Um ataque terrorista em Jamu e Caxemira que matou 26 turistas a 22 de abril reabriu as hostilidades entre dois rivais históricos, ambos potências nucleares - e as tensões têm estado num crescendo desde então. Na terça-feira, as forças indianas mataram 31 civis em ataques "sem precedentes desde 1971". Quando entrevistámos Praveen Donthi, analista do International Crisis Group, aguardava-se a retaliação oficial do Paquistão. Num artigo sobre "o perigoso impasse fronteiriço da Índia com a China", publicado na reputada revista Foreign Affairs, o ex-jornalista indiano ressaltava que a "dura posição" de Narendra Modi "pode convidar, e não dissuadir, a agressão chinesa". Um ano depois, diz à CNN que a "mão pesada" do primeiro-ministro indiano com Caxemira vai continuar a alimentar atentados como o de há um mês em Pahalgam, "quer sejam apoiados pelo Paquistão quer não sejam". Sendo o terceiro país com controlo parcial de Caxemira, a China permanece neutra e alinhada com os pedidos de "contenção" de outros países. Até porque, como destaca Donthi a partir de Nova Deli, só os EUA podem evitar uma escalada
Sabemos que esta é uma situação em constante desenvolvimento e que é praticamente impossível saber ao certo o que vai acontecer a seguir. Ainda assim, muitos dentro e fora da Índia e do Paquistão parecem acreditar que os dois países estão à beira de um conflito mais alargado ou até mesmo de uma guerra. Neste momento, aguardamos para ver o que vai o Paquistão fazer após os ataques da Índia que mataram pelo menos 31 civis, no que o governo de Narendra Modi diz ter sido uma retaliação ao ataque terrorista de 22 de abril na parte de Caxemira administrada pela Índia. Qual é a sua opinião sobre tudo isto? Estamos mesmo à beira de uma guerra total entre Índia e Paquistão?
Isto tem estado a escalar desde o primeiro dia e é verdade que, neste momento, estamos a aguardar pela retaliação do Paquistão. Mas hoje [8 de maio] a Índia já está a alegar que o Paquistão tentou atacar cidades indianas com drones e, se isso for verdade, então a retaliação paquistanesa já começou. Não existe forma de o confirmar, mas se assim for já terá começado. Está tudo a desenrolar-se e há, de facto, um grande risco de as coisas se descontrolarem. Estamos a falar de duas potências nucleares e ambos estão em modo jogo de cintura. Há muita raiva dos dois lados e ambos os governos estão sob enorme pressão interna, sentem que não podem recuar agora.
Muitos consideram que tudo vai depender da capacidade de diferentes líderes mundiais para dirimir as tensões, e já há esforços diplomáticos em curso nos bastidores. Para além dos pedidos de contenção vindos de líderes europeus e outros, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão estar a planear visitar a Índia depois de se ter deslocado ao Paquistão indica-nos o quê? O que podemos esperar dos diferentes atores regionais?
O MNE iraniano já está na Índia e já se encontrou com o ministro indiano dos Negócios Estrangeiros, que lhe disse que a Índia não quer uma escalada, mas que, se for atacada, será forçada a reagir com muita força. A verdade é que não sei se o Irão, como os Emirados Árabes Unidos ou a Arábia Saudita, se qualquer destes países tem capacidade para mudar grande coisa. Todos têm boas relações com os dois países. Podem servir de mensageiros, mas em última instância são os EUA que têm de intervir e exercer pressão.
Uma fonte em Caxemira dizia-me precisamente isso no início da semana: que em última análise, e tal como aconteceu em 2019, o poder está nas mãos do presidente dos EUA, Donald Trump. Foi a primeira administração Trump que evitou uma guerra entre a Índia e o Paquistão há seis anos, depois de Modi ter decidido revogar o estatuto especial de Caxemira. O que podemos esperar de Trump desta vez?
Desta vez não tenho qualquer confiança, a posição de Trump parece ser muito insípida e vaga, diz que a Índia e o Paquistão são ambos amigos dos EUA e que vão conseguir resolver o assunto. Soa pouco sério, soa como se a intenção da atual administração norte-americana fosse deixar as coisas desenrolarem-se mais um bocado, até que uma linha vermelha seja ultrapassada.
E qual poderia ser essa linha vermelha?
A questão é precisamente essa, é que a dita linha vermelha deslocou-se muito desde 2019. A administração Trump reconhece as compulsões internas de ambos os lados, quer do governo de Narendra Modi, quer do governo de Shehbaz Sharif, e a menos que lhes seja permitido atacar e contra-atacar, não será possível lidar com a raiva do público. É essa a minha leitura.
