"A mudança de regime no Irão é possível, mas não é uma linha de chegada. É um rastilho"

25 jun, 07:00
Cartaz com o aiatola Ali Khamenei exibido por uma mulher na rua (Vahid Salemi/AP)

Israel continua investido em derrubar o regime dos aiatolas, ainda que esse não seja um objetivo operacional, antes uma estratégia de longo prazo. Donald Trump chegou a colocar essa hipótese, mas pouco depois garantiu que derrubá-lo só traria "o caos". Especialistas em política iraniana explicam porque é que acabar com a teocracia em Teerão é extremamente difícil, porque é que se deve ter cautela nas comparações com anteriores intervenções externas, como no Iraque, e o que pode acontecer se o regime iraniano, de facto, colapsar

Continua a ser "realista" considerar que a guerra de Israel contra o Irão pode levar a uma mudança de regime no país, quase meio século depois da Revolução Islâmica de 1979. Ao final de 12 dias de ataques contínuos a infraestruturas nucleares, militares e económicas de Teerão, esse parece continuar a ser um dos objetivos de Telavive, mesmo que não no imediato. Permanecem, contudo, dúvidas sobre até que ponto os Estados Unidos estão alinhados com Israel nesse ponto.

No rescaldo dos primeiros ataques norte-americanos ao Irão, no passado fim de semana, contra três centrais nucleares, os Departamentos de Estado e de Defesa dos EUA foram rápidos a esclarecer que a intervenção foi limitada e que não significava que Washington estivesse ativamente envolvida na guerra, muito menos que quisesse provocar uma mudança na liderança do Irão. Horas depois, o próprio Presidente norte-americano assumiu uma posição algo contraditória, escrevendo na sua rede social: “Não é politicamente correto usar o termo ‘Mudança de Regime’, mas se o atual regime iraniano é incapaz de FAZER O IRÃO GRANDE DE NOVO, porque é que não haveria uma mudança de regime?? MIGA!!!”.

Já depois da adaptação do seu slogan de campanha e de presidência à realidade iraniana – Make Iran Great Again – e reagindo, furioso, à quebra de um cessar-fogo entre Israel e Irão que anunciara horas antes, Donald Trump pareceu voltar atrás. "Os EUA não querem uma mudança de regime", garantiu aos jornalistas antes de embarcar rumo à cimeira da NATO em Haia. "Uma mudança de regime só traz o caos.”

Com todos os avanços e recuos, a hipótese continua a ser “definitivamente realista”, diz à CNN Portugal Houssein al-Malla, do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (GIGA), até porque “a história mostra-nos que o colapso de regimes no Médio Oriente nunca está fora de questão – veja-se o caso da Líbia em 2011 ou do Iraque em 2003”. Ainda assim, assume o especialista em intervenções internacionais em contextos frágeis, uma grande questão paira no ar: “Não só a mudança forçada de regime é extremamente difícil de controlar, como também cria frequentemente mais instabilidade do que aquela que resolve”.

Depois de ter anunciado um cessar-fogo e o fim daquilo a que o próprio chamou de “Guerra dos 12 dias”, o presidente dos Estados Unidos passou a madrugada de segunda para terça-feira acordado a ver o que não queria: Israel e Irão a violarem esse mesmo cessar-fogo foto: Evan Vucci/AP

O Iraque é um bom caso de estudo, no contexto da invasão do país pelos EUA em 2003, após Benjamin Netanyahu ter assegurado os aliados ocidentais de que o regime de Saddam Hussein estava a fabricar armas de destruição em massa. Sabe-se hoje, quase 20 anos depois e após uma longa guerra que causou milhares de mortes civis e militares de ambos os lados, que não havia armas de destruição em massa no Iraque, uma versão que o primeiro-ministro israelita manteve na semana passada em declarações aos jornalistas, ainda que, em 2022, tivesse assegurado ao Congresso americano que “não havia qualquer questão de que Hussein estava a desenvolver” esse armamento.

Na viragem do milénio, Netanyahu garantiu aos EUA que depor a ditadura de Saddam iria trazer estabilidade ao país e a toda a região, e foi também com base nesse argumento que a administração de George W. Bush optou pela intervenção direta. Agora, e perante notícias de que os EUA impediram Israel de matar o líder supremo do Irão antes do início deste conflito, abundam os paralelismos com o Iraque, ainda que o caso iraniano seja diferente do do Iraque ou até do Afeganistão ou da Líbia, outros dois países que assistiram a mudanças de regime na sequência de intervenções lideradas pelos norte-americanos desde a viragem do milénio.

