Ali Khamenei quer matar quem anda a envenenar raparigas iranianas. E a teoria do agente organofosforado não convence

10 mar 2023, 16:40
Tributo a Mahsa Amini no Mundial 2022 (AP Photo/Frank Augstein)

"As raparigas caíam no chão e choravam, algumas não conseguiam andar"

Raparigas que adoecem misteriosamente, intoxicadas, ambulâncias nas escolas, pais que assistem e choram impotentes: tem sido assim desde novembro por todo o Irão, onde se estima que mais de 1.000 raparigas já tenham sido vítimas de envenenamento em escolas femininas. Embora não haja números oficiais devido às limitações da imprensa no país, sabe-se que os casos começaram na cidade de Qom e que já se registaram em dezenas de escolas de várias províncias do país.

Só na semana passada houve ataques em 26 escolas e dezenas de alunas tiveram de ser hospitalizadas. Nas situações descritas, as estudantes relatam problemas respiratórios, tonturas, cansaço e dores de cabeça. Algumas jovens dizem terem também sentido cheiros estranhos: "Havia um cheiro amargo, havia um cheiro também lá fora. Depois senti-me mal", afirmou uma das vítimas à CNN Internacional. Outra testemunha contou à BBC que "sentiu um cheiro muito desagradável, como se fosse fruta podre mas mais intenso".

A grande maioria das escolas afetadas são destinadas apenas a raparigas - apesar de uma escola de rapazes também ter sido alvo -, o que sugere que os ataques não foram acidentais. "As raparigas caíam no chão e choravam, algumas não conseguiam andar, não queriam deixar as colegas", contou uma das vítimas à CNN Internacional.

Os casos estão a deixar o Irão ainda mais em sobressalto, agravando o clima de contestação social que persiste há vários meses depois da morte da jovem Mahsa Amini. Os pais pedem uma resposta do regime iraniano, muitos já começaram a impedir que as filhas frequentem a escola.

As autoridades iranianas garantiram que já começaram a investigar, mas os contornos poucos claros dos ataques também lançam um manto de suspeição sobre o governo da república islâmica, que tem reagido com mão pesada às manifestações no país.

Um agente organofosforado fraco?

Em vários vídeos partilhadas nas redes sociais, as raparigas queixam-se de gás lacrimogéneo, que tem sido amplamente usado pelo regime para reprimir os protestos no país. O especialista em armas químicas Dan Kaszeta, membro do Royal United Services Institute, um centro de investigação sobre segurança e defesa do Reino Unido, afirma que esta hipótese é "plausível, de certa maneira", porque o gás lacrimogéneo, quando é mal feito, pode libertar "muito lixo" com vários cheiros.

Ainda assim, o especialista nota que em casos como estes "descobrir a substância" que causa os incidentes é "muitas vezes a única prova válida" mas é "extremamente difícil" de conseguir. Como estes agentes se podem dissipar ou degradar rapidamente, recolher uma amostra para que seja usada como prova exige que se esteja "no lugar à hora da exposição e com o equipamento certo".

Amostras de sangue recolhidas a algumas raparigas iranianas não detetaram toxinas, de acordo com Alastair Hair, professor de toxicologia da Universidade de Leeds, que afirmou à BBC ter recebido estes resultados a partir de fontes não oficiais do Irão. Mas o especialista, que tem investigado ataques com armas químicas em todo o mundo, salienta que não se pode descartar a hipótese de envenenamento. "É difícil excluir alguma coisa a esta altura. Para isso seria necessário analisar uma série de variáveis e não é possível", afirmou.

A hipótese de estarmos perante um agente organofosforado fraco, amplamente usado na agricultura como pesticida, foi avançada pelo jornalista Deepa Parent, que tem feito reportagens para o jornal Guardian. "Os ataques não são sofisticados, de todo. Um médico disse-me que com base nos sintomas que temos visto é provável que seja um agente organofosforado fraco usado na agricultura", sublinha o repórter. Mas Alastair Hair considera a teoria pouco provável. 

"O que é significativo e diferente nestes casos é que a maioria das vítimas recupera muito rapidamente - ao contrário da maioria das vítimas de envenenamento, que ficam doentes durante muito tempo", acrescenta.