Para além disso, acho que as potências mundiais que pensam que este é apenas mais um episódio de um conflito que se arrasta há décadas, entre duas potências que controlam a dinâmica da escalada, estão enganadas.
No sentido em que já não há controlo?
Se olharmos com atenção, desde a primeira vez, a escala é muito maior do que era em 2019. Esta foi a primeira vez desde 1971 que a Índia atacou tão profundamente no interior do Paquistão, com muitas mesquitas destruídas, muitos civis mortos, incluindo crianças. Não sabemos o que vai acontecer daqui para a frente, mas sabemos que ambas as partes não estão a tomar decisões totalmente corretas, há muita paixão e emoção que rege esta relação. Desde a divisão [em 1947], ambas as partes tendem a perder de vista a razão e a racionalidade, e um erro pode ser suficiente para quebrar o patamar nuclear. [Uma guerra nuclear] parece improvável, mas basta um erro...
Que tipo de erro?
Poderia ser, por exemplo, se o Paquistão tentasse retaliar e atingisse instalações sensíveis, ou fizesse algumas vítimas civis sensíveis. Recorde-se que esta situação começou com o ataque militante em Pahalgam, na Caxemira administrada pela Índia, que matou 26 civis. Em toda a Índia, Modi está sob pressão para retaliar e um ataque mal calculado de qualquer um dos lados pode fazer escalar a guerra.
Um analista argumentava esta semana que a Operação Sindoor marca uma nova doutrina da Índia sob a qual Deli já não reconhece a diferença fundamental entre terrorismo e agressão militar, dado que atribuiu ao adversário a culpa pelo atentado de 22 de abril e que usou esse atentado para iniciar ataques convencionais. Concorda? Estamos diante de uma nova política estratégica da Índia?
Concordo que houve uma alteração na política estratégica da Índia, mas não a que esse analista aponta. A Índia foi muito cautelosa ao não atacar locais militares e ao dizer que o seu exército se focou em alvos com base em informações específicas dos serviços de informação, atacando alegadas infraestruturas terroristas e não zonas militares ou governamentais. Se tivesse deixado de fazer essa distinção entre terrorismo e agressão militar, então não teria tomado essa decisão, pelo que não concordo com essa análise em particular. Mas existe definitivamente uma mudança nas políticas da Índia.
Que mudança?
O facto de que existe agora um risco muito maior em termos de ataques retaliatórios do que em 2016 ou em 2019. É como se o limite estivesse a ser carregado desde então e o risco a aumentar muito. E, a este ritmo, não restará outra opção que não seja uma guerra em grande escala, agora ou da próxima vez. A menos que se lide com as causas profundas deste tipo de ataques militantes, isto não vai parar.
Quais são essas causas profundas? Em 2019, muitos viram na decisão de Modi de revogar o estatuto especial de Caxemira como um ataque encapotado à maioria muçulmana da região, é a esse tipo de causas que se refere?
Esse é um gatilho iminente. Há muita raiva no terreno em Jamu e Caxemira, e isso cria as condições propícias para estes ataques militantes, quer eles sejam ou não apoiados pelo Paquistão, quer os atacantes sejam paquistaneses ou não. A raiva no terreno permite estes ataques militantes e estes fatores têm de ser resolvidos. A Índia tem de resolver as inseguranças dos muçulmanos de Jamu e Caxemira, porque estes são fatores controláveis. A Índia pode e deve resolver parte das inseguranças e receios dos seus cidadãos em Jamu e Caxemira se quer pôr termo a este conflito.
Mas isso não vai contra o que parecem ser as políticas nacionalistas do atual governo indiano? Com a revogação do estatuto especial de Caxemira, Modi também permitiu que pessoas de fora adquiram terrenos ali, no que pode ser visto como uma abertura para forçar uma mudança demográfica, enfraquecendo a comunidade muçulmana de Caxemira. Até que ponto podemos esperar que um governo como o de Modi aborde e responda a estes medos e a esta raiva no terreno?
Esse é um ponto brilhante e perspicaz, é de facto muito improvável, porque é exatamente nessa situação que estamos neste momento. Simplesmente culpar o Paquistão [pelo atentado em Pahalgam] pode ser útil internamente, mas não resolve o problema. E com um partido ideológico no poder em Deli [o BJP de Modi], que tem uma abordagem de mão pesada com Caxemira, estes problemas continuarão a surgir e estes ataques continuarão a ter lugar. E dada essa abordagem ideológica é improvável que o governo adote outra, é improvável que a altere. Portanto sim, enquanto o conflito de Caxemira e o problema de Caxemira for deixado a apodrecer, haverá ataques militantes, quer sejam apoiados pelo Paquistão, quer não sejam.