A eleição de Masoud Pezeshkian no início de julho, após a morte súbita do presidente Ebrahim Raisi, trouxe alguma esperança de que as coisas mudassem, mas as manifestantes do Irão dizem que não compram a "propaganda". Quem manda (ainda) é o aiatola Ali Khamenei e a poderosa Guarda da Revolução, que continua a reprimir as vozes progressistas e que está mais focada em conflitos regionais e jogos de política internacional
As expectativas eram elevadas dentro e fora do Irão após a vitória de Masoud Pezeshkian nas presidenciais antecipadas, na sequência da morte inesperada de Ebrahim Raisi num acidente de helicóptero em maio. Classificado pelos media e pelos analistas como um reformista dentro do limitado espectro político da República Islâmica – o primeiro centrista a ocupar a presidência em mais de 20 anos – havia esperanças de mudanças ao seu leme, após décadas de crescente repressão e silenciamento de vozes progressistas no Irão. Mas dois anos depois da morte de Mahsa Amini sob custódia policial pelo uso “incorreto” do véu islâmico, ou hijab, que gerou os maiores protestos da história moderna do Irão, essas expectativas estão a esmorecer.
“Dois anos após a morte de Mahsa Amini, algumas mulheres e outros cidadãos continuam aberta e taticamente a resistir ao regime, não usando o hijab e praticando outros atos de rebeldia”, refere à CNN Eric Lob, do Instituto do Médio Oriente e professor associado do departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade Internacional da Flórida. “Dito isto, o Estado reforçou as suas restrições sociais e religiosas, continuando a deter e a encarcerar mulheres por usarem indevidamente o hijab e outros opositores, reais ou aparentes.”
Antigo cirurgião cardíaco e ex-ministro da Saúde, Masoud Pezeshkian era deputado quando Amini foi levada pela polícia da moralidade, acabando por morrer dias depois na sequência do que os seus familiares e amigos dizem ter sido tortura às mãos dos agentes.
No dia da sua morte, a 16 de setembro de 2022, o dito reformista disse ser “inaceitável que a República Islâmica prenda uma rapariga por causa do seu hijab e depois entregue o seu corpo morto à família”. Dias depois, com os protestos em massa a alastrarem-se a várias cidades do Irão, uma espécie de marcha-atrás. “Insultar o supremo líder [o aiatola Ali Khamenei] não vai criar nada para além de raiva e ódio duradouros na sociedade”, escreveu aquele que viria a ser eleito presidente do Irão um ano depois.
Numa reportagem publicada na semana passada, uma manifestante iraniana dizia ao Guardian: “Não caímos nessa propaganda falsa de que [Pezeshkian] é contra o uso do hijab. Só vocês [no Ocidente] é que se deixam enganar por isso, nós não.” Com o segundo aniversário da morte da jovem de 22 anos marcado esta segunda-feira, continua a descoberto a ferida aberta na sociedade iraniana – e, “se alguma coisa aconteceu, foi que nós, iranianos, ficámos mais espertos, mais cientes do que antes, e fizemos a nossa investigação” desde então, adianta Ariana (nome fictício) ao jornal britânico.
“Apesar de Pezeshkian ser um reformista que denunciou a repressão do regime”, ressalta Eric Lob, “os seus ministros dos Serviços Secretos e do Interior são conservadores de linha dura e, além disso, o líder supremo e o Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC) têm a última palavra em questões relacionadas com a segurança” – ou seja, “tendo em conta estas restrições institucionais e a dinâmica do poder, o presidente só poderá promover mudanças políticas e sociais até um certo ponto”.
Esta segunda-feira, precisamente no segundo aniversário da morte de Amini, o presidente fez um raro discurso à nação transmitido na televisão estatal – o segundo desde que tomou posse a 30 de julho. E tal como no primeiro, há apenas duas semanas, os protestos do movimento batizado “Mulheres, Vida, Liberdade” não tiveram qualquer espaço de antena – isto depois de o pai da jovem, Amjad Amini, ter vindo denunciar o total silêncio do regime.