Apesar de a maioria das estudantes não ter sequelas graves, a BBC destaca o caso de uma rapariga que não conseguiu andar durante uma semana por se sentir "paralisada" e que outros casos semelhantes também terem foram reportados.

O primeiro ataque conhecido aconteceu a 30 de novembro numa escola na cidade de Qom, a cerca de 125 quilómetros de Teerão, que acolhe alguns dos mais importantes monumentos e santuários xiitas. Dezoito raparigas adoeceram e foram hospitalizadas. Os envenenamentos foram-se repetindo e estenderam-se depois a outras partes do país: já ocorreram em pelo menos 58 escolas de oito províncias iranianas.

Foi também através das redes sociais que se foi conhecendo a proporção dos acontecimentos: a BBC analisou dezenas de vídeos partilhados e conseguiu identificar vários estabelecimentos de ensino. Nessas imagens surgem multidões junto às escolas, estudantes em aflição estendidos em macas, outros a serem levados em ambulâncias.

Qual a razão para os ataques serem apenas em escolas de raparigas?

O facto de o Irão viver há meses em clima de grande contestação social desde logo fez com que muitos iranianos e até observadores internacionais questionassem se estes ataques não fariam parte dos esforços do regime para reprimir os movimentos de oposição que têm surgido desde a morte de Mahsa Amini às mãos da "polícia da moralidade". Não só os primeiros a encherem as ruas em protesto contra a morte de Amini foram os jovens estudantes, com muitos a acabarem detidos, como foram jovens mulheres a liderarem as ações de luta. Nas redes sociais, alunas partilharam fotografias nas salas de aulas contra as políticas opressivas, com algumas a mostrarem-se a queimar a imagem do líder supremo do país, Ali Khamenei.

Por outro lado, ganhou também força a hipótese de serem militantes conservadores e extremistas que se opõem a que as raparigas estudem. Esta possibilidade está a provocar muitas ondas de choque - é que as leis de Teerão são conservadoras e autoritárias mas a educação das raparigas não só é aceite como tem registado avanços muito relevantes nos últimos anos. A taxa de literacia das mulheres subiu exponencialmente nas últimas décadas: era de 26% antes da revolução islâmica, em 1976, e atingiu os 85% em 2021. De resto, desde 2011 que há mais mulheres do que homens nas universidades.

Certo é que no Irão ninguém parece acreditar que os acontecimentos não estão relacionados. "Ninguém acredita que é apenas uma coincidência estes ataques terem surgido após os protestos contra o regime. O que se comenta entre os ativistas é que isto é uma vingança sobre as raparigas e as suas famílias", afirma o jornalista Deepa Parent ao The Guardian.

Como reagiu o regime iraniano?

Depois de meses a ignorar o que já estava a ser noticiado na imprensa, na segunda-feira o líder supremo do Irão, Ali Khamenei, falou publicamente sobre o assunto pela primeira vez. O ayatollah afirmou que os incidentes foram deliberados e que os culpados devem ser condenados à morte por um "crime imperdoável". “As autoridades devem seguir com seriedade a questão do envenenamento das alunas”, sublinhou o líder iraniano.

No fim de semana, o ministro do Interior, Ahmad Vahidi, disse que tinham sido recolhidas “amostras suspeitas” e apontou o dedo a “inimigos” que queriam causar distúrbios no país. As autoridades iranianas prometeram investigar, mas ainda não identificaram suspeitos

Também o ministro da saúde, Younes Panahi, já tinha afirmado que as raparigas foram envenenadas com químicos que "não são apenas de acesso militar, estão disponíveis publicamente". O responsável deu a entender que os ataques eram premeditados, vincando que era evidente "que algumas pessoas querem que todas as escolas sejam fechadas". Panahi apelou ainda à calma, frisando que o estado de saúde das estudantes não inspirava cuidados maiores. "As alunas não precisam de tratamento invasivo e é necessário manter a calma", acrescentou.

Entretanto, soube-se na segunda-feira que Ali Pourtabatabaei, um jornalista de Qom que tinha reportado regularmente sobre os casos suspeitos, foi detido pelas autoridades.

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