Mihajlovic, o quase leão que tinha pesadelos com a guerra e batia livres de sonho

16 dez 2022, 19:08
Sinisa Mihajlovic (Getty Images)

Sinisa Mihajlovic morreu esta sexta-feira aos 53 anos, depois de quatro anos a lutar contra uma leucemia. Para trás ficam muitos golos geniais, sim, mas também algumas polémicas, já depois de um início de vida muito marcado pela guerra civil da Jugoslávia. Como treinador, chegou a assinar pelo Sporting, em 2018, mas não chegou a sentar-se no banco da equipa de Alvalade

Morreu esta sexta-feira, com 53 anos, Sinisa Mihajlovic, ao quarto ano de uma luta com a leucemia na qual ganhou vários rounds, mas nunca conseguiu fazer o K.O.

Não treinava desde o início da época, quando deixou o Bolonha devido a maus resultados, e numa altura em que já tinha feito algumas interrupções na atividade profissional para cuidar da saúde.

A primeira luta, a da guerra

Mas a luta de Sinisa já havia começado antes, bem antes.

Mihajlovic nasceu no dia 20 de fevereiro de 1969, em Vukovar, agora uma cidade da Croácia, no bairro de Borovo, e filho de pai sérvio e mãe croata.

Nos primórdios da década de 90, quando Sinisa já era jogador do Estrela Vermelha, a guerra civil da Jugoslávia rebentou na casa da família de Mihajlovic: as forças croatas destruíram-lhe a casa... com um amigo na comitiva.

«A primeira casa destruída foi a minha. Foi destruída pelo meu melhor amigo, que era croata. Éramos como irmãos. Não conseguia aceitar isso e tive sempre dúvida e mágoa em mim. Então, em 1999 ou em 2000, jogámos na Croácia e esse amigo foi ao hotel. Começámos a falar e ele disse-me que foi forçado a fazê-lo precisamente porque sabiam que nós éramos amigos. Ele disse: ‘Tentei aviar os teus pais de todas as maneiras possíveis de que eles tinham de fugir. Tive de mandar a casa abaixo, caso contrário eles iam matar-me», recordou, ao Corriere dello Sport.

Essa fase, de resto, não foi fácil. «Lembro-me que quando a guerra começou no meu país, ganhei a Taça dos Campeões com o Estrela Vermelha e depois fui para Itália. Só queria que os treinos durassem 24 horas, porque só quando estava a treinar é que não pensava na guerra e nas bombas», disse, citado pela Sky.

Mihajlovic em 2018, com a réplica da Taça dos Campeões Europeus conquistada ao serviço do Estrela Vermelha (AP)

«Todas as noites, antes de adormecer pensava na guerra. Para mim era um tormento e agora que acabou estou a passar um dos melhores períodos da minha vida. Quando me disseram que a guerra tinha acabado, vieram-me as lágrimas aos olhos. Fiquei feliz por mim, pelo meu povo, por todos.»

Duro e polémico, sempre

Talvez estes anos difíceis tenham moldado um Mihajlovic menos sensível, um estilo mais durão que transportava depois para dentro de campo – e não só – e que o transformavam numa espécie de bad boy dos tempos antigos.

E polémicas, diga-se, não foram poucas.

Em 2000, por exemplo, num jogo entre a Lazio e o Arsenal, o antigo defesa dirigiu insultos racistas a Patrick Vieira, médio francês dos gunners.

Anos mais tarde, Sinisa admitiu que estava errado, mas não deixou ponto sem nó: «Desde que jogo futebol, tenho dado e recebido cuspidelas, cotoveladas e insultos. Chamei-o de ‘preto de m…’ e fui suspenso por três jogos. Arrependo-me, e muito. Mas ele também me chamou ‘cigano de m…’ durante todo o jogo», lembrou, em entrevista ao Il Corriere della Sera.

A versão das cuspidelas, diga-se, confirma-se. No Mundial de 1998, então ao serviço da Jugoslávia, Mihajlovic foi interpelado pelo alemão Jens Jeremies, e respondeu com cuspe. Também num jogo da Liga dos Campeões entre o Chelsea e a Lazio, o então futebolista dos romanos cuspiu na cara de Adrian Mutu. Foi suspenso oito partidas pela UEFA.

O episódio com Jeremies (Getty Images)

«Fascista? Sou mais comunista do que muita gente»

Mas há mais.

Sinisa Mihajlovic mantinha uma amizade assumida com Zeljko Raznatovic, mais conhecido por Arkan, um criminoso de guerra que foi morto em 2000, em Belgrado, por um homem encapuzado.

Essa amizade valeu ao antigo internacional jugoslavo, de resto, associações até ao fascismo, devido às posições de extrema-direita de Arkan.

«Obituário de Arkan? Faria de novo, porque o Arkan era meu amigo. Era um herói para o povo sérvio. Era um grande amigo meu. (…) Não traio nem nego amigos. (…) Certamente não sou um fascista como alguém disse a propósito do Arkan. Sou mais comunista do que muita gente. Se ser nacionalista significa ser patriota, se significar amar a minha terra e a minha nação, então», afirmou em 2009, na tal entrevista ao Corriere.

