Anúncio da extinção da polícia da moralidade terá sido uma "má interpretação" das palavras do procurador-geral Mohamad Jafar Montazeri, que também anunciou a revisão da lei do véu islâmico
A notícia de que a polícia da moralidade iraniana tinha sido abolida percorreu mundo, mas o canal de televisão estatal Al-Alam vem agora desmentir a interpretação da "imprensa estrangeira". Afinal, "nenhuma fonte da República Islâmica do Irão" confirmou o fim da Patrulha de Orientação e as amplamente citadas declarações do procurador-geral do país referiam-se, apenas, à separação do poder judicial e da polícia da moralidade.
Mohamad Jafar Montazeri declarou, no sábado, que a polícia da moralidade "nada tinha que ver com o poder judicial" e que "tinha sido abolida a partir do mesmo local onde fora fundada". O procurador-geral advertiu, porém, que o poder judicial continuaria a "monitorizar o comportamento da sociedade". Os comentários foram feitos à margem de uma cerimónia religiosa na cidade sagrada de Qom, a sudoeste de Teerão.
O canal de televisão estatal acusou a "imprensa estrangeira" de "tentar interpretar estas palavras como se a República Islâmica estivesse a recuar na questão do hijab e da modéstia, alegando que isto se devia aos recentes protestos". Recorde-se que o Irão tem sido palco de sucessivas manifestações ao longo de mais de três meses, despoletadas após a morte da jovem Mahsa Amini sob custódia policial.
De acordo com a mesma fonte, a versão oficial será outra. "Nenhuma fonte da República Islâmica do Irão disse que a Patrulha de Orientação tinha sido encerrada" e os comentários de Montazeri referem-se apenas a uma separação do poder judicial e da polícia da moralidade - que continuará sob supervisão do Ministério do Interior.
Nenhuma fonte oficial do governo se pronunciou sobre o assunto até ao momento, mantendo-se por enquanto a incerteza face à posição dos líderes iranianos. As declarações do procurador-geral foram inicialmente divulgadas no sábado, e retificadas pela imprensa no domingo: em nenhum destes momentos (e mesmo perante toda a controvérsia) foi divulgada uma declaração oficial do governo a confirmar ou a refutar qualquer uma das versões.
Lei do véu islâmico está a ser revista
No mesmo evento, o procurador-geral Mohamad Jafar Montazeri acrescentou que o parlamento e o poder judicial do Irão estão a rever a lei que torna obrigatório o uso do véu islâmico, em vigor após a Revolução Islâmica de 1979. O uso "adequado" do hijab é obrigatório para todas as mulheres e está diretamente relacionado com a lei da moralidade, que o supervisiona.
"Sabemos que se sentem angustiados quando vêem mulheres sem o véu islâmico nas cidades. Pensam que os nossos funcionários estão em silêncio em relação a este assunto? Como alguém que está por dentro desta questão, posso afirmar que tanto o parlamento como o poder judicial estão a trabalhar [neste assunto]. Ontem, por exemplo, tivemos um encontro com a comissão cultural do parlamento e vão poder ver os resultados daqui a uma semana ou duas", afirmou, citado pela agência estatal ISNA.
As declarações do procurador-geral parecem sugerir, portanto, que a revisão da lei pretende reforçar a obrigatoriedade do véu islâmico e não satisfazer as exigências feitas pelos protestantes.
Protestos não significam "que o regime caia amanhã", mas vão "abrir brechas no regime"
José Brissos-Lino, diretor do mestrado em Ciências da Religião na Universidade Lusófona, considera que as versões aparentemente contraditórias da extinção da lei da moralidade indicam "uma luta no interior do mais alto nível do poder iraniano", em que haverá uma facção mais aberta a uma leitura liberal do Corão e outra mais conservadora.
Em declarações à CNN Portugal, o especialista enfatiza que, "ao longo da História, as grandes religiões foram feitas no masculino e sempre tiveram dificuldade em lidar com o feminino" - e os protestos no Irão são liderados maioritariamente por mulheres. O governo iraniano encontra-se numa posição inédita, com a qual "não sabe lidar", mas deverá "tentar uma medida ou outra para acalmar os ânimos", quer dos protestantes, quer da comunidade internacional.
José Brissos-Lino reforça ainda que, independentemente da decisão a adoptar pelas autoridades iranianas, "a revolução já chegou às universidades", onde se concentra uma comunidade "unida em torno da causa". "Não significa que o regime caia amanhã", adverte o especialista, mas os protestos em curso vão, certamente, "abrir brechas no regime".