ENTREVISTA || A psicóloga Diana Costa Gomes aproveita o livro “Fala-me do que sentes” para nos guiar por uma viagem ao mundo da saúde mental e daquilo que conduz a situações extremas. Pelo meio, traça o retrato da sua própria luta contra a infertilidade
Cinco histórias verídicas, cinco diagnósticos comuns a muitos portugueses. Em "Fala-me do que sentes", a psicóloga Diana Costa Gomes conta as histórias de cinco pacientes com depressão, burnout, trauma, ansiedade e luto. Mas conta também a história de si própria, da luta profissional e da luta da mulher, com as suas fragilidades, angústias e contradições, contra a infertilidade.
“Fala-me do que sentes” é um dedo na ferida do estado da saúde mental em Portugal e um murro no estômago sobre a forma como encaramos a nossa própria vida. Numa conversa com a CNN Portugal, Diana Costa Gomes lança vários alertas: “Conjugamos o verbo ‘fazer’ e ‘ter’ e esquecemo-nos de que o maior luxo que podemos ter é tempo.”
A autora fala ainda da dependência que temos das tecnologias e do “enfraquecimento” das relações presenciais. “Habituámo-nos à distância e, em muitos casos, desaprendemos a estar verdadeiramente presentes uns para os outros”, destaca.
As histórias que nos apresenta neste livro são reais. Porque é que decidiu passar para livro as histórias de pacientes seus?
Ao longo da minha prática clínica, tenho colecionado várias histórias. A ideia de reunir algumas surgiu, primeiramente, pela motivação de contar a minha própria história. As histórias escolhidas - para além de problemáticas e diagnósticos muito atuais que afetam várias pessoas – tocavam, cada uma à sua maneira, na minha própria problemática.
Exatamente. Está a contar as histórias dos seus pacientes, mas também a sua própria história, o seu papel e as suas reações ao que lhe é relatado. Porque é que sentiu necessidade disso?
Achei que era importante desviar a “lente” do paciente para o psicólogo, mas para a pessoa do psicólogo, tantas vezes visto como “apessoado” e completamente neutro. Não é verdade. Considerei que poderia interessar convidar o leitor a entrar no consultório, sentar-se na poltrona e até conhecer o que pensa e sente o psicólogo.
Este livro leva-nos um pouco à velha pergunta de “quem cuida do cuidador?”. Os psicólogos também precisam de ir ao psicólogo?
Os psicólogos também vão ao psicólogo. É fundamental estarmos bem resolvidos para o estarmos na relação com o outro e ser capaz de diferenciar o que é nosso, do que é dele.
A Diana responde a esta pergunta no seu livro, mas vou fazê-la aqui: não deve o psicólogo ser uma espécie de tábua rasa, sem história…?
Sim, deve, se não for capaz de separar o que é dele, do que é do outro. O psicólogo também é pessoa. E deve, na minha opinião, não só não a descartar, como até fazer uso dela no processo terapêutico. Estudos demonstram que o fator preditor mais poderoso do processo terapêutico não é a técnica, mas a relação que se estabelece entre aquelas duas pessoas.
A história de Henrique chamou-me particularmente a atenção pela dificuldade de criação de empatia entre terapeuta e paciente. Como agir nestas circunstâncias? E o que se faz quando a empatia criada é acima do aceitável na relação terapeuta-cliente, como aconteceu no caso da Carolina, que, confessa, lhe apetecia levar para casa e cuidar dela?
Enquanto a transferência se refere a emoções que o paciente transfere para o terapeuta, a contratransferência representa o inverso, ou seja, emoções igualmente irracionais que o terapeuta sente em relação ao paciente. Em todas as profissões, há um domínio no qual cada profissional procura o aperfeiçoamento. Estou convencida de que, para o psicoterapeuta, este domínio é a contratransferência. O fenómeno da contratransferência está presente em todos os processos psicoterapêuticos e os psicoterapeutas mais treinados aprendem, não apenas a trabalhar com ela, como também a fazer uso dela.
Os temas que aborda neste livro vão, como já disse, ao encontro de grandes problemas que afetam as pessoas do ponto de vista da saúde mental: burnout, ansiedade, depressão… O que se passa com a nossa sociedade, onde parece que há cada vez mais problemas de saúde mental?
Andamos a mil. Conjugamos o verbo “fazer” e “ter” e esquecemo-nos de que o maior luxo que podemos ter é tempo.
Porque é que, de repente, parecemos todos alheados em relação aos outros, com dificuldade em criar empatia com quem quer que seja, mais autocentrados e com cada vez menos tempo?
