O primeiro estudo português sobre insónias, pesadelos e fadiga após infeção de covid-19

29 jan 2022, 21:00
Mulher dorme em sala de espera de hospital no Paraguai (Jorge Saenz/AP)

A CNN Portugal teve acesso exclusivo a um estudo mundial e analisou os dados recolhidos em Portugal. Saiba que problemas a covid-19 está a provocar no sono e o que os especialistas sugerem para resolver o problema

Sonolência excessiva, dificuldade em adormecer, pesadelos ou fadiga crónica são apenas alguns dos problemas já verificados em doentes que recuperaram da covid-19, e cujos sintomas se continuam a verificar vários meses após a infeção. Estes três problemas que elencámos, em conjunto com outros sinais, são algumas das causas para uma degradação da qualidade do sono nos últimos dois anos, e que estão presentes nos dados preliminares de um estudo a que a CNN Portugal teve acesso em exclusivo, e que analisa o sono dos portugueses depois da infeção.

O estudo, que tem a investigadora Cátia Reis como representante de Portugal, está a ser elaborado por especialistas de vários países, como Alemanha, Brasil, China, Estados Unidos ou França, que procuram encontrar uma relação entre problemas de sono e a infeção por covid-19. Para a investigadora que coordena o estudo do lado português, alguns dados preliminares apontam para uma clara relação da infeção com SARS-CoV-2 e uma degradação do sono. O estudo consolidado deve ser publicado dentro de um a dois meses com dados de vários países.

A investigação é desenvolvida pelo International COVID Sleep Study (ICOSS), um projeto que teve início em 2020, e que se dispõe a analisar os efeitos da pandemia no sono, tendo já publicado outros trabalhos, nomeadamente a relação dos confinamentos e da vida em pandemia com a qualidade de sono.

Quais os problemas identificados nos portugueses?

A investigadora Cátia Reis dá conta de uma clara prevalência de três problemas identificados nos portugueses: sonolência excessiva, insónia e fadiga crónica. Mas há outros problemas associados à infeção.

Em 700 questionários completos, 135 dizem respeito a pessoas entre os 18 e os 70 anos que tiveram covid-19 e, entretanto, recuperaram. Dessas, dois terços são mulheres, o que pode consistir num pequeno viés. De acordo com as respostas recolhidas entre 1 de junho e 14 de novembro de 2021, a esmagadora maioria das pessoas que responderam tiveram infeção ligeira, sendo que 23% não apresentou sintomas além da perda do olfato.

Analisando a persistência de sintomas um mês e seis meses após a infeção, fica claro que existe uma correlação entre a infeção por covid-19 e a qualidade do sono. Com efeito, 27,2% das pessoas continuavam a apresentar fadiga um mês depois, enquanto 17,7% apresentava sonolência diurna excessiva e 29,4% tinham dificuldades em adormecer. Este último sintoma talvez seja um dos mais notórios, uma vez que essa percentagem permanecia em 20,5% ao fim de três meses, o período a partir do qual se desenvolve insónia crónica. Na prática, 20 em cada 100 inquiridos desenvolveu insónia crónica depois de ter estado infetado.

Menos frequente foi um sintoma interessante que tem impacto no sono: atuação dos sonhos, o que significa que as pessoas fazem fisicamente aquilo que estão a sonhar, o que pode indicar uma perda de atonia. Isto diz respeito a uma espécie de relaxamento muscular – essencial na fase do sono -, que pode ter influência no sono REM, com os pacientes a poderem desenvolver movimentos agressivos durante o sono, o que diminui a qualidade do mesmo, que se torna menos reparador. Este foi um efeito notado de forma muito leve, e Cátia Reis explica que são necessários mais dados para perceber a verdadeira correlação da infeção e da patologia. Em relação à alteração dos sonhos, ou seja, dos pesadelos, 7,2% dos inquiridos confessou que, mesmo após a recuperação, sonha com a possibilidade de ficar infetado ou de alguém próximo ficar infetado.

“Se não tivéssemos atonia passávamos a fazer o que estamos a sonhar. A perda de atonia no REM é muito complicada e pode associar-se a alterações significativas”, refere Teresa Paiva.