“Apesar de terem passado dois anos desde a trágica morte da minha filha, e apesar de persistentes reuniões e numerosas visitas dos advogados com a procuradoria, a nossa família ainda não recebeu qualquer resposta quanto ao caso de Mahsa”, disse Amjad Amini ao serviço persa da rádio Voice of America. Já ao final de segunda-feira, o jornal RojNews noticiou que os pais da jovem curda foram colocados sob prisão domiciliária após terem prometido fazer uma vigília pela filha - com relatos de bloqueios nas estradas que conduzem ao cemitério onde está enterrada, em Saqqez.
“As mudanças quer a nível doméstico quer a nível de política externa que Pezeshkian pode trazer são limitadas, dados os constrangimentos institucionais do sistema [Nezam] e do poder desproporcional do líder supremo e do aparato de segurança”, indica Lob. “A nível doméstico, e para além da questão do hijab e do domínio religioso, haverá um abrandamento marginal das restrições em áreas como os meios de comunicação social, a educação e a cultura” – isto apesar de as restrições na internet e os protestos das mulheres terem dominado a campanha antes das duas voltas das eleições presidenciais, entre o final de junho e o início de julho.
Para as iranianas que continuam a desafiar as rigorosas leis e costumes do país, como Ariana, a vitória eleitoral de Pezeshkian “ofereceu-nos, tal como este regime brutal, um hijab de seda, na esperança de, por parecer bonito, ficarmos felizes por o usarmos – mas não ficamos”. Desde 16 de setembro de 2022, de acordo com dados citados pela ONU, pelo menos 551 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança, incluindo 49 mulheres e 68 crianças, e mais de 22 mil pessoas foram detidas. “A opressão não é bonita e os horrores por que passámos e que testemunhámos às mãos da IRGC nunca serão esquecidos”, diz a mesma manifestante entrevistada pelo Guardian. “Alguns de nós podem ter ficado cegos com os projéteis, mas as nossas memórias estão vivas.”
A marcar o aniversário da morte de Amini, algumas prisioneiras começaram há alguns dias a cumprir uma greve de fome e mulheres por todo o Irão continuam a arriscar a vida partilhando fotos sem véu nas redes sociais em memória da jovem. Mas manifestantes e organizações não-governamentais dizem que a pressão sobre o regime tem de vir do exterior.
“As autoridades iranianas passaram os últimos dois anos a levar a cabo uma campanha de propaganda de negação e distorção para esconder as provas dos seus crimes e tentar intimidar os sobreviventes e as famílias das vítimas para que se calem”, refere Diana Eltahawy, vice-diretora regional da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, num relatório sobre a repressão das mulheres no Irão. “Sem perspetivas de investigações independentes e imparciais a nível interno, é imperativo que os Estados iniciem investigações criminais sobre os crimes cometidos pelas autoridades iranianas através das suas procuradorias nacionais, ao abrigo do princípio da jurisdição universal.”
É improvável que alguma coisa aconteça a esse nível, numa altura em que o Irão está envolvido na guerra em curso na Faixa de Gaza, apoiando abertamente o Hezbollah no Líbano e os rebeldes Houthis do Iémen. No discurso à nação desta manhã, o presidente focou-se na questão do alegado uso de um míssil supersónico pelos Houthis contra Israel no domingo, para assegurar que não foi Teerão a fornecê-lo. “Leva uma semana para uma pessoa viajar até ao Iémen [do Irão], como é que este míssil poderia lá ter chegado? Não temos esse tipo de mísseis para fornecer ao Iémen”, garantiu Pezeshkian.
“A nível regional, [o Irão] poderá obter maiores ganhos no desanuviamento e na aproximação aos Estados árabes do Golfo, embora as tensões com Israel se mantenham elevadas enquanto a guerra em Gaza continuar – e a nível internacional, Pezeshkian fez uma campanha de envolvimento construtivo com o Ocidente e de revitalização do acordo nuclear, a fim de obter um alívio das sanções e melhorar uma economia em dificuldades”, refere Eric Lob.
Mas quão exequíveis são essas conquistas ao leme de Pezeshkian no atual contexto? A resposta, diz o especialista em assuntos do Médio Oriente, pode só chegar depois de 5 de novembro. “Para além de receber a aprovação do líder supremo e de outros conservadores, a sua capacidade de concretizar esta questão dependerá, em grande medida, dos resultados das eleições presidenciais nos EUA – e mesmo uma vitória de um presidente democrata em primeiro mandato [a atual vice-presidente norte-americana, Kamala Harris] não é garante de que esse resultado se concretize.”