A campeã de triatlo que está nomeada para um Óscar

20 fev 2023, 08:05
Lesley Paterson (Foto Getty Images)

Foi o desporto que permitiu a Lesley Paterson financiar durante 16 anos o sonho de chegar a Hollywood. Coautora do argumento de A Oeste Nada de Novo, ela lutou durante muito tempo e gastou muito dinheiro para que o filme fosse uma realidade. Valeu a espera

Foi o triatlo que permitiu a Lesley Paterson financiar durante 16 anos o sonho de chegar a Hollywood. Valeu a pena a espera e a teimosia, que chegou a levá-la a competir – e a vencer - com uma fratura no ombro. Agora, ela está nomeada para um Óscar.

Paterson é autora, em conjunto com Ian Stokell, que também foi triatleta, do argumento adaptado na origem do filme A Oeste Nada de Novo, baseado no clássico de Erich Maria Remarque. Neste domingo, eles venceram o Bafta, o equivalente britânico dos Óscares. A 13 de março ficam a saber se ganham a estatueta dourada. O filme, realizado pelo alemão Edward Berger, está nomeado para nove Óscares.

Este é uma espécie de final feliz, mas a história começou muito antes, ao longo de anos e anos em que ela tentou sem sucesso que o filme acontecesse, enquanto construía uma carreira essa sim de sucesso num desporto para duros.

Ela sempre gostou de desafios difíceis. Paterson nasceu na Escócia e começou por jogar râguebi, sozinha entre rapazes. «Joguei pelo Stirling County dos sete aos 12 anos. Era eu e aí uns 250 rapazes todos os fins de semana», contou à BBC: «Entrava em campo e via-os a rirem-se de mim. Tinha de aguentar e mostrar-lhes que era tão boa e tão dura como eles.»

Quando já não tinha idade para jogar râguebi com rapazes, experimentou outras opções. Fez corrida «uphill» e depois dedicou-se ao triatlo clássico. Era ainda adolescente quando começou e atingiu nível internacional, mas tinha na natação um ponto fraco e quando em 2002 falhou a qualificação para os jogos da Commonwealth decidiu abandonar.

Em paralelo estudava para se tornar atriz. Em 2003 mudou-se para Los Angeles a acompanhar o marido, psicólogo a trabalhar na Universidade de San Diego. Continuou a formação em teatro e fez algumas aparições pontuais em «filmes académicos e independentes», como conta no seu site. Mas não se distinguiu por aí e encontrou outra via, como argumentista e produtora de cinema.

Competir para pagar 10 mil dólares por ano de direitos

Em 2006, junto com Ian Stokell, decidiu voltar a um livro que marcara ambos. Foi ainda na escola que ela leu o livro de Remarque, uma obra sobre a I Guerra Mundial, retrato do absurdo e do horror da guerra do ponto de vista de um soldado alemão. A obra foi publicada originalmente em 1928 e dois anos mais tarde deu origem a um filme, que aliás valeu um Óscar ao realizador Lewis Milestone.

Paterson nunca mais esqueceu a história e procurou informar-se sobre os direitos da obra. Já não pertenciam à produtora Universal, então contactou a família do escritor alemão e negociou a sua aquisição.

O acordo implicava um pagamento anual. Paterson e Stokell escreveram o argumento, mas não conseguiram que o filme avançasse. Chegou a estar próximo em 2011, numa versão que teria como protagonista Daniel Radcliffe, o ator que representou Harry Potter no cinema, mas não houve financiamento suficiente.

Para segurar os direitos, Paterson precisava de dinheiro. Qualquer coisa como 10 a 15 mil dólares por ano, de acordo com o Guardian. E ele não abundava. Valeu o triatlo, a que tinha entretanto regressado, mas numa versão diferente.

Em 2007, ela decidiu voltar ao desporto. Descobriu o triatlo XTerra e foi nessa versão «todo o terreno» da modalidade que encontrou o seu lugar. «O XTerra é acidentado, sujo, requer muito coração. Trouxe-me tudo o que tinha no râguebi – a coragem, a sujidade, a camaradagem», diz à BBC.

Foi vencendo competições e isso permitiu-lhe o dinheiro extra para financiar o sonho do filme que tinha na gaveta. «Todos os anos tínhamos de pesar a renovação do pagamento, o que era muito stressante, porque é muito dinheiro. O facto de eu me ter saído bem nas competições foi uma parte importante disso, porque representava uma quantia de dinheiro que não era necessariamente expectável. Uma parte importante do financiamento do filme foi o facto de eu competir e de me ter dado bem», contou à CNN.

