Morte do presidente do Irão levanta questões sobre a sucessão (e alimenta teorias da conspiração). "O interesse do regime é a continuidade, mas isso não é necessariamente sustentável"

20 mai 2024, 17:43
Ebrahim Raisi

Presidência de Ebrahim Raisi, que arrancou com eleições fraudulentas e que ficou marcada pelo "agravamento das adversidades económicas e a repressão" no Irão, chegou subitamente ao fim, após o helicóptero onde o chefe de Estado seguia com o seu ministro dos Negócios Estrangeiros se ter despenhado na fronteira com o Azerbaijão. O líder interino já foi nomeado e tem como tarefa imediata preparar eleições nos próximos 50 dias, para escolher o sucessor de Raisi. Só depois será possível responder à grande questão: quem irá suceder ao aiatola Ali Khamenei?

Os contornos do acidente ainda estão por explicar. Este fim de semana, após terem inaugurado uma barragem na fronteira com o Azerbaijão, o presidente iraniano, Ebrahim Raisi, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Hossein Amirabdollahian, embarcaram num helicóptero de regresso a Teerão. Pouco depois, o aparelho desapareceu dos radares e as autoridades deram início a uma operação de busca e salvamento. 

Um denso nevoeiro dificultou a missão durante horas, levando Teerão a pedir ajuda à União Europeia, que recorreu ao sistema de satélites Copernicus para detetar o local onde o helicóptero se despenhou. Na madrugada desta segunda-feira, as mortes de Raisi e Amirabdollahian foram oficialmente confirmadas, a par de outros sete elementos da delegação iraniana que perderam a vida no desastre.

A partir do exílio, um dos principais grupos de oposição ao regime emitiu um comunicado a referir que a morte de Raisi, aos 63 anos, “representa um golpe estratégico monumental e irreparável para o líder supremo dos mullahs, Ali Khamenei, e para todo o regime, conhecido pelas suas execuções e massacres” – com Maryam Rajavi, líder do Conselho Nacional de Resistência do Irão (NCRI), a antecipar que a morte do presidente “vai desencadear uma série de repercussões e crises no seio da tirania teocrática, o que estimulará os jovens rebeldes a agir”.

Os analistas, contudo, são mais cautelosos quanto ao futuro do Irão agora que o chefe de Estado morreu, ainda que admitam potenciais problemas no futuro próximo. "O interesse primordial do regime é a continuidade face a desafios internos e externos", destaca Naysan Rafati, analista sénior do International Crisis Group (ICG). "Mas claro, dados os desafios económicos e sociopolíticos que enfrenta, o status quo que pretende manter não é necessariamente sustentável."

Imagem do local onde o helicóptero que transportava Ebrahim Raisi e o seu MNE se despenhou este fim de semana (Anadolu via Getty Images)

O "carniceiro de Teerão", o repressor do movimento das mulheres

Ainda a morte de Raisi não tinha sido confirmada e o acidente já estava a ser celebrado pela oposição iraniana, dentro e fora do país, com piadas e memes nas redes sociais e até fogo de artifício nas ruas. “Penso que este é o único acidente da história em que toda a gente está preocupada com a possibilidade de alguém ter sobrevivido”, escreveu na rede social X a jornalista e ativista irano-americana Masih Alinejad. “Feliz Dia Mundial do Helicóptero!”

Numa outra publicação na X, já com a morte confirmada, Alinejad destacou que o desastre cria “uma crise inesperada na corrida para substituir Ali Khamenei”, o aiatola de 85 anos cujo estado de saúde tem vindo a deteriorar-se. “Raisi foi em tempos visto como um sério candidato ao lugar de Supremo Líder, mas o seu valor decaiu após ter sido escolhido como presidente em 2021”, defendia a jornalista e dissidente, criticando os líderes do Ocidente por terem enviado os seus pêsames ao Irão pela morte do presidente. "Os fãs de teorias da conspiração já estão a alegar que o seu filho, Mojtaba, poderá ter tido mão no acidente para facilitar o seu caminho para substituir o pai. De qualquer forma, isto vai aumentar as pressões sobre o regime, que enfrenta desafios internos e internacionais."