Sinisa, a genialidade num livre direto de pé esquerdo

Aquele pé esquerdo fez muitos estragos. Basta dizer que acabou a carreira, como defesa, com 100 golos marcados ao nível de clubes. Muitos deles de bola parada – é, a par de Pirlo, o recordista do campeonato italiano nesse campo, com 28 golos –, arte que começou a aperfeiçoar enquanto criança. «Percebi rapidamente que a bola não queria que eu corresse com ela. Então tive de arranjar uma maneira de a chutar bem», explicou à BBC.

(AP)

A lenda começou na Sérvia, mas foi em Itália que se formou. Sinisa viajou para Roma em 1992, para ser reforço dos giallorossi, «nos piores dois anos de toda a carreira», segundo o próprio.

Reinventou-se em 94 na Sampdoria, pela mão de um tal de Sven-Goran Eriksson, que o adaptou à posição de defesa-central. Foi, talvez, a melhor coisa que lhe podia ter acontecido à carreira.

Eriksson seguiu para a capital de Itália, para a Lazio, em 1997, e um ano depois Mihajlovic juntou-se aos laziale, eterno rival da Roma. Foi lá que venceu o primeiro troféu em Itália, uma Supertaça, e que ganhou a Taça das Taças, numa final frente ao Maiorca.

Aos 35 anos, em 2004, Sinisa estava a dar as últimas como futebolista profissional, mas disse que sim a mais um desafio: o Inter de Milão, de Roberto Mancini. Fez duas épocas nos nerazzurri, com mais um campeonato, duas Taças e uma Supertaça de Itália para o currículo, antes de pendurar as chuteiras. O próximo desafio? Ser treinador-adjunto de Mancini. Começava aí a aventura de treinador.

Mihajlovic ao serviço do Inter de Milão (AP)

Uma carreira quase toda em Itália, com um saltinho a Alvalade pelo meio

Sinisa Mihajlovic fez grande parte da carreira de futebolista de Itália, e no que concerto ao percurso como treinador, não há muitas coisas que sejam diferentes.

Depois de duas épocas como adjunto no Inter, assumiu o primeiro trabalho como técnico principal no Bolonha. Seguiu-se o Catania, a Fiorentina e a Sampdoria, em 2014/15. Pelo meio, ainda orientou a seleção sérvia.

Como treinador do Bolonha (Getty Images)

Teve o ponto mais alto quiçá em 2015/16, quando se sentou no banco do Milan: 19 vitórias em 38 jogos e um modesto sétimo lugar na Serie A não foram suficientes para ficar.

Seguiu-se depois o Torino, por dois anos, antes de uma viagem relâmpago a Lisboa, para representar o Sporting.

No dia 18 de junho, o Sporting anunciava que Sinisa Mihajlovic era o escolhido pelo presidente Bruno de Carvalho para suceder a Jorge Jesus no comando técnico, numa altura em que os leões ainda saravam as feridas do ataque bem recente à academia de Alcochete.

«Disseram-me que não passei no período de experiência previsto nos contratos portugueses entre clubes e treinadores. Pena que nessa altura ainda estava de férias na Sardenha»

Bruno de Carvalho foi depois destituído e o contrato de Mihajlovic foi denunciado pelo próprio clube leonino, «durante o período experimental, com efeitos imeditados». O sérvio nem se tinha estreado sequer no banco dos leões.

Sinisa com a camisola do Sporting (site Sporting)

Sinisa, claro, não gostou. «Fui despedido por justa causa. Disseram-me que não passei no período de experiência previsto nos contratos portugueses entre clubes e treinadores. Pena que nessa altura ainda estava de férias na Sardenha», lamentou na altura, em entrevista ao Gazzetta dello Sport.

Meio ano depois, o treinador sérvio regressou ao Bolonha, naquele que viria a ser o último clube da carreira. Assinou em junho e em julho anunciou que lutava contra uma leucemia.

Entre as muitas ausências, algumas prolongadas, para tratar da saúde, Mihajlovic foi cumprindo os objetivos – fez-se inclusivamente a festa no hospital na época passada –, até esta temporada, quando o Bolonha tomou a decisão «inevitável» de quebrar o vínculo com o técnico, devido aos maus resultados.

(AP)

«Foi a decisão mais difícil que tomei desde que sou presidente do Bolonha. Nos últimos anos vivemos com o Sinisa momentos bonitos e dolorosos que cimentaram uma relação que não foi só profissional, mas sobretudo humana», disse, na altura, Joey Saputo.

«Adeus, mister. Viverá para sempre nos nossos corações»

O legado de Sinisa Mihajlovic, no entanto, já estava construído, principalmente no futebol italiano, onde as homenagens se vão sucedendo ao longo do dia.

«Adeus, mister. Viverá para sempre nos nossos corações», escreveu o Bolonha.

O cruzamento com portugueses

Ao longo da carreira de futebolista, Mihajlovic cruzou-se com vários nomes portugueses no balneário. Dois deles foram na Lazio: Fernando Couto, de 1998 a 2004, além de Sérgio Conceição, de 1998 a 2000 e na primeira metade da época 2003/04. Ambos já reagiram à morte do sérvio, com Couto a deixar um agradecimento ao ex-colega e Conceição a falar num «amigo» e numa «inspiração».

Mais tarde, Mihajlovic jogou com Luís Figo, em 2005/06, na última época do sérvio como futebolista.

Mas, antes de Couto, Conceição e Figo, houve outro nome luso ao lado de Mihajlovic: o defesa Hugo. O sérvio jogou com o ex-Sp. Braga, Sporting, V. Setúbal e Beira-Mar na Sampdoria, em 1997/98.

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