'Minicérebros humanos' enxertados em ratos permitem estudar doenças neuropsiquiátricas dos humanos

CNN Portugal , MJC
14 out 2022, 18:24
Rato em laboratório (GettyImages)

A técnica inovadora poderá ser útil para investigar doenças como a esquizofrenia ou o autismo, mas também coloca alguns dilemas éticos aos cientistas

Uma equipa de cientistas conseguiu implantar determinados tipos de células cerebrais humanas em ratos jovens para estudar melhor distúrbios psiquiátricos complexos, com o objetivo de até testar tratamentos. O resultado dessa investigação foi publicado esta semana na revista Nature Medicine.

Existem doenças intrinsecamente humanas, como a esquizofrenia ou o autismo, que são difíceis de estudar dentro das paredes de um laboratório. Nos últimos anos, graças à investigação do vencedor do Prémio Nobel Shinya Yamanaka sobre reprogramação celular, foram desenvolvidas versões reduzidas de diferentes órgãos (coração, fígado, rim e também cérebro) que podem ser usados ​​para estudar patologias e os seus possíveis tratamentos. No entanto, no caso dos minicérebros (um termo que não é utilizado pelos cientistas), quando crescem fora do corpo eles não funcionam como se estivessem num organismo. Alguns cientistas tentaram implantar esses cerébros em ratos adultos, mas eles não amadureceram completamente.

Em laboratório, "os neurónios não atingem o tamanho que teriam num cérebro humano real", explica Sergiu Pasca, professor de psiquiatria e ciências comportamentais da Universidade de Stanford e principal autor do estudo publicado na revista Nature. Da mesma forma, esses tecidos cultivados fora do corpo humano não permitem estudar os sintomas causados por um defeito no seu funcionamento.

Após anos de investigação, a equipa de Sergiu Pasca encontrou uma metodologia que lhes permitiu transplantar com sucesso tecido cerebral derivado de células estaminais humanas em ratos recém-nascidos. A idade era importante, pois o cérebro de um animal adulto pára de se desenvolver, o que afetaria a integração das células humanas. Neste caso, à medida que os animais cresciam, os neurónios humanos integravam-se no circuito neurológico dos roedores e modulavam o seu comportamento.

Ao transplantá-los para um animal jovem "descobrimos que os organoides podem tornar-se bastante grandes e vascularizados" e podem, então, ser alimentados pela rede sanguínea do rato, até "ocupar cerca de um terço do hemisfério do cérebro" do animal, explica Pasca.

Os cientistas testaram a boa implantação dos organoides soprando nos bigodes do rato, o que se traduziu em atividade elétrica nos neurónios de origem humana. Este é um sinal de que estavam desempenhando corretamente o seu papel de receptor em resposta a um estímulo. Por outro lado, para saber se esses neurónios poderiam transmitir um sinal para o corpo do rato, implantaram organoides previamente modificados em laboratório para que reagissem à luz azul. Depois, treinaram os ratos para beber de uma cânula de água quando essa luz azul estimulasse os organoides através de um fio ligado ao cérebro. Após duas semanas, a experiência revelou-se um sucesso.

Finalmente, a equipa usou a sua nova técnica com organoides de pacientes com uma doença genética, a síndrome de Timothy, e descobriu que, no cérebro dos ratos, esses organoides cresciam menos rapidamente e tinham menor atividade do que os organoides de pacientes saudáveis.

Esta técnica poderá ser usada no futuro para testar novos medicamentos, segundo dois cientistas que não estiveram envolvidos no estudo mas que comentaram as suas descobertas na Nature. A técnica "leva a nossa capacidade de estudar a evolução de doenças do cérebro humano para um território desconhecido", escreveram Gray Camp, do Instituto suíço Roche, e Barbara Treutlein, da Escola Politécnica de Zurique (ETH).

A técnica também coloca alguns dilemas éticos, principalmente o de saber até que ponto a implantação de tecido cerebral humano num animal pode alterar sua verdadeira natureza. O professor Pasca descartou esse risco para o rato, devido à grande velocidade com que o seu cérebro se desenvolve em relação ao de um humano. O funcionamento do córtex de um rato, que não teria tempo para integrar profundamente os neurónios de origem humana, funciona como uma "barreira natural".

Contudo, uma barreira semelhante poderá não existir noutras espécies mais próximas do homem, segundo Pasca, recusando o uso deste método em primatas. Nesse sentido, o cientista sublinha o "imperativo moral" de poder estudar melhor e, eventualmente, curar os transtornos psiquiátricos, tendo em conta a proximidade do modelo animal utilizado. "Os transtornos psiquiátricos humanos são, em grande parte, característicos do ser humano. Por isso, devemos refletir cuidadosamente (...) sobre em que medida queremos trabalhar com alguns desses modelos", advertiu.

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