Desde 2021, quando chegou ao poder, “Raisi e o seu governo contribuíram para o caos doméstico e a incerteza, a instabilidade e a insegurança internas”, diz Eric Lob, diretor do programa de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Internacional de Miami, na Flórida, e afiliado do Instituto do Médio Oriente. “A sua chegada ao poder através de eleições fraudulentas exacerbou a crise de legitimidade do regime e a erosão da confiança social nas instituições. As suas restrições religiosas e práticas repressivas alimentaram os protestos Mulheres, Vida, Liberdade – os maiores e mais longos na história da República Islâmica. E a relutância [do governo] em reavivar o acordo nuclear face ao reforço das sanções dos EUA, combinada com uma má gestão governamental e corrupção, agravaram as adversidades económicas dentro do país.”

É a mesma ideia defendida por Naysan Rafati, do ICG, para quem "a presidência de Raisi refletiu um esforço mais vasto para consolidar o controlo de linha dura de todos os centros de poder da República Islâmica, o que teve um custo significativo, [com] os protestos e uma participação eleitoral em declínio a deixarem a descoberto um crescente fosso entre o Estado e a sociedade, a par da deterioração das relações com o Ocidente".

Mais de 500 pessoas foram mortas e mais de 22 mil detidas durante os protestos que se seguiram à morte de Mahsa Amini, de 22 anos, às mãos do regime, em setembro de 2022 (Bulent Kilic/AFP via Getty Images)

Antes das eleições, Raisi já tinha manchas no currículo, nomeadamente pelo seu envolvimento na condenação à morte de cerca de 5 mil dissidentes políticos em 1988, quando integrava o Ministério Público – o que lhe valeu a alcunha de “carniceiro de Teerão”, acusações formais de crimes contra a humanidade pelas Nações Unidas e sanções do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos.

Sem surpresas, o seu mandato presidencial ficou marcado pela mesma abordagem de linha dura. “A oposição está a celebrar a morte de Raisi por causa das suas restrições religiosas e práticas repressivas”, reforça Eric Lob, recordando as “várias posições” que Raisi ocupou no aparato judiciário do Irão antes de ter sido escolhido para a presidência. “Para além disso, ele foi leal ao líder [o aiatola Khamenei] durante muito tempo e foi um assíduo apparatchik do sistema (nezam) e também geria a Assembleia de Especialistas, o organismo que nomeia e supervisiona o líder supremo, estando supostamente a ser preparado para lhe suceder.”

Num reflexo do conservadorismo do aiatola Khamenei, Raisi também deu a cara por uma agenda de política externa que viu Teerão aproximar-se dos rivais do Ocidente, no contexto da invasão russa da Ucrânia e, mais recentemente, da guerra de Israel na Faixa de Gaza. "Apesar de o Supremo Líder ter a última palavra nessa matéria, Raisi e o seu governo ajudaram-no a prosseguir uma política que envolveu confrontos calculados com adversários tradicionais como os EUA e Israel, bem como um crescente envolvimento com aliados anti-sistema como a China e a Rússia”, indica Lob, autor de “A reconstrução da Jihad do Irão: Desenvolvimento Rural e Consolidação do Regime após 1979”, que lhe valeu o prémio anual da Fundação para os Estudos Iranianos, em 2014.

“Durante o governo de Raisi, o Irão passou a depender do financiamento da China e forneceu drones e mísseis à Rússia para serem usados na Ucrânia”, no que o analista diz ter sido uma jogada de resistência – “reforçar os seus mandatários regionais para resistir às pressões dos EUA, dos europeus e do Ocidente”. 

Isto aconteceu a par de um aumento significativo do seu programa de enriquecimento de urânio, apesar de, na semana passada, o líder da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) ter indicado ao Financial Times que o país parecia finalmente empenhado num “diálogo sério” sobre “medidas concretas” pela primeira vez em mais de um ano – com Rafael Grossi a invocar uma potencial “fase diferente” nas negociações. 

