“Telemóveis de velha”, desintoxicações das redes e refúgios offline: quando a ansiedade faz desligar a tecnologia

7 dez 2021, 07:00
Apple está a desenvolver tecnologia para carros (foto: Oleg Magni/Unsplash)

Uso intensivo de dispositivos digitais parece reduzir memória de trabalho e reconhecimento das expressões do outro, gerar problemas de atenção e de solidão. Ansiedade leva muitos a desligar – sobretudo jovens de meios urbanos com estatuto sócio-económico favorecido. Estes são relatos de quem cortou com a tecnologia, para se focar no cara a cara

Cátia Terrinca tem um “telemóvel de velha”. Daqueles sem acesso à Internet, que só dão para fazer chamadas e mandar mensagens. Anda com este aparelho há cerca de cinco anos, por opção. Decidiu arrumar o iPhone. “Ao entrar num café, a primeira coisa que fazia era olhar para as tomadas”, conta. “Tinha pouca bateria e queria estar ligada”.

Como tinha acesso ao ‘email’ no telemóvel, a atriz sentia uma “pressão permanente para responder” a contactos de trabalho. Era como se a obrigassem a responder depressa, sem dedicar o tempo e a reflexão que os assuntos mereciam. “Quando deixei de ter iPhone, passei a responder a tudo à noite. Até despacho mais depressa, porque estou focada no que estou a fazer”.

Residente em Elvas, Cátia Terrinca só tem conta numa rede social, o Facebook. Mantêm-na para divulgar e promover o trabalho da sua associação cultural, a Umcoletivo. Fora isso, diz não sentir falta do fluxo de informação com que era bombardeada diariamente. Focou-se na “vida real”.

“Sinto-me abençoada quando me sento a uma mesa, com amigos, e sou a única sem um telefone inteligente. Até a minha postura é diferente, mais aberta”, garante.

Este é o telemóvel de Cátia Terrinca, sem acesso à Internet

Desintoxicação: o lado mau do privilégio

“Não é uma tendência nova, este desconectar dos media digitais”, afiança Ana Jorge, investigadora que está a estudar, a partir da Universidade Lusófona e em parceria com faculdades na Noruega, os motivos pelos quais as pessoas se desligam das plataformas digitais, procurando locais turísticos sem qualquer acesso à Internet. Desintoxicação é uma das palavras usadas para definir estes processos. 

“Um dos participantes do estudo contou-nos que foi a quantidade de informação que o levou a desligar-se do Facebook. Mas, de uma forma geral, sentimos que as pessoas vão tentando equilibrar, ‘negociando’ mais a quantidade de informação a que estão sujeitas”, explica a académica.

Quem quer desligar-se

Definir horários de acesso ou diminuir o número de aplicações no telemóvel são duas das estratégias para controlar a ansiedade e a sensação de incapacidade para lidar com tudo o que se passa no mundo. “Há pessoas que dizem sentir-se assoberbadas”, conta Ana Jorge. E a “popularização do telemóvel” e das notificações, usados de forma intensiva, veio tornar mais evidente esta pressão. 

O estudo “Dis/Connect” tem procurado traçar o perfil de quem mais pondera desligar-se da tecnologia: a realidade é mais notória em jovens, de meios urbanos, com um estatuto sócio-económico mais favorecido. Alguns definem as redes sociais como “tóxicas”. “Quem tem menos acesso, não chega sequer a questionar a questão da desconexão”, reforça Ana Jorge.

Um refúgio contra a ansiedade

Bárbara Miranda, arquiteta, vivia em Londres quando reparou que “passava muito tempo no ecrã já depois do trabalho”. A ansiedade começou a revelar-se. “É muito viciante. Quanto mais estamos, mais queremos estar”, sintetiza.

Além de servir para combinar encontros com os amigos, o telemóvel era também uma plataforma para angariar clientes. “Sempre me fez muita confusão esta coisa de estarmos constantemente a mostrar que somos os melhores”. E foi assim, que passo a passo, se foi definindo um novo projeto.

Em 2016, Bárbara Miranda voltou ao país natal para abrir a Offline Portugal, um refúgio em Aljezur para aqueles que queriam passar uns dias longe do mundo digital. “Muita gente vinha num estado de quase ‘burnout’ [estado de exaustão provocado pelo trabalho excessivo]”, resume. Aparelhos tecnológicos não entravam nesta casa rural. As conversas eram cara a cara, mesmo entre estranhos. “As pessoas diziam-me que tinham ganho muito tempo”, recorda.

A pandemia fez parar o negócio, que dependia sobretudo de estrangeiros. Bárbara Miranda voltou à arquitetura, encontrando um novo rumo: dedica-se hoje a projetos com perfis ecológicos e sustentáveis. “Não dependo das redes sociais para ter trabalho”. Há dias em que nem se liga, noutros gasta meia hora. A ansiedade, diz, diminuiu abruptamente.

Casa da Offline Portugal, em Aljezur, colocava os visitantes em contacto com a natureza

E o cérebro, aguenta?

Os portugueses gastam, em média, 96 minutos por dia nas redes sociais, mais de hora e meia. Os dados constam do estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais 2020”, realizado pela Marktest. Nove em cada 10 acedem várias vezes ao dia, usando o telemóvel como principal porta de entrada.

O que faz um consumo tão intenso de informação ao nosso cérebro? É uma das questões que investigadores, dentro e fora de portas, têm procurado responder. Com 86 mil milhões de neurónios, a capacidade de armazenamento do cérebro será praticamente infinita. Mas este órgão pode cansar-se com todos os estímulos diários.

Estudos internacionais têm apurado que o cérebro humano não está diretamente ameaçado pelo crescente e intenso fluxo de informação, mas não excluem que este possa ter um efeito prejudicial na nossa memória, levando ao desenvolvimento de doenças como o Alzheimer ou o Parkinson. O tempo, e a investigação, clarificarão dúvidas que remanescem.

Um vício como a droga ou o jogo (mas com benefícios)

Rui Oliveira, investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência, é um dos cientistas que em Portugal analisam o impacto da tecnologia. Num trabalho prestes a ser publicado, adianta que a “utilização intensiva de dispositivos digitais” parece reduzir a memória de trabalho e estar associada a problemas de atenção. Segundo a pesquisa, viver pelos ecrãs também pode pôr em risco o nosso reconhecimento das expressões do outro e aumentar a perceção de solidão.

“O facto da navegação ‘online’ trazer recompensas (como os ‘likes’), com uma taxa variável, torna o reforço do comportamento mais eficaz, o que pode ajudar a explicar o carácter aditivo da utilização de redes sociais, que partilha características com outros comportamentos aditivos (como a utilização de drogas ou o jogo)”, escreve. A cada vez que acedemos à Internet, libertam-se no nosso cérebro substâncias como a dopamina ou a oxitocina, que nos fazem querer ir mais e mais vezes. 

O vício, neste caso, também tem efeitos positivos. “A simples pesquisa em motores de busca ativa circuitos neurais envolvidos na tomada de decisão e no raciocínio, e aplicações com jogos de treino mental potencial alguns aspetos específicos da atenção, aprendizagem e memória. De igual modo, jogos de vídeo e ação melhoram a atenção visual, o tempo de reação e a capacidade de gestão de tarefas múltiplas”, indica o estudo de Rui Oliveira.

A palavra de ordem parece ser moderação. Mas os hábitos crescentes de “vida digital” continuam a mover limites. E o tempo que em média passamos ligados… ao mundo digital.

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