Foi campeã do mundo de triatlo crosse e de XTerra em 2012. Mas pouco depois contraiu doença de Lyme, uma infeção que a debilitou por vários meses e a forçou a uma longa paragem. Depois voltou, forte como sempre. E continuou a superar obstáculos. Ela conta uma história que diz bem da sua determinação.

Vencer um triatlo a nadar só com um braço

Na véspera de um triatlo na Costa Rica, em 2015, ela sofreu um acidente de bicicleta no reconhecimento do percurso e fraturou um ombro. Pensou desistir, mas o marido sugeriu-lhe uma solução. «Na bicicleta, eu podia prender o braço no guiador. Correr era fácil. Mas nadar? Nem pensar. Mas ele disse-me: ‘Bom, tu és muito boa na remada com um braço’. E eu pensei: ‘Tens razão, e tenho uma boa batida de pés, acho que posso fazer isto só com um braço – é só uma milha’. Então comecei, depois de tomar uma data de analgésicos», contou Lesley ao Guardian.

Terminou a prova de natação a 12 minutos da liderança. Mas recuperou no segmento de bicicleta e depois na corrida. E acabou mesmo por ganhar a competição e os 6500 dólares de prémio para o vencedor. «Não queria apenas ganhar, tinha de ganhar porque tinha de acionar na semana seguinte a opção de pagamento do A Oeste Nada de Novo e esta era a única forma de conseguirmos a quantia de cinco dígitos para manter o nosso sonho vivo», diz ao Daily Mail, estimando que no total tenha gasto 165 mil libras, algo como 185 mil euros, para manter o projeto do filme. De caminho, segundo conta o Guardian, ela e o marido também fizeram uma segunda hipoteca da sua casa.

«Ao fim de 16 anos aconteceu num piscar de olhos»

Foi em 2020 que os astros se alinharam, quando o realizador Edward Berger se interessou pelo filme, propondo fazê-lo em alemão, com a Netflix a assumir a produção. Berger trabalhou sobre o argumento de Paterson e Stokell, o filme foi filmado na República Checa, e chegou aos ecrãs no final do ano passado.

«Na indústria do cinema é tudo uma questão de timing e há 16 anos a I Guerra Mundial não estava no espírito do tempo», disse Paterson à BBC. Depois, as coisas mudaram: «Ao fim de 16 anos, aconteceu num piscar de olhos.»

Paterson acredita que houve vários fatores a ajudar, como o facto de Hollywood ter passado a reconhecer filmes que não eram em língua inglesa, como o sul-coreano Parasitas, ou o impacto do filme 1917, de Sam Mendes, centrado precisamente na I Grande Guerra. «Chegaram os serviços de streaming. Filmes como Parasitas vencerem um Óscar ajudou. Houve o 1917. Abriu muito potencial», diz, considerando que o facto de ser em alemão e abordagem do realizador e do produtor valorizaram o filme: «Honestamente, acho que a autenticidade de ser em alemão é crítica. A essência do livro é que não há um herói, não é uma aventura. O idioma é de certa forma irrelevante. É a visão global e foi isso que o Edward e Malte Grunert trouxeram.»

Mas o que fez a diferença para que o filme finalmente visse a luz do dia, diz ela também à BBC, foi a sua persistência, no desporto e na vida: «É questão de assumir o risco. Nunca desistir e saber que isto vai acontecer. Todas as pessoas negativas que diziam ‘desiste, para que é que estás a gastar esse dinheiro todo?’ Temos de correr riscos. Fiz isso no desporto e tive sucesso e estou a fazer o mesmo no cinema.»

Aos 42 anos, a carreira de Paterson no triatlo aproxima-se do fim. Ainda que o bichinho continue lá. Ela conta que no ano passado não resistiu a disputar uma competição, no meio das viagens para a promoção do filme. «Os Mundiais eram a uma distância de cinco horas de carro da estreia europeia em Zurique. Não tinha intenção de participar, mas decidi experimentar.» Terminou em quarto lugar.

 

O seu principal foco é agora o cinema. Tem outros projetos, agora em parceria com o marido, Simon Marshall, que também participou na escrita do argumento de A Oeste Nada de Novo, mas não ficou associado aos créditos. Mas por agora está a gozar o que o sucesso do filme lhe trouxe. Como resumiu ao Guardian, a contar como foi a experiência, há umas semanas, de receber outro prémio com o filme, este da crítica norte-americana, a National Board of Review: «As pessoas que eu estou a conhecer! É uma loucura. Estou a conhecer o Spielberg!»

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