Como a BBC quis ser a primeira a mostrar um cartão a Gary Lineker e mergulhou no caos

13 mar 2023, 11:30
Gary Lineker e a BBC (Foto Stu Forster/Getty Images)

Afastamento do apresentador desencadeou uma reação de solidariedade em cadeia que esvaziou a programação desportiva da estação, num fim de semana surreal. Como aconteceu e as implicações do caso que se transformou numa enorme crise para a estação pública britânica

«Pedimos desculpa por não poder apresentar o nosso Match of the Day normal.» A estas palavras do locutor de continuidade da BBC One seguiram-se 20 minutos que se limitaram a resumos dos jogos de sábado na Premier League sem qualquer comentário, apenas o som ambiente dos estádios. Nem sequer se ouviu a música de abertura que identifica há quase 60 anos o mais icónico programa de futebol, não houve imagens de estúdio nem reportagem nos estádios, zero presença humana. Porque todos os apresentadores, comentadores e narradores se recusaram a participar nesse e nos vários programas desportivos da BBC ao longo de todo o fim de semana. A estação decidiu afastar Gary Lineker, o que desencadeou uma reação de solidariedade em cadeia. Depois de dois dias de caos, a BBC e Lineker chegaram a um acordo, anunciado logo na manhã de segunda-feira, a tentar reduzir os danos de um caso que se transformou numa enorme crise para a estação pública britânica.

Como é que se chegou aqui?

No início da semana, o Governo inglês anunciou um projeto de lei de imigração que pretende deportar de imediato os migrantes que cheguem ao país nos chamados «small boats», as pequenas embarcações que atravessam o canal da Mancha, sem lhes dar oportunidade de pedir asilo. Os termos da legislação foram questionados por várias entidades e o Alto Comissariado para os Refugiados da ONU considerou mesmo que infringiam os princípios da convenção internacional de refugiados.

Na terça-feira, Gary Lineker retweetou um vídeo em que a ministra do Interior, Suella Braverman, falava sobre a legislação, com um primeiro comentário: «Isto é para lá de horrível.» Depois, em resposta a um tweet entretanto apagado, escreveu que «não há uma enorme afluência» de refugiados ao Reino Unido e que o país recebe «muito menos refugiados do que outros grandes países europeus». E acrescentou: «Esta é apenas uma medida incomensuravelmente cruel dirigida às pessoas mais vulneráveis em linguagem que não é diferente daquela usada pela Alemanha nos anos 30.»

E este tweet de Lineker tornou-se o centro do debate. Abriu noticiários, incluindo na BBC, uma onda de ruído que passou para segundo plano a discussão sobre o próprio projeto de lei. A ministra disse-se ofendida e vários membros do Partido Conservador, no poder, criticaram Lineker. Que também recebeu, por outro lado, muitas manifestações de apoio.

Ao fim de alguns dias, parecia que iria ficar por ali. Na quinta-feira o próprio Lineker se dizia convencido disso. «Feliz por esta história ridiculamente desproporcionada parecer estar a esbater-se e muito ansioso por apresentar o MOTD no sábado. Obrigado de novo por todo o apoio incrível. Tem sido esmagador», escreveu de novo no Twitter.

Um boicote em bola de neve

Mas não. A BBC procurou falar com Lineker, para que recuasse no que disse ou abdicasse de tomar posição nas redes sociais, o que ele recusou. E a meio da tarde de sexta-feira, quando Lineker e a sua equipa já preparavam o programa do dia seguinte, a estação decidiu mesmo afastar aquele que é desde 1999 o principal apresentador do Match of the Day, que a estação emite desde 1964 e que se tornou a grande referência dos programas desportivos um pouco por toda a Europa.

A BBC alegou que «a recente atividade» de Lineker «nas redes sociais era uma quebra das suas diretrizes» e que este iria afastar-se «até se encontrar um acordo sobre o seu uso de redes sociais». Nunca antecipou o que se seguiria.

Primeiro foram os principais comentadores do programa, os antigos jogadores Ian Wright e Alan Shearer, a solidarizar-se com Lineker, dizendo que não iriam aparecer no sábado. A partir daí foi um efeito bola de neve. Vários outros comentadores tomaram posição idêntica nas redes sociais, mesmo aqueles que não estavam escalados para o programa de sábado. Seguiram-se os narradores dos jogos, a anunciar a sua retirada em bloco.

No meio disto, o Sindicato de jogadores anunciou que tinha sido contactado por vários futebolistas manifestando a intenção de não comparecerem às «flash interviews», o que levou a BBC a anunciar que não iria solicitar entrevistas pós-jogo a treinadores e jogadores. Houve também clubes a ameaçar publicamente boicotar a BBC, como o Bristol Rovers ou o Forest Green.

Ao longo do dia de sábado, foram caindo da grelha de programação da BBC os vários programas de desporto, o que voltou a acontecer no domingo. Enquanto Wright e Shearer apareceram a comentar a jornada no canal da Premier League, a BBC ficava de mãos a abanar. O ponto mais marcante do boicote aconteceu na noite de sábado, quando o Match of the Day, o programa que vive do talento comunicador de Gary Lineker, da sua interação com os comentadores, de toda a informação que recolhe em cada estádio e da análise dos jogos em estúdio, se transformou num surreal repositório de imagens cruas, sem qualquer contexto. Foi assim

O que é que Gary Lineker tem?

