O Irão é maior e mais antigo do que os seus aiatolas. Cabe aos iranianos traçar o seu destino. E ao mundo, saber esperar por uma primavera persa que nasça de dentro, do ímpeto dos seus jovens, da coragem das suas mulheres, da vontade de um povo que não esqueceu quem é
Com a lucidez de quem conheceu o mundo em primeira mão, Ryszard Kapuściński viu no Irão o que muitos continuam a ignorar: uma civilização, não apenas um regime. Um povo que vive em estado de memória, não apenas em estado de exceção. O seu “Xá dos Xás” permanece como aviso – não sobre a queda de um déspota, mas sobre a persistência de uma ideia. O Irão, mesmo submetido, não se parte. A crise atual, marcada pelo estertor de um regime medieval, por ataques israelitas e norte-americanos, escaladas regionais e um cessar-fogo frágil, só pode ser lida à luz desse passado que molda, ainda hoje, cada resposta.
Ao contrário de tantos Estados nascidos da emancipação colonial, o Irão reemerge da sobrevivência a impérios que se julgavam eternos: Alexandre, os califados árabes, os mongóis, britânicos, soviéticos. A cada ocupação respondeu com reinvenção. É esse espírito – uma mistura de orgulho ferido e consciência de destino – que ajuda a compreender a resistência de um regime teocrático, ditatorial, que não se vê como simples estrutura de poder, mas como guardião de uma missão “civilizacional”. Não se trata de retórica vazia. Visto por essa lente, compreende-se por que razão, mesmo cercado, o regime não cede. A resposta aos bombardeamentos israelitas ou às sanções norte-americanas é menos uma contraofensiva do que um ritual. Um gesto litúrgico. O regime não fala apenas para fora. Fala, sobretudo, para dentro. E o que diz é simples: resistimos porque sempre o fizemos.
Neste contexto, o orgulho deixa de ser emoção e transforma-se em método. O poder em Teerão sabe que qualquer sinal de fraqueza pode ser letal. Uma derrota simbólica seria mais perigosa do que a destruição física. Por isso insiste na narrativa da vitória: obrigámos Israel a recuar. Prolonga o confronto através de uma linguagem de triunfo, mesmo quando os factos o desmentem. O essencial é preservar a legitimidade que nasce da resistência – ainda que isso implique isolamento, empobrecimento e exílio.
Essa lógica é levada ao extremo: converte sanções em instrumentos de coesão, ataques em estímulos nacionalistas, isolamento em palco de autoafirmação. O regime alimenta-se do assédio e do confronto: cada ameaça externa é lida como confirmação da sua “verdade” interna. Mas o Irão não resiste sozinho. Insere-se num eixo que prospera no antagonismo: Rússia, China, e, até há pouco tempo, a Síria de Bashar al-Assad. Entre si, trocam tecnologia, recursos e legitimidade. A Rússia recebe drones para a guerra na Ucrânia, a China abastece-se de petróleo iraniano contornando sanções, Teerão financia milícias em toda a região. O que parece fragmentação é, na realidade, uma simbiose de resistências.
É neste pano de fundo que o conflito com Israel ganha outra escala: disputa-se não apenas território ou influência, mas modelos de ordem mundial. De um lado, uma arquitetura – cada vez mais enfraquecida e incoerente, como fica de manifesto em Gaza – baseada em regras, comércio e interdependência. Do outro, uma visão fechada de soberania, onde o direito cede lugar à força.
Israel pode reivindicar vitórias táticas: desmantelou estruturas e instalações nucleares, matou altos quadros, atingiu cadeias logísticas. Mas como já avisava Kapuściński, o Irão não foi feito para vitórias rápidas, nem para derrotas absolutas. Tem tempo. Tem memória. Tem feridas que transforma em instrumentos. Por isso a guerra não termina quando cessam as bombas. O cessar-fogo atual não é um desfecho, mas uma pausa litúrgica. Há regras imutáveis no Médio Oriente que nem mesmo Donald Trump pode alterar. O que está em causa é uma visão do mundo. O regime iraniano não quer apenas resistir. Quer demonstrar a viabilidade do seu modelo de sobrevivência, mesmo perante a superioridade tecnológica e económica dos seus adversários.