“Como temos visto, a realidade muda a cada hora, mas creio que é importante destacar as diferenças entre o conflito no Irão e esses casos”, refere Jonathan Monten, diretor do programa de Políticas Públicas Internacionais da University College London (UCL). “No Iraque e no Afeganistão, os EUA tinham parceiros locais no terreno, a resistência estava bem organizada e já havia grupos rebeldes relativamente fortes dentro dos países que eram apoiados pelos EUA, incluindo até no caso da Líbia, onde os ataques aéreos dos EUA foram acompanhados de apoio a milícias locais”.

Pelo contrário, ressalta o analista britânico, “não parece haver nenhum grupo dessa natureza no Irão neste momento – nenhum potencial parceiro local ou grupo plausível que pudesse tomar o poder caso os EUA ou Israel derrubassem o atual regime.”

“O Irão não é simplesmente mais um Estado autoritário, é uma república teocrática com um sistema de governação profundamente institucionalizado que combina a autoridade clerical com cargos eleitos”, acrescenta Al-Malla. “Esta estrutura dupla torna a República Islâmica fundamentalmente diferente do Iraque de Saddam Hussein, que era um regime autocrático centrado num único líder e num aparelho de segurança coercivo.”

“O líder supremo não é apenas uma figura política, mas uma autoridade religiosa", destaca Houssein al-Malla, e esse facto complica não apenas a intervenção externa como a dissidência interna, como se viu com a repressão dos milhares que se mobilizaram contra o regime opressor após a morte de Mahsa Amini, em 2022 foto: Bulent Kilic/AFP via Getty Images

Entre os Estados Unidos atacarem as três maiores centrais nucleares do Irão no sábado à noite e Trump anunciar uma frágil trégua entre Teerão e Telavive – a que se sucederam acusações de violações de parte a parte e novos ataques israelitas a território iraniano – o New York Times publicou uma reportagem sobre o paradeiro do aiatola Ali Khamenei.

Escondido num bunker, noticiou o jornal, o líder supremo do Irão renunciou a todas as comunicações eletrónicas, transmitindo informações por via de um fiel conselheiro, e nomeou três potenciais sucessores para que um deles tome o seu lugar caso algo lhe aconteça. “Como não há resistência local, se os EUA ou Israel tentarem assassinar o supremo líder, muito provavelmente será substituído no seio do atual regime, e é essa a grande diferença em relação a anteriores situações em que os EUA derrubaram regimes”, explica Jonathan Monten. “No caso do Irão, a liderança seria substituída internamente – e a nova liderança estaria a braços com a mesma questão estratégica que o atual líder enfrenta.”

A distinguir o Irão dos casos do Iraque, do Afeganistão e até da Líbia está o que Houssein al-Malla define como a “arquitetura institucional” do regime xiita iraniano. “A religião desempenha um papel central na definição da legitimidade interna do Irão e da sua postura em matéria de política externa”, refere o analista sediado em Hamburgo. “O líder supremo não é apenas uma figura política, mas uma autoridade religiosa, o que complica tanto a dissidência interna quanto a intervenção externa. Um desafio ao regime pode ser facilmente enquadrado como um desafio ao próprio Islão, particularmente entre a sua base leal – e esta camada ideológica cria uma resistência que é simultaneamente doutrinária e estratégica, a forma como a religião está inserida numa arquitetura institucional mais vasta torna o regime mais difícil de desmantelar e mais capaz de absorver os choques.”

A par disso, quando o Irão enfrenta ameaças, a tendência é para as elites nos centros de poder, desde o líder supremo à presidência e ao parlamento, passando pelo poderoso Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC) e pelo poder judicial, se unirem para as enfrentar. “Estas instituições nem sempre estão de acordo e a competição entre as elites é uma característica permanente da política iraniana – mas quando o país está sob ameaça externa, há uma tendência histórica para estes atores cerrarem fileiras”, explica Al-Malla, que dá como exemplos a guerra Irão-Iraque (1980-88), a "campanha de pressão máxima" das duas administrações Trump e o conflito agora em curso com Israel.