Gary Lineker, 62 anos, é a personalidade mais popular do desporto na televisão britânica. Até o responsável pelo seu afastamento reconhece a sua dimensão. «Gary Lineker é o melhor no ramo. Isso não está em discussão», disse Tim Davie, o diretor-geral da BBC, numa das declarações que fez ao longo do fim de semana.

Lineker foi grande também como jogador. Jogou no Leicester, o clube da sua cidade natal e de que é adepto até hoje, no Everton, no Barcelona e no Tottenham, fez 80 jogos pela Inglaterra, foi o melhor marcador do Mundial 86 e protagonista da caminhada até à meia-final do Mundial 90. Com 48 golos, é até hoje o quarto melhor marcador de sempre da Inglaterra e o seu recorde de golos em fases finais só foi superado por Harry Kane no Mundial 2022. Também tem outro registo notável: em toda a carreira nunca viu um cartão, nem sequer amarelo.

Deixou de jogar em 1992 e tornou-se comentador pouco depois. É há muitos anos o principal rosto do desporto da BBC, como apresentador ou como pivot da estação nas grandes competições. Também trabalhou para várias outras estações e colabora atualmente com a Liga espanhola, além de ser dono de uma produtora. É a personalidade mais bem paga da BBC, excluindo figuras de programas de produção externa, com um salário de 1.3 milhões de libras (1.45 milhões de euros).

Tem 8.8 milhões de seguidores no Twitter e a forma como usa a plataforma é um dos fatores que reforça a sua popularidade. Sobretudo em comentários espirituosos sobre futebol, com humor, inteligência e um estilo que já é uma marca. Mas também sobre vários outros temas. Não abdica de dar opinião sobre questões sociais ou políticas, ele que foi por exemplo crítico assumido do Brexit. E já foi várias vezes motivo de controvérsia. Em outubro recebeu uma reprimenda da BBC por um comentário a uma notícia em que Liz Truss, então ministra dos negócios estrangeiros, apelava a que as equipas boicotassem a final da Liga dos Campeões na Rússia. «E o partido dela vai devolver as doações de doadores russos?», questionou.

Gary Lineker não chegou agora ao tema dos refugiados. Há vários anos que usa a sua voz para alertar para a questão, associando-se a organizações e a campanhas de sensibilização. Já acolheu temporariamente refugiados em sua casa. «Acho que devemos muito a refugiados e muita gente é descendente de refugiados em algum momento. Eles deram tanto a este país e continuam a fazê-lo com os trabalhos que fazem, como vimos durante a pandemia no Serviço Nacional de Saúde, como cuidadores e trabalhadores essenciais», disse em 2021 ao Mirror.

A liderança da BBC em causa

A BBC, estação pública financiada diretamente pelos contribuintes, tem regras estritas sobre o uso de redes sociais, em nome da imparcialidade. Mas Gary Lineker sempre defendeu que elas são dirigidas a jornalistas e funcionários da estação, o que não é o seu caso. E continuou a twittar quando entendeu.

A forma como a BBC atuou neste caso levantou um mar de questões. Entre acusações de que a estação cedeu a pressões do Partido Conservador, não é apenas a perceção de imparcialidade mas também a própria liderança da BBC que está em causa. Desde logo pelas ligações do seu presidente, Richard Sharp, ao partido no poder.

Sharp, ex-banqueiro na Goldman Sachs, doou milhares de libras aos Tories ao longo dos anos e além disso está a ser agora investigado por ter ajudado o ex-primeiro-ministro Boris Johnson a obter um empréstimo de 800 milhões de libras. Tim Davie, o diretor-geral, também já ocupou cargos no partido conservador. Quando a BBC colocou a questão de Gary Lineker no plano da imparcialidade, a posição de ambos os altos quadros da estação voltou a ser questionada, com os partidos na oposição a defenderem que a posição de Sharp é insustentável.

O acordo e o compromisso da BBC para rever as diretrizes

Quanto a Tim Davie, disse que não se demitia, apesar das consequências da sua decisão. No domingo disse que estava a trabalhar para voltar a contar com Gary Lineker. Quanto a Lineker, no sábado esteve na bancada a assistir ao Leicester-Chelsea, no domingo saiu para passear o cão e disse aos jornalistas que estavam à porta de sua casa que não podia falar. Na noite de domingo vários meios de comunicação britânicos – incluindo a BBC, que ao longo destes dias fez um acompanhamento informativo exaustivo sobre o caso - noticiaram que o acordo estava próximo. E ele foi anunciado logo ao início da manhã de segunda-feira.

Lineker vai voltar à antena e foi ele a anunciá-lo, de novo no Twitter. Agradeceu a onda de apoio que teve, a solidariedade dos colegas e de muitas outras pessoas, voltando a deixar uma mensagem para os refugiados.

 

O acordo implica um compromissso da BBC para rever as suas diretrizes para as redes sociais. Até lá, Tim Davie diz que Lineker «seguirá as diretrizes». Para essa revisão será designada uma comissão independente, anunciou ainda o responsável da BBC, com «particular foco» na forma como elas se aplicam a freelancers que não trabalham na informação da estação.

(Artigo atualizado às 11h30)

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