As fendas

9 dez 2022, 16:59

Sobre os protestos no Irão

“Pessoas diferentes, com sonhos diferentes, de Teerão a Jerusalém, de Paris a Beirute, olharam para Khomeini e viram um homem que podia servir a sua agenda, não compreendendo que estavam era a servir a agenda dele.”

O monumental Black Wave, da veterana jornalista Kim Ghattas, percorre os bastidores dos acontecimentos que moldaram o Médio Oriente contemporâneo, incluindo a revolução iraniana de 1979. E explica como a teocracia autocrática dos aiatolas desfez a crença em tantos sonhos nas últimas décadas.

É curioso como a ilusão desfeita da mudança, num mundo em constante agitação, também contrasta com a ilusão de controlo dos regimes repressivos: acreditar perpetuamente que é inquebrável o muro que o separa de quem está subjugado às suas regras. As fendas, mais tarde ou mais cedo, farão ruir esse muro. Porque quando as realidades de um e de outro lado são tão distantes, tão destacadas, quando a incapacidade de mudar é tão permanente, o colapso é certo. Não hoje, não amanhã, talvez nem depois de amanhã. Mas virá.

Continua a ser esta a promessa dos enormes protestos diários no Irão, centenas de mortes e milhares de detenções depois. Um balanço que se agiganta perante a maneira como a mão pesada do regime esmagou incontáveis manifestações no passado e todo o tipo de desesperos gritados pelos  iranianos, da luta por melhores condições de vida à liberdade.

Isso descreve-nos como essas duas realidades distintas percorreram o fio do tempo: a sociedade, consciente do mundo em mudança e de uma mudança de costumes; o regime, servindo a ordem dos aiatolas eternamente presos na conquista da revolução, reprimindo os ímpetos liberalizadores, obcecado com a conclusão da agenda nuclear, que só acelerou o seu autoisolamento mundial. E no final do caminho, quem sofre não é quem dita as regras. É o povo.

O que dizer mais de um regime que desfaz as manifestações com tiros de caçadeira ao rosto e órgãos genitais das suas mulheres , deliberadamente, tal como revelado ainda esta semana pelo jornal britânico The Guardian O que dizer mais de um regime ultrapassado que manda prender e manda matar as suas próprias crianças que sonham com a promessa da mudança?

É também essa a metáfora de Hisham Matar em The Return, a comovente homenagem de um filho ao seu pai, um dissidente político na Líbia de Kadafi: “O passado, como um membro dilacerado, tentou colar-se ao corpo do presente.”

O contraste entre um passado estagnado que se tenta impor a um presente em transformação, cava na pedra as fendas que farão ruir o muro. Não hoje, não amanhã, talvez nem depois de amanhã. Mas cairá.

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