Foram ainda relatados outros sintomas como fraqueza muscular e distúrbios de atenção, hiperatividade ou problemas de memória. No fundo, dos mais simples aos mais graves, os problemas de sono na sequência da covid-19 podem durar muito tempo, havendo no estudo analisado relatos de sintomas que persistem para além de seis meses, alguns deles com o perigo de se tornarem crónicos, como o caso da fadiga e das insónias.

“Problemas de sono são uma das caraterísticas das pessoas que tiveram covid-19”, conclui Cátia Reis.

Já a neurologista Ana Rita Peralta, que se especializou em questões do sono, confirmou que muitas das pessoas que viu tinham queixas de insónia, mas também um agravamento da qualidade de sono. Muitos destes pacientes, explica a especialista, nem sequer tiveram covid-19 numa forma grave, mas, de forma genérica, todos acabaram por melhorar com tratamento.

Isso mesmo é corroborado por Anselmo Pinto, da Clínica do Sono, que refere a ansiedade, o desconforto ou dores como as principais perturbações que podem originar problemas de sono relacionados com a covid-19, direta ou indiretamente.

Como pode a infeção por covid-19 alterar os hábitos e qual a importância de os tentar manter?

Grande parte das pessoas alterou a sua rotina diária, mesmo antes da infeção. Seja pelo teletrabalho ou pelo confinamento, todos fomos obrigados a fazer ajustes. Se essa alteração foi notada, logo na primeira vaga, no sono dos portugueses, fica claro que a infeção por covid-19 pode aumentar o problema.

De resto, e de acordo com os dados preliminares do ICOSS para Portugal, há vários sintomas, como vimos acima, que persistem por mais de seis meses, com destaque para a fadiga, a sonolência excessiva e a insónia.

Se a sonolência diurna é um problema, mais preocupante ainda é a sonolência genérica. Das pessoas que tiveram covid-19 que responderam ao estudo, 50,2% sentiam sonolência excessiva após a infeção.

“Muitas pessoas mantêm níveis de sonolência elevados, cerca de 6% tinha antes da infeção, mas após a infeção 25% manifesta sintomatologia de sonolência diurna”, refere Cátia Reis, que relaciona este aumento com a infeção: “Após a infeção aumentou bastante”.

A sonolência excessiva veio alterar significativamente os hábitos, nomeadamente durante o dia, porque “a necessidade de dormir é maior, o que quer dizer que em termos físicos não estão bem”. De resto, se 2,2% das pessoas faziam sestas antes da infeção, esse número aumentou em 14 vezes após a infeção, para 31%.

Um quinto das pessoas confessa dificuldades para manter o sono ou não consegue dormir mais, sendo que 30% estão mesmo insatisfeitos com a qualidade de sono. Número mais preocupante é o de pessoas que admitem que sono passou a interferir na função diária após a infeção: 39%.

A pandemia trouxe ainda outros problemas, como a crise económica. Dos inquiridos, 32,5% confessaram ter sido afetados financeiramente, o que Cátia Reis vê como um possível espoletar de distúrbios de sono.

Teresa Paiva diz que é importante manter essas rotinas, procurando ao máximo “sincronizar” o corpo, isto é, sair à rua para apanhar luz, por exemplo, para que o organismo perceba que são horas de estar acordado. É também por isso que se devem evitar ecrãs de noite, para não enviar sinais errados ao corpo, que dessa forma terá maior dificuldade em “desligar”.

Por isso mesmo, “fazer noitadas é asneira”, refere Anselmo Pinto, que indica a necessidade de se respeitar o relógio biológico. “É importante vestir-se, comer de forma saudável, de preferência, para garantir que o comportamento diário vai permitir uma noite bem dormida”.

Como se resolvem os problemas de sono?

Não existe uma resposta clara e universal, e a forma como o problema vai ser resolvido depende de pessoa para pessoa. Há doentes que conseguem resolver o problema por si mesmos, mas muitos necessitam de terapia e de consultas com especialistas do sono, como é o caso de Teresa Paiva, que falou com a CNN Portugal minutos depois de dar uma consulta na área.

