A mudança na startup tecnológica e “namoradinha” de Silicon Valley atrairá, sem surpresa, investidores e acionistas. O fundador Sam Altman parece ter o negócio sob controlo, mas é já antiga a história do manda-chuva que rapidamente não manda nada. Quem serão os donos? O que aí farão? Um especialista em IA diz à CNN Portugal: "Tenho muito medo. Temos muito medo"
Podia muito bem ser um guião de Hollywood. Estamos em Silicon Valley, considerada a “Meca” da tecnologia. É novembro de 2023. Sam Altman é o CEO da OpenAI, startup criadora do ChatCPT, é ainda relativamente jovem, 39 anos, bilionário, a organização que fundou e que lidera vale 150 mil milhões de dólares, os gigantes Microsoft e Apple reconhecem-no e financiam-no, o negócio prospera.
Até que Sam é demitido pelo conselho de administração e é nomeado o não menos jovem e não menos bilionário e não menos talentoso Emmett Shear, ex-chefe da Twitch.
Seria o fim de Altman? Nem por sombras. Mal saiu, vaticinou-se que lideraria a inteligência artificial da Microsoft. Vaticinaram erradamente: cindo dias depois, uma reviravolta hollywoodesca, Sam Altman regressava à OpenAI, os trabalhadores estavam do lado do fundador, os administradores recuaram e não mais se falaria da razão para terem afastado Altman: “Não era consistentemente sincero nas suas comunicações com o conselho [de administração], prejudicando a sua capacidade de exercer as suas responsabilidades.” No fundo, Sam Altman não quis pôr quem administra a par do que fazia e desenvolvia.
Reforçado nos poderes — ficou bem claro que a OpenAI é o seu CEO —, Altman terá efetuado uma purga, silenciosa e paulatina. A diretora de tecnologia, Mira Murati, saiu esta semana; o presidente, e cofundador, Greg Brockman está há mais tempo de fora por razões alegadamente de saúde, com uma licença sem prazo de regresso. Altman tinha caminho aberto para efetuar mudanças.
Esta quinta-feira a Reuters anuncia a principal — e certamente definidora: a OpenAI, fundada em 2015 e nas bocas do mundo há dois anos, quando lançou o ChatCPT, vai reestruturar-se e passará (na atividade principal, o desenvolvimento de inteligência artificial) de organização sem fins lucrativos para organização com fins lucrativos. O mesmo é dizer que, e mesmo tendo Sam Altman uma participação significativa na empresa, e continuando a ser o diretor executivo, a OpenAI abrirá portas a novos investidores, que deterão a empresa e ditarão o futuro — os financiadores do presente (como Microsoft ou Google) não detinham participações, até porque não havia participações.
À Reuters, fonte da OpenAI assumiu que continuam, enquanto empresa, “focados em construir uma AI que beneficie todos”, lembrando que continuará a existir uma organização sem fins lucrativos (extra atividade principal) “essencial” para a sua missão, ou seja, investigar e desenvolver IA sem um carácter de negócio e lucro.
Naturalmente, a abertura da OpenAI ao investimento privado levanta questões e inseguranças, desde logo por não se conhecerem os investidores (a mudança de “sem fins” para “com fins lucrativos” da organização ainda não tem data) nem os seus propósitos. Paulo Novais, especialista em inteligência artificial, diz-se assustado “Tenho muito medo. Temos muito medo. A OpenAI era um dos últimos grandes players mundiais que não era uma empresa, que era uma organização sem fins lucrativos.”
Para este professor da Universidade do Minho e coordenador do Laboratório Associado de Sistemas Inteligentes (LASI), a mudança era, contudo, uma inevitabilidade. “Infelizmente, e atualmente, a inteligência artificial, devido ao tipo de IA que estamos a desenvolver e ao ritmo a que se desenvolve, exige muitos recursos humanos, computacionais, não é meramente da academia, da investigação, e isso traz a necessidade de as empresas pensarem nos custos e nos lucros, no negócio”, explica.
Mas há uma diferença evidente entre academia e empresas privadas. “O problema é que a academia tem regras, tem uma tradição de democracia, de diversidade, de abertura; as empresas privadas não. Não é que eu tenha algo contra a iniciativa privada, não tenho, mas o que se faz, e fará, pode vir a ser condicionado pela lógica de negócio. E numa área tão essencial quanto é a do conhecimento, isso levanta receios. Desde logo receios de que um homem menos bem intencionado e milionário resolva adquirir uma empresa como esta [OpenAI] e utilizar o saber da empresa para fins como a desinformação ou piores”, alerta Paulo Novais.
Para este especialista, outro problema reside na “equidade”. A inteligência artificial não é só o ChatGPT; a inteligência artificial marca presença hoje em quase tudo quanto fazemos digitalmente, das redes sociais às telecomunicações, da banca aos serviços. E quando deixar de ser igual para todos?
“Uma empresa privada, uma organização com fins lucrativos, pensa, é evidente, no lucro. E isso pode impedir a equidade, o acesso de todos e todas à IA. A inteligência artificial democratizou-se, utilizamo-la no dia a dia às vezes sem saber, ficámos até dependentes, e pode não continuar a ser desta forma. Solução? Os decisores, os países, as organizações que legislam e que regulam, devem pelo menos garantir que haja capacidade — poder computacional, recursos humanos, infraestrutura — reforçada para não haver dependência de empresas privadas e podemos continuar a desenvolver e democratizar esta tecnologia essencial. A lógica do lucro pelo lucro é perigosa. Os Estados de direito deviam intervir. Investir”, conclui Paulo Novais, especialista em inteligência artificial.
Em mãos erradas, esperemos não ser profética a resposta do computador HAL 9000 (de avançada IA antes da IA do nosso tempo) no filme de Kubrick, “2001: Odisseia no Espaço”:
— I’m sorry, Dave. I'm afraid I can't do that.