Bancos portugueses escaparam a multa milionária mas "o mais grave ainda está para vir". Indemnizações a clientes podem chegar aos "milhares de milhões de euros"

12 fev, 07:00
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Tribunal da Relação anulou coima de 225 milhões ao cartel da banca por prescrição, mas a decisão não terá impacto nas ações populares que correm contra os bancos na Justiça. Um dos acórdãos que esteve no centro da decisão da Relação pode vir a servir de "arma" aos clientes que avançaram com pedidos de indemnização

Os maiores bancos portugueses viram prescrever no início desta semana a multa histórica de 225 milhões de euros aplicada pela Autoridade da Concorrência (AdC) contra eles no processo do Cartel da Banca. Mas esta pode vir a ser uma vitória frágil. Caixa Geral de Depósitos, Millenium BCP, Santander, Montepio e outras oito entidades bancárias continuam a ter pela frente uma série de ações populares que exigem mais de cinco mil milhões de euros pelos danos causados aos clientes. E nestes casos, garante a associação Ius Omnibus, promotora dos cinco processos que estão na justiça, “o direito de indemnização ainda não está prescrito nem corre o risco de alguma vez prescrever”.

Isso acontece porque os prazos de prescrição são diferentes entre processos contraordenacionais - o caso da multa da AdC - e processos civis, existindo também regras especiais para ações relacionadas com infrações às leis da concorrência. “O prazo de prescrição para os consumidores lesados começou a correr em 2019, com a decisão da Autoridade da Concorrência, e é de 5 anos”, explica Carolina Ramalho dos Santos, secretária-geral da Ius Omnibus, sublinhando que “a contagem para a prescrição foi suspensa pelo recurso dos bancos contra a decisao da AdC”. 

Além disso, explica a mesma responsável, “assim que se intenta a ação popular”, “o prazo de prescrição é interrompido”. Dito de outra forma, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa conhecida esta segunda-feira não livra os bancos da possibilidade de virem a ter de pagar muitos milhões de euros em indemnizações. Isto porque ficou provado, tanto pelo Tribunal da Concorrência, como pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que as leis concorrenciais do setor foram violadas

Ainda que o Tribunal da Relação tenha concluído que as multas prescreveram, “isso não altera o sentido da decisão inicial”, explica Carolina Ramalho dos Santos. “A infração existe, existiu durante 11 anos e os clientes dos bancos têm direito a serem compensados”. A associação tem também, desde a condenação no tribunal da concorrência, recebido uma grande corrente de pessoas interessadas em aderir à ação coletiva contra os bancos. “Temos recebido cada vez mais pedidos de informação porque este é um caso que abrange virtualmente todos os consumidores portugueses”. “Estamos a falar de quase todos os bancos ativos em Portugal”. 

A decisão da prescrição da multa aplicada aos bancos deixa a Autoridade da Concorrência numa situação complicada. Neste momento, tem dois caminhos: pode recorrer para o Tribunal Constitucional que, na prática, poderá de forma abstrata analisar a interpretação que levou à extinção das multas; ou pode apresentar uma reclamação junto do Tribunal da Relação. 

No entanto, a interpretação dos especialistas nesta área é que dificilmente poderá reverter o recente acórdão e que, para a banca, o grande problema será lidar com os pedidos de indemnização. “Mesmo que tenha existido um reconhecimento de que a multa está prescrita, o que é mais grave ainda para os bancos é o processo que ainda está para vir”, afirma o economista Abel Mateus, antigo presidente da Autoridade da Concorrência, que acredita que será nestas ações coletivas que os bancos terão de lidar com as consequências da cartelização do setor. “São montantes muito mais elevados do que a multa em causa, são montantes na casa dos mil milhões de euros e, a favor deles, têm o facto de as violações praticadas pela banca terem sido provadas pelo Tribunal da Concorrência e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”.

Aliado a isso está também a denegrição da perceção da população sobre as práticas bancárias, sublinha Abel Mateus. “Nós estamos a falar de algo muito grave, estamos a falar de bancos que combinaram entre si taxas de juro de créditos à habitação formando um cartel extremamente danoso para o funcionamento do mercado”. “Na prática, o mercado passou a funcionar como se fosse um monopólio”.

Decisão que acelerou a prescrição pode ajudar indemnização dos consumidores

O processo do Cartel da Banca corre desde dezembro de 2012, altura em que a Autoridade da Concorrência começou a investigar uma denúncia do Barclays, na qual era exposto um complexo esquema de troca de informações sobre preços e quotas de mercado entre bancos concorrentes no mercado de crédito. 

Oito anos depois, a autoridade aplicou coimas no valor de 225 milhões de euros a 14 bancos. Já em 2022, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão dá como provado que os bancos partilharam entre si informação condicional, mas decide remeter o processo para o Tribunal da Justiça da União Europeia no sentido de esclarecer se as regras da concorrência foram violadas.

Esta decisão levou a que o processo estivesse pendente mais dois anos, aumentando o risco de prescrição, especialmente tendo em conta o facto de o Tribunal de Justiça da União Europeia já se ter pronunciado sobre questões semelhantes e ter aferido que quando existia troca de informação sobre preços futuros tal constituía um cartel. 

Esses dois anos foram a diferença entre a vida e a morte do processo instaurado pela Autoridade da Concorrência, já que o Tribunal da Relação considerou que, durante esse período, o prazo de prescrição não ficou suspenso - um entendimento contrário ao do Tribunal da Concorrência.

Certo é que, passados esses dois anos, o TJUE decide a favor da Autoridade da Concorrência em setembro de 2024, sublinhando que os bancos “têm de determinar de forma autónoma a política que tencionam seguir e têm de permanecer na incerteza quanto aos comportamentos futuros” dos concorrentes. Para Miguel Marques Carvalho, advogado especialista em Direito da Concorrência e Direito da União Europeia, “o Tribunal da Concorrência não estava obrigado a pedir a intervenção do TJUE, mas ao fazê-lo pode ter tido a intenção de ver aquele tribunal confirmar que o que estava em causa uma infração pelo objeto, o que objetivamente daria mais força às ações coletivas”. 

Dessa forma, o acórdão que custou dois anos ao processo principal pode servir como “arma” das ações vindouras contra os bancos. “Se tivéssemos tido o processo só internamente, haveria o risco de termos um processo a terminar sem uma condenação, por causa do risco de prescrição, como acabou por acontecer”. “Agora, o que pode sobrar deste processo é um acórdão do TJUE que se pronunciou sobre os contornos daquela prática, considerando que se trata de uma infração por objeto, ou seja, uma prática grave, que pela sua natureza lesa a concorrência”. “isso é uma arma que tem algum peso nesta fase em que a parte da responsabilidade cível será avaliada”, considera Miguel Marques Carvalho.

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