Os doentes chegam a esta especialista com problemas de sono relacionados com a covid-19 desde a primeira vaga, mas, com o aumento de casos, tem-se verificado também um aumento nos doentes que relatam problemas durante ou após a infeção.

“Muitos dos meus doentes que tiveram covid-19 desenvolvem insónias, uma percentagem bastante elevada”, explica, atribuindo esta questão, que muitas vezes perdura ao longo de meses, a uma “névoa mental”, com vários pacientes a apresentarem insónias transitórias, em muitos dos casos distúrbios que foram agravados no pós-infeção.

Estas são insónias muito “orgânicas”, têm que ver com o organismo, que é alvo de uma agressão viral, provocando uma agressão inflamatória que leva a uma insónia transitória. De resto, diz Teresa Paiva, os doentes infetados ou recuperados que vê não têm problemas de sono associados a “razões psicológicas”, como acontece a outras pessoas que, mesmo não tendo sido infetadas, desenvolvem distúrbios de sono.

Teresa Paiva refere que, como nos outros casos clínicos de distúrbios do sono, a abordagem deve começar por uma tentativa de alteração dos hábitos que podem ser “tóxicos”. A especialista refere-se ao consumo de álcool, de tabaco, mas também a uma elevada exposição às redes sociais ou à ausência de exercício físico e de uma dieta equilibrada.

Depois, depende de caso para caso. É preciso perceber se existe alguma patologia associada, como depressão ou dores físicas. Só em último caso, e sempre dependendo da situação em concreto, se recorre a medicação.

“Isto implica uma mudança no estilo de vida. Uma pessoa infetada ou a recuperar de covid-19 trata-se da mesma forma que outras. Devemos fazer tudo o que nos faz bem: sair à rua, ter hobbies, fazer exercício de manhã, ter uma alimentação saudável”, sublinha, acrescentando que, “quem tem atitudes positivas está melhor”.

Já Ana Rita Peralta defende uma abordagem comportamental, mas admite que pode haver casos mais graves, com envolvimento de outros sistemas: "O que se vê mais são insónias e quadros de fadiga, e muitas pessoas atribuem isso à infeção".

Em todo o caso, notam os especialistas Anselmo Pinto e Tiago Sá, a automedicação nunca será uma solução.

Como pode o sono ajudar ou prejudicar a infeção?

Não só em relação à covid-19, mas a todos os vírus e mesmo outras doenças, não existem dúvidas: um sono de qualidade ajuda a combater doenças. No caso da covid-19 em concreto, isso pode acontecer de variadas formas. Desde logo, melhores hábitos de sono reforçam o sistema imunitário, o que vai deixar o corpo mais bem preparado para reagir à infeção. Além disso, está também provado que uma boa noite de sono no dia antes e no dia da vacinação contribui para um aumento dos anticorpos.

Mas não é só isso: “"Não é por acaso que quando estamos doentes temos vontade de estar na cama", nota Tiago Sá, pneumologista que é diretor clínico da Sleep Lab.

Segundo Anselmo Pinto, quando se dorme menos de cinco horas ou mais de nove horas de forma regular, existe uma afetação na parte imunológica: “O sono é importantíssimo para a reconstrução física e mental. O sono é importante para reparar os danos físicos, para libertar substâncias que nos vão defender, que nos vão fazer trabalhar de uma determinada maneira”, sublinha, referindo que, como a covid-19, também doenças como o cancro ou condições como o colesterol elevado podem desenvolver-se mais facilmente com a privação de sono.

Na prática, diz o especialista, “se não está a dormir e tem o vírus é pior para a sua defesa", até porque o sono é necessário para restabelecer funcionalidades no cérebro que vão ordenar ao corpo que se defenda.

A neurologista Ana Rita Peralta lembra que "dormir bem tem muito impacto na resposta imunitária", uma vez que o sono ajuda a que a pessoa esteja em melhores condições para suportar a infeção e o período de recuperação.

De resto, Tiago Sá lembra que os vírus respiratórios são, genericamente, mais fáceis de contrair por pessoas com maior privação de sono.

"É natural que alguém com menor período de sono tenha uma maior probabilidade de fica infetado com covid-19, embora não esteja estudado e comprovado", diz, baseando-se na relação verificada com outros vírus.

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