É aqui que o Ocidente reincide. Continua a acreditar que mudanças de regime podem ser impostas de fora com sucesso. A história do Irão, recordemos 1953, não sustenta tal ilusão. Nem a brutalidade interna – evidente nos assassinatos, repressão, massacres – torna essa hipótese plausível. O mesmo poder que enfrenta o inimigo externo reprime com uma eficiência implacável o seu próprio povo. Desde Mahsa Amini ao Eixo da Resistência que inclui o Hezbollah, o Hamas e os Houthis, com efeitos devastadores sobre a democracia e a estabilidade regional, o Irão convive com a violência como quem convive com o ar. A guerra com Israel não será exceção.
Para Teerão, resistir é mais vital do que reformar. E enquanto as potências externas não compreenderem que a longevidade do regime assenta numa simbiose entre repressão e orgulho histórico, continuarão a alimentar fantasias perigosas. No Irão, os colapsos não se forçam. Acontecem por dentro. Por erosão, não por invasão. Imaginar que um triunfo militar efémero no Médio Oriente abriria caminho a uma transição sempre foi uma ilusão.
Ignorar esta dimensão simbólica é falhar o diagnóstico. É interpretar o Irão como um Estado “comum”, gerido por elites pragmáticas que fazem cálculos racionais. Mas o Irão é outra coisa. É um arquétipo. Uma civilização que se concebe como intérprete de algo maior do que si própria. E a teocracia que o governa, por mais contestada que seja, alimenta-se dessa convicção. E é isso que a torna perigosa, concordemos ou não com a legitimidade de ataques preventivos sem justificações cabais. A guerra com Israel, tal como o confronto com os EUA, não é apenas sobre armas nucleares. É sobre identidade. É isso que mantém o regime de pé.
Ainda assim, não confundamos o regime com o povo. O Irão é maior e mais antigo do que os seus aiatolas. Serão os próprios iranianos a decidir o seu caminho. E o mundo terá de estar preparado para apoiar, sem paternalismo, uma futura “primavera persa” que não acabe em vazio ou ruína, mas que nasça da vontade de mudança do seu povo, dos seus jovens, das suas mulheres.
Uma vontade de mudança que persiste, mas que permanece dispersa, sem líder ou movimento capaz de desafiar um sistema onde autoridade religiosa, estruturas eleitorais controladas e a Guarda Revolucionária se sustentam num equilíbrio calculado. Num ambiente em que o medo e a repressão são armas silenciosas que abafam qualquer impulso popular, a falta de canais democráticos legitima a imobilidade política e impede alternativas reais.
Mas a mesma lucidez que se exige ao ler Teerão poderia aplicar-se também a Telavive, sem por isso estabelecermos falsas equivalências. O Governo de Netanyahu – o governo mais radical da história de Israel – há muito que deixou para trás os “valores político-constitucionais” que continuamos a garantir ser os nossos. Contudo, na Europa, continuamos a evitar o essencial: Israel viola de forma sistemática o direito internacional em Gaza e o artigo 2.º do Acordo de Associação com a União Europeia, sem consequências reais. Adiar medidas para julho, como sugeriu Kaja Kallas, perante hospitais bombardeados e populações privadas de ajuda humanitária, dificilmente se coaduna com os valores da União – os mesmos que invocamos em todas as cimeiras, para afirmar uma ordem internacional baseada no direito e na dignidade.
A leveza com que Netanyahu desrespeita o direito internacional humanitário na perseguição dos seus objetivos revela sem margem para dúvidas que a sua agenda não procura a estabilidade regional ou o florescimento democrático da região, mas sim a manutenção da supremacia de uma potência de apenas dez milhões de habitantes face a centenas de milhões, um desafio estratégico quase impossível de sustentar sem uma solução política.
No fundo, Kapuściński tinha razão ao recusar separar política de literatura, poder de memória. O Irão não resiste por cálculo, mas por fé – tanto religiosa como histórica. E essa fé, ainda que nos pareça irracional, é o cimento que ainda sustém o regime. Se Kapuściński escrevesse hoje, talvez dissesse que o Irão tem demasiada história e demasiado orgulho para se ajoelhar. Os impérios caem quando perdem a imaginação. Os povos, quando perdem a memória.
No Irão, a imaginação pode faltar. Mas a memória, nunca.