Parece que, de repente, estamos todos mais desconectados uns dos outros, mais centrados em nós mesmos e com menos tempo para cultivar relações profundas. Isso é reflexo de várias mudanças que estão a ocorrer na nossa sociedade de forma gradual, mas intensa.
Vivemos num mundo que valoriza a produtividade e a eficiência, o que nos pressiona a estar sempre a correr, ocupados, sem tempo para parar e a conectarmo-nos uns com os outros. Este ritmo acelerado faz com que as interações se tornem mais superficiais. E a sensação de que estamos sempre "sem tempo" afasta-nos das relações mais profundas e significativas.
A tecnologia, que deveria aproximar-nos, na verdade isola-nos em muitos casos. As redes sociais e os meios digitais criaram um novo tipo de comunicação, mais rápida, mas também mais rasa. Estamos cada vez mais envolvidos em interações curtas e fragmentadas, em que a verdadeira escuta e a empatia ficam de lado. Além disso, as redes sociais colocam-nos em bolhas de pensamento, onde só vemos o que reforça as nossas crenças e ideais, o que dificulta o entendimento e a empatia por quem pensa de maneira diferente.
Outra razão para esta desconexão é o individualismo crescente. A sociedade atual valoriza muito a realização pessoal e o sucesso individual, o que pode levar a uma visão mais centrada no "eu", em detrimento do "nós". Estamos constantemente preocupados em melhorar a nossa própria vida, alcançar os nossos objetivos, cuidar de nós mesmos, o que às vezes faz com que esqueçamos a noção do coletivo e da importância das relações.
Além disso, a sobrecarga de informações à qual estamos expostos diariamente esgota-nos emocionalmente. Somos bombardeados por notícias, conteúdos e estímulos visuais o tempo todo, o que pode criar uma certa “anestesia emocional”, com uma incapacidade de reagir emocionalmente ao que acontece ao nosso redor. Isso cria uma espécie de "fadiga da empatia", porque simplesmente não temos mais energia para nos conectarmos emocionalmente com tantas coisas.
A pandemia também terá tido alguma responsabilidade?
A pandemia também teve um papel importante nesse alheamento. O isolamento físico que vivemos nos últimos anos reforçou o uso das tecnologias para comunicação, e com isso, muitas relações presenciais enfraqueceram. Habituámo-nos à distância e, em muitos casos, desaprendemos a estar verdadeiramente presentes uns para os outros.
Todos estes fatores — o ritmo da vida moderna, a tecnologia, o individualismo, a sobrecarga de informação, a pandemia e as desigualdades — contribuem para essa sensação de desconexão. Parece que estamos todos cada vez mais ocupados e sobrecarregados para investir o tempo e a energia necessários para criar laços profundos e verdadeiramente empáticos com os outros.
Falou da responsabilidade das redes sociais nesse alheamento. De que forma é que o tempo que dedicamos às redes sociais e à vida online nos está a afetar a saúde mental?
O tempo que dedicamos às redes sociais e à vida online tem transformado profundamente a maneira como interagimos com o mundo, connosco e com os outros, afetando diretamente a nossa saúde mental. Vivemos num momento em que estamos sempre conectados, “ligados”, bombardeados por informações e estímulos constantes, o que cria uma sensação de cansaço emocional. A necessidade de estar sempre "presente" nas redes sociais, acompanhando tudo o que acontece, leva a uma comparação constante entre as nossas vidas e as dos outros, que muitas vezes são mostradas de maneira filtrada e idealizada. Isso alimenta sentimentos de ansiedade, inadequação e baixa autoestima, porque é fácil acreditar que todos vivem de forma mais bem-sucedida ou feliz do que nós. Esta comparação social, somada à pressão para estar sempre atualizado, cria um ciclo de insatisfação.
A constante enxurrada de notícias e o medo de perder algo importante (o famoso "FOMO" – Fear of Missing Out) também intensificam a sensação de ansiedade. Mesmo quando estamos offline, muitas vezes carregamos essa inquietação connosco, o que contribui para um estado de alerta constante, que é mentalmente exaustivo.
Outro fator importante é o impacto das redes na nossa qualidade de sono. Ficamos conectados até tarde, consumindo conteúdos, o que interfere no relaxamento e prejudica o descanso. A falta de sono, por sua vez, tem efeitos diretos sobre o nosso humor e saúde mental, aumentando a irritabilidade e diminuindo a nossa capacidade de lidar com o stress diário.
O facto de muitos de nós terem adotado teletrabalho ou modelos híbridos de trabalho tornou-nos mais “lobos solitários”?