“O diálogo da AIEA coincidiu com conversações indiretas entre os EUA e o Irão para reduzir as tensões após a recente escalada com Israel”, indica Lob. Mas também no contexto da morte de Raisi, “resta esperar para ver se à retórica se vão seguir medidas substantivas dada a situação volátil na região enquanto continua a guerra em Gaza”.

Num regime dominado pela figura do aiatola, "a autoridade e influência de Raisi eram limitadas em matéria de política externa", acrescenta Rafati. "As principais questões estratégicas, incluindo as negociações nucleares, são objeto de um debate mais amplo no âmbito do aparelho de segurança nacional. Resta saber se a visita do diretor-geral [da AIEA] produzirá progressos significativos na transparência e monitorização da atividade nuclear do Irão antes da reunião do Conselho de Governadores no início de junho."

Equipas de resgate recuperam corpos das vítimas do acidente com o helicóptero onde seguia Raisi (EPA)

Quem sucede a Raisi – e quem vai suceder a Ali Khamenei

Para Lob, “dadas as pressões internas e externas que os conservadores enfrentam, o status quo deverá manter-se ou até intensificar-se” após a morte de Ebrahim Raisi. “Internamente, isto significa a continuidade de eleições fraudulentas e repressão estatal e, a nível regional e internacional, traduzir-se-á numa contínua confrontação com o Ocidente e em mais envolvimento com o Leste, no quadro da política iraniana de ‘Olhar para o Leste’.”

O analista antecipa que Teerão vai “dar continuidade ao diálogo construtivo com os países árabes do Golfo para mitigar e gerir as tensões regionais”, sobretudo tendo em conta os atuais conflitos na região – o que faz depender essa estratégia da “forma como os dois lados [Irão e Israel] vão agir daqui para a frente”.

Como antecipava Afshon Ostovar, outro especialista do Irão, numa publicação na X antes de confirmada a morte de Raisi, “este acidente e a provável morte do presidente vão abalar a política iraniana, e independentemente da causa [do acidente], as perceções de jogo sujo vão estar em alta dentro do regime – elementos ambiciosos poderão tentar obter vantagens, forçando reações de outras partes do regime. Apertem os cintos.”

Como ditam as regras constitucionais, as autoridades do Irão têm 50 dias a partir de agora para convocar eleições antecipadas e, até lá, será Mohammad Mokhber, vice-presidente de Raisi, a tomar o seu lugar interinamente, um homem “relativamente desconhecido” que, tal como o antecessor, “parece ser próximo do líder supremo e do Exército de Guardiães da Revolução Islâmica”, explica Eric Lob – o que não augura mudanças drásticas nas políticas interna e externa do Irão no futuro próximo. "É de sublinhar que Mokhber esteve envolvido no acordo que foi alcançado para fornecer drones e mísseis à Rússia para serem usados na Ucrânia."

No imediato, a principal tarefa do presidente interino será preparar as eleições para a sucessão de Raisi nos próximos 50 dias, com Rafati a destacar que "o precedente das recentes eleições parlamentares, bem como a corrida presidencial que trouxe Raisi ao poder, sugerem que o leque de candidatos será muito restrito, limitado aos conservadores e políticos de linha dura, mas mesmo aí há disputas entre fações e competição por influência e isso só deverá aumentar".

E quanto à figura que tomará o lugar de Ali Khamenei, agora que um dos possíveis sucessores morreu? Tal como não é possível prever para já "quem é que os conservadores vão apresentar como futuro presidente do Irão", indica Lob, também "é difícil dizer quem será o potencial sucessor do líder supremo". Uma possibilidade, como já referia a jornalista Masih Alinejad, é o filho de Raisi, Mojtaba. "Mas isso pode ser demasiado nepotista para determinadas elites e cidadãos", ressalta o analista, "até os mais conservadores".

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