicado às Finanças;
  • se a empresa deixar de cumprir os critérios, o trabalhador pode perder o benefício sem ser avisado.

Em teoria, este regime protege os colaboradores. Na prática, introduz complexidade, incerteza e risco fiscal para quem apenas quer capitalizar o seu esforço.

O dilema de quem investe com o seu salário

Voltemos ao colaborador que compra as ações: se quiser usufruir do regime favorável, tem de imobilizar mil euros do seu próprio bolso durante 12 meses, correndo o risco de a empresa desvalorizar nesse tempo. Mais: pode até nem ter recursos para comprar as "stock options", quanto mais para as manter um ano. Neste caso, se quiser fazer uma transação em simultâneo – o que é mais fácil de executar e financiar -, não terá alternativa senão sofrer o impacto fiscal. Perde o benefício e a mais-valia é englobada como rendimento de trabalho — potencialmente tributada a 48%.

Este risco fiscal, aliado à instabilidade das regras, afasta trabalhadores e investidores de um modelo que deveria ser incentivado, não punido. Desincentiva o mérito, o risco e o alinhamento entre empresa e colaborador.

Investimento a prazo... imposto a gosto?

O Governo diz querer incentivar o investimento de longo prazo — e há argumentos válidos nesse sentido. Mas definir arbitrariamente um "prazo mínimo" e aplicar taxas punitivas fora desse intervalo é transformar a política fiscal num instrumento de planeamento financeiro autoritário.

Pior: se hoje a regra se aplica a ações, quem garante que amanhã não se estende ao imobiliário? O racional é o mesmo — e o risco de ingerência fiscal não é fantasia, é tendência.

Valeu a pena? O Estado encaixou uma fortuna?

Não! Segundo declarações do então ministro das Finanças, João Leão, a medida previa uma receita fiscal adicional de cerca de 10 milhões de euros. Uma quantia simbólica, se pensarmos que representa menos de 0,005% das receitas fiscais anuais do Estado. Ou seja, o impacto orçamental foi reduzido — mas o impacto social e económico foi considerável. Para além disso, fica o precedente.

“A medida teve mais valor político do que económico”, admitiu uma fonte do Ministério na altura, segundo o Jornal de Negócios.

Fiscalidade inteligente, não punitiva

Portugal precisa de uma política fiscal que incentive, e não castigue, a criação de valor. Por exemplo, poderia manter a taxa autónoma de 28% para mais-valias de curto prazo, mas permitir o englobamento apenas se o contribuinte o solicitar — tal como já acontecia. Não deve ser o tempo a penalizar um investimento.

Além disso, o regime de "stock options" deveria ser automático e simplificado para empresas com menos de 15 anos de atividade — reduzindo a burocracia sem pôr em causa a justiça fiscal. O rendimento de capital comporta risco pelo que ou se desincentiva por completo o investimento, afetando negativamente as empresas e a economia, ou deve ser incentivado com uma taxa de imposto razoável e que permita acomodar esse risco.

A atual política fiscal castiga quem quer investir, poupar, empreender ou enriquecer com esforço e risco próprio. Pior ainda: dificulta os modelos modernos de compensação usados por empresas inovadoras para atrair talento sem se descapitalizar.

A ideia de justiça fiscal não pode passar por igualar todos por baixo. Tem de proteger quem arrisca, quem poupa, quem investe e quem constrói. E essa proteção começa com regras claras, simples e estáveis.

Portugal não precisa de impostos que desconfiam do sucesso — precisa de um Estado que reconheça que criar riqueza, desde que de forma legítima, é uma virtude. Não uma suspeita.

 

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