A transição para o trabalho remoto, que se acelerou durante a pandemia, trouxe consigo uma sensação de isolamento que muitos não estavam preparados para enfrentar. Antes, o ambiente de trabalho proporcionava uma rotina social, com interações espontâneas e presenciais que, embora parecessem rotineiras, eram essenciais para o nosso bem-estar. Agora, essas trocas foram substituídas por e-mails, mensagens de texto ou videoconferências, que são muito mais funcionais e menos humanas. Essa mudança torna a experiência de trabalho mais solitária e, em muitos casos, transforma-nos em “lobos solitários”, desconectados das interações sociais que antes faziam parte do dia a dia.
A falta de convivência presencial afeta a nossa capacidade de construir vínculos mais profundos e deixa-nos emocionalmente mais distantes.
Além disso, a linha entre o trabalho e a vida pessoal tornou-se cada vez mais ténue. Sem a separação física entre o espaço de trabalho e o lar, muitas vezes sentimo-nos compelidos a estar disponíveis o tempo todo, o que resulta num estado de constante alerta e cansaço.
Esta combinação entre a vida online e o teletrabalho cria um paradoxo: estamos mais conectados do que nunca, mas, ao mesmo tempo, sentimo-nos mais isolados e desconectados emocionalmente.
A crise económica e a guerra também vieram piorar a nossa saúde mental, mesmo que não tenhamos sido diretamente afetados no nosso dia a dia por estes fatores?
A crise económica, a guerra e a pandemia têm tido um impacto significativo na saúde mental das pessoas, mesmo daquelas que não foram diretamente afetadas por esses acontecimentos. O simples fato de viver num mundo onde esses eventos ocorrem, cria um ambiente de incerteza e ansiedade que se reflete no bem-estar emocional de todos. Mesmo sem uma relação direta com a perda de emprego, a vivência de um conflito ou a doença, somos expostos constantemente às notícias e às imagens desses eventos, o que gera um efeito psicológico forte. A sensação de que o mundo está descontrolado, que a estabilidade pode ser perdida a qualquer momento, afeta o nosso sentimento de segurança, alimentando medos e tensões que antes poderiam não estar tão presentes.
A sobrecarga de informações negativas, amplificada pelas redes sociais e pelos órgãos de comunicação social, contribui para esse cenário de angústia. Estamos sempre a par de crises globais, como a instabilidade económica, conflitos armados ou catástrofes de saúde pública, o que nos faz sentir que vivemos numa era de constante ameaça. Isso cria uma sensação de ansiedade contínua, que, mesmo sem ser diretamente relacionada à nossa vida pessoal, permeia o nosso quotidiano. O impacto dessas crises pode ser indireto, mas profundo, porque elas lembram-nos, constantemente, da fragilidade das nossas vidas e da sociedade.
A pandemia, em particular, alterou a maneira como muitos de nós vemos o mundo e lidamos com o futuro. Mesmo aqueles que não foram afetados diretamente pelo vírus ou por perdas pessoais, sentiram os efeitos emocionais do isolamento social, das incertezas sobre a saúde pública e das mudanças abruptas na forma como vivemos. A pandemia criou uma sensação de vulnerabilidade coletiva, onde a normalidade foi suspensa, e o medo do desconhecido se instalou de forma duradoura. Para muitos, essa foi uma experiência traumática, que deixou marcas psicológicas, como aumento da ansiedade, depressão e solidão.
O aumento do custo de vida, o receio de perder estabilidade financeira ou de enfrentar uma recessão iminente geram um clima de incerteza que pesa na mente das pessoas. A preocupação constante com o futuro financeiro, mesmo que ainda distante da realidade pessoal, pode provocar stress, afetar o sono e criar um estado de alerta permanente. Essa ansiedade sobre o que pode acontecer no futuro, somada à sobrecarga emocional de acompanhar crises globais, como guerras ou desastres naturais, acaba por corroer a nossa capacidade de sentir segurança e estabilidade.
Portanto, mesmo que não sejamos diretamente atingidos por uma crise específica, o contexto em que vivemos — cheio de incertezas, tensões e medos globais — exerce uma pressão constante sobre a nossa saúde mental. Vivemos numa época em que as crises globais parecem estar sempre à espreita e essa perceção alimenta um estado de ansiedade e insegurança que se infiltra nas nossas vidas.
A saúde mental continua a ser uma espécie de parente pobre da saúde em Portugal, apesar de já começarmos a adotar medidas (como o cheque-psicólogo para alunos do ensino superior) que parecem querer mudar o panorama. Porque é que existe esta desvalorização?
A desvalorização da saúde mental em Portugal tem raízes históricas e culturais profundas. Durante muito tempo, as perturbações mentais foram vistas como fraquezas pessoais, o que gerou estigma e relutância em reconhecer essas condições como legítimas e tratáveis.