“Todas essas experiências desencadearam padrões semelhantes de consolidação das elites. Mesmo as vozes reformistas que criticam as políticas internas do regime mudam frequentemente para uma posição nacionalista quando se considera que a soberania está sob ameaça. E, neste sentido, a pressão vinda do exterior pode, paradoxalmente, reforçar o regime a partir de dentro – reforça o argumento de que a República Islâmica é um alvo não pelas suas ações, mas pela sua identidade, o que, por sua vez, justifica o controlo interno.”

Os sinais que têm chegado do Irão nos últimos 14 dias apontam precisamente para essa resiliência do regime. Como refere Mohammad Ali Abtahi, político reformista e antigo vice-presidente do Irão, em entrevista ao NYT: “[A guerra] suavizou as divisões que tínhamos, quer entre nós [pilares institucionais], quer com o público em geral.”

“O colapso do regime Baath no Iraque abriu a porta a conflitos sectários e à intervenção estrangeira e o Irão poderá ter um destino semelhante se a transição for conduzida a partir do exterior" foto: Chris Hondros/Getty Images

Com a realidade a mudar de hora para hora, e Trump visivelmente irritado com o Irão e, em particular, com Israel por desrespeitarem o seu cessar-fogo, mantêm-se as dúvidas sobre se uma mudança de regime forçada continua no horizonte. Para Jonathan Monten, da UCL, “após os bombardeamentos dos EUA, Israel atingiu os seus objetivos militares mais significativos e parece improvável que continue a tentar mudar o regime sem o apoio dos EUA – mas é preciso ver o que acontece nos próximos dias”.

Como indicava Ali Abtahi ao diário nova-iorquino no fim de semana, Israel calculou mal a reação dos iranianos à guerra. E como indica Houssein al-Malla à CNN Portugal, “a mudança de regime no Irão continua a ser uma aspiração estratégica de longo prazo” para Israel – que vendo a liderança do arquirrival como “o principal fator de ameaças regionais”, considera essa mudança de regime “a única forma de garantir uma segurança duradoura” na região. Ainda assim, contrapõe o especialista, “mesmo no discurso israelita este é mais um objetivo final do que um objetivo operacional imediato”.

Já nos EUA, o caso é bem diferente e exige cautela. “Embora algumas vozes ainda defendam a mudança de regime, a política atual centra-se mais na contenção e dissuasão do que na intervenção”, refere Al-Malla, até porque “os custos e as consequências dos anteriores esforços de mudança de regime continuam bem presentes na mente dos decisores”.

Ainda que, nesta fase, a mudança de regime não seja uma política ativamente perseguida, a hipótese não deve ser descartada, sobretudo se o conflito entre Israel e o Irão perdurar no tempo. Como assume o especialista do GIGA, “um conflito prolongado pode criar fissuras”. Exemplo disso é a queda do Xá em 1979, na sequência de vários anos de crescente dissidência e envolvimento estrangeiro”.

A partir de Paris, Reza Pahlavi, herdeiro do xá deposto, pediu no início da semana a “todos aqueles que são leais à nação iraniana e não à República Islâmica” que aproveitem o atual conflito para se erguerem contra a teocracia dos aiatolas, garantindo que não quer o poder para si, mas oferecendo-se para liderar “uma transição democrática” no país-natal. Sendo certo que a deposição do seu pai há quase meio século "é uma forte lembrança de que regimes aparentemente estáveis podem desfazer-se rapidamente", há sérias hipóteses de o seu pedido cair por terra, ressalta Houssein al-Malla. "Há grupos monárquicos exilados e redes de oposição da diáspora a tentar reavivar essa dinâmica, mas falta-lhes coerência e legitimidade interna."

Se o atual conflito se arrastar, e a mudança de regime vier mesmo a acontecer, “não será simples, antes acompanhada de caos, lutas internas e riscos de um vácuo de poder”, adianta o especialista. “O colapso do regime Baath no Iraque abriu a porta a conflitos sectários e à intervenção estrangeira e o Irão poderá ter um destino semelhante se a transição for conduzida a partir do exterior. A mudança de regime no Irão é possível, mas não é uma linha de chegada. É um rastilho – e se o acendermos sem um plano, corremos o risco de desencadear uma tempestade de fogo regional que ninguém poderá apagar.”

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