O facto, por exemplo, de uma depressão não ser detetável à luz de uma análise de sangue ou exame imagiológico, confere-lhe uma categoria menos objetiva, menos real. Ainda ouvimos que “depressões é para quem tem tempo”.
Além disso, sempre houve um subfinanciamento crónico da área, com menos recursos para contratar profissionais e oferecer tratamentos adequados, especialmente no sistema público de saúde. Enquanto as doenças físicas são mais visíveis e fáceis de medir, as condições mentais muitas vezes passam despercebidas, o que contribui para a falta de prioridade.
A falta de educação e sensibilização sobre saúde mental também perpetua essa desvalorização. Muitas pessoas ainda desconhecem os sinais e os impactos das condições mentais, o que faz com que a procura por ajuda seja muitas vezes tardia ou evitada. Isto reflete-se em políticas públicas que, historicamente, têm dado mais atenção a outras áreas da saúde, como a saúde física, particularmente num sistema de saúde já sobrecarregado.
E o que é preciso para a contrariar?
Para mudar esse panorama, é preciso um maior investimento em saúde mental e recursos adequados para tratar essas condições, bem como campanhas de sensibilização que ajudem a reduzir o estigma. Além disso, é fundamental que a saúde mental seja plenamente integrada no sistema de saúde e vista como uma parte essencial do bem-estar global. Medidas como o "cheque-psicólogo" para estudantes universitários são um passo positivo, mas é necessário expandir essas iniciativas para o público em geral e garantir que todos tenham acesso ao apoio psicológico e psiquiátrico necessário. A promoção da saúde mental em escolas e locais de trabalho também é crucial, prevenindo problemas antes que se tornem crónicos e oferecendo apoio contínuo a quem já sofre.
Voltemos ao seu livro. Relata-nos a sua própria luta contra a infertilidade, responsável ou gatilho para problemas de saúde mental de tantas mulheres e homens e pela rotura de tantos casais. É um tema ainda tabu para muita gente e ignorado por quem tem responsabilidades públicas e políticas. O que é preciso para apoiar de forma mais eficiente as vítimas da infertilidade?
Apoiar de forma mais eficiente quem se debate contra a infertilidade exige uma abordagem sensível e abrangente, que envolva não apenas tratamentos médicos adequados, mas também apoio emocional, social e psicológico. É essencial normalizar as conversas sobre infertilidade, de forma a reduzir o estigma que muitas vezes envolve o tema. Muitas pessoas que enfrentam dificuldades para engravidar sentem-se isoladas ou envergonhadas, o que dificulta a procura por apoio. Promover uma maior consciencialização sobre o assunto, tanto nas esferas públicas quanto privadas, ajudaria a criar um ambiente de empatia, onde as pessoas pudessem expressar as suas dificuldades, sem medo de julgamentos.
Além disso, é crucial melhorar o acesso a tratamentos de fertilidade, tanto em termos de disponibilidade, quanto de custo. Muitas vezes, os tratamentos de fertilidade são caros e nem sempre cobertos pelos sistemas de saúde ou seguros. Tornar esses tratamentos mais acessíveis, seja por meio de políticas públicas ou subsídios, ajudaria a garantir que as pessoas que precisam de apoio médico pudessem recebê-lo, independentemente da sua condição financeira e da sua idade.
E o apoio psicológico, não é também fundamental?
A infertilidade pode ser uma experiência emocionalmente devastadora, causando sentimentos de perda, frustração, baixa autoestima e até depressão. Oferecer acompanhamento psicológico especializado a casais ou indivíduos que enfrentam a infertilidade pode ajudá-los a processar a suas emoções, lidar com o stress e encontrar caminhos para seguir em frente, seja com novos tratamentos ou com a aceitação de outras possibilidades de construir uma família.
Outro aspeto importante é a sensibilização social. Criar uma rede de apoio com empatia e respeito é vital para que as pessoas afetadas pela infertilidade não se sintam ainda mais isoladas na sua luta.
Termino com a mesma pergunta com que termina o press release que a sua editora enviou às redações: e se falássemos sobre o que sentimos, sem medos, nem julgamentos? O que aconteceria e como seriam as nossas vidas?
Criaríamos um ambiente de maior aceitação, empatia e compreensão, onde os laços entre as pessoas se fortaleceriam e o fardo emocional que muitos carregam em silêncio seria aliviado. A autenticidade e a transparência emocional seriam a norma, e, ao invés de escondermos as nossas vulnerabilidades, encontraríamos apoio e conexão genuína com os outros.
De repente, veio-me à cabeça o verso de Jorge Palma: “Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal; Na terra dos sonhos, não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar; Abre bem os olhos, escuta bem o coração, sei que queres ir para lá morar”.