"Quem é que consegue dormir?" Albergaria acordou no inferno e deitou-se num sítio que não conhecia

17 set, 07:00

Depois do cineteatro Alba foi o pavilhão do município a receber as dezenas de pessoas afetadas. Hoje encontraram sítio onde ficar, amanhã não sabem como vai ser

Mário Marques abriu a porta de casa para ir trabalhar e “vuuuuuuuu” - faz o som de uma rajada, um sopro que não se sabe se puxa ou se empurra, o som do fogo que se aproximava a grande velocidade e que parecia determinado em levar tudo à sua frente. “Só se via preto, como se ainda fosse de noite.” Apesar disso, Mário, morador em Albergaria-a-Velha, entrou no carro e aventurou-se à estrada a caminho de Aveiro. “Passei o dia preocupado, claro, mas tinha de trabalhar, não é?” Vítor Silva também tinha de trabalhar mas não conseguiu chegar à empresa. “Os bombeiros já estavam ali, na Nacional, à espera dele.” Dele, do fogo. E o fogo veio. “Aquilo foi de repente”, conta. Valeu-lhe o facto de conhecer bem a zona, de saber os caminhos e conseguir escapar-se sem correr riscos.

Mário e Vítor residem em Albergaria-a-Velha e foram surpreendidos pelo fogo. (Imagem: Sofia Marvão)

Foi durante a madrugada de domingo para segunda-feira que o fogo ganhou força e entrou pela localidade de Albergaria-a-Velha. Por volta das 07:30, Tiago, de 25 anos, acordou e deu com o fogo à porta de casa. “Estava a arder um descampado ali mesmo.” Foi só o tempo de acordar o colega Bruno, de 28 anos, e juntarem-se aos vizinhos com baldes de água, mangueiras, ramos, “o que houvesse à mão” para tentar apagar aquele fogo rasteiro antes dele chegar às casas. “O vento estava fortíssimo, a assobiar, empurrava-nos os corpos, quase que nos mandava ao chão”, conta Tiago. “Não se via nada, só o fumo. Parecia que ainda era noite. E víamos que havia casas a arder ali perto”, recorda Bruno. O susto foi grande mas “a adrenalina era tanta que não deu para ter medo”, dizem. “Só se pensa em salvar o que é nosso.”

Ao final do dia, são estas as histórias que têm para contar, enquanto bebem umas cervejas no Café Bristol. O ar está impregnado com o cheiro a fumo, os olhos lacrimejam, veem-se cinzas a cair do céu, desfazendo-se assim que tocam o chão. Passam já das dez da noite, é hora de ir para casa mas ali ninguém acredita em sonos descansados. “Passámos o dia em alerta e vamos continuar assim”, dizem Bruno e Tiago, que trabalham numa empresa de audiovisuais em Sever do Vouga e estão prontos para correr para lá se algo acontecer. “Se o fogo passar o rio, vai ser uma tragédia. Estamos à espera que nos digam, a qualquer momento, se precisam da nossa ajuda.”

Bruno e Tiago trabalham numa empresa em Sever do Vouga e aguardam uma chamada a qualquer momento. (Imagem: Sofia Marvão)

“Este incêndio é originário do incêndio que está em Sever de Vouga e do que está em Oliveira de Azeméis, o vento empurrou-o para Albergaria, foi um incêndio muito violento e rápido”, explica João Oliveira, coordenador municipal de proteção civil de Albergaria-a-Velha. "Nunca imaginámos que o incêndio chegasse ao centro da cidade, arderam jardins e habitações, não pensámos que seria possível, mas como são dois incêndios importados para Albergaria, juntou-se a força dos dois e invadiu o concelho. Entre as 7 e as 11 da manhã foi quando tivemos maior velocidade dos ventos e foi quando tivemos mais incêndio dentro da cidade e em todo concelho.”

Num balanço feito durante a tarde, o presidente da Câmara Municipal de Albergaria-a-Velha, António Loureiro, reconheceu que tem sido “complexo gerir este fogo” e que “o incêndio está espalhado por todas as freguesias”, com, pelo menos, 20 casas afetadas, assim como várias viaturas, dois armazéns e um escritório. Albano Ferreira, comandante dos bombeiros de Albergaria-a-Velha falou de uma progressão muito rápida das chamas, com o vento a dificultar o trabalho dos bombeiros e a colocar ainda mais em risco a população. “O concelho está praticamente todo tomado”, admitiu, prevendo uma “madrugada muito complicada”.

Para chegar a Albergaria, vindos de Lisboa ao final do dia, não se pode seguir pela A1 e, mesmo por estradas nacionais, tem de se estar sempre atento ao GPS, que vai indicando as estradas cortadas devido aos incêndios. Leva-se mais tempo, há mais curvas e buracos. Mas tirando a nuvem de fumo que está cada vez mais próxima e o cheiro a queimado, não há incidentes a assinalar. Já no distrito de Aveiro deparamo-nos com carros de bombeiros parados em alguns pontos das estrada, “podemos seguir?”, “sim, mas vão com atenção”. Vamos. Já é noite e nas ruas da localidade onde ainda há algumas horas se tentava salvar casas reina o silêncio. Camiões de bombeiros enchem os tanques junto ao quartel, mais à frente camiões de bombeiros abastecem no posto de combustível. De resto, não se vê vivalma e, embora todos nos falem “dele”, é impossível saber ao certo por onde andou o fogo.

Posto de comando de Albergaria-a-Velha. (Imagem: Sofia Marvão)

No Pavilhão Municipal de Albergaria-a-Velha, o campo de jogos foi transformado em dormitório. Onde se costuma jogar basquete e andebol estão agora enfileiradas camas de campanha e colchões onde esta noite dormiram 39 pessoas: muitas delas viram as suas casas danificadas ou mesmo completamente destruídas pelo fogo, algumas estavam em trânsito e ficaram retidas em Albergaria, impedidas de seguir viagem, e há ainda um pequeno grupo de crianças e jovens que foram retirados de um lar residencial. “São pessoas vulneráveis, que não têm retaguarda e não tinham para onde ir”, explica Catarina Mendes, vereadora que, entre outros, tem o pelouro da ação social. Fala baixo, para não incomodar quem já dorme. O dia foi longo para todas estas pessoas. Antes das 22.00, o pavilhão está silencioso e a maioria tenta descansar. 

“Temos o apoio da misericórdia e servimos refeições, ao almoço estivemos numa outra zona de acolhimento [no cineteatro Alba, no centro da cidade] e a partir das 6 da tarde começámos a montar tudo neste pavilhão”, explica a vereadora, visivelmente cansada. “Neste momento, já tomaram uma refeição quente e estão acomodadas, dentro do possível. Tentamos dar-lhes algum apoio. Há alguma ansiedade, mas agora estão todos mais ou menos tranquilos”, garante. Entre técnicos da autarquia, da segurança social, técnicos da instituição que ali está acolhida e voluntários são cerca de 20 os que garantem o funcionamento deste centro.

Ficar ali até poderem voltar a casa

Foi criada uma zona de refeições, com mesas e cadeiras, pequenos snacks, fruta, garrafas de água. E ainda há espaço para colocar mais camas, se for necessário. O centro tem capacidade para receber até 100 pessoas. “Vão ficar aqui até poderem voltar às suas casas ou até termos uma solução de alojamento diferente, pode ser um apartamento ou numa pensão.” Catarina Mendes não tem números, mas afirma que foram muitas as casas que ficaram danificadas. “O incêndio foi complicado, em todo concelho e em simultâneo, e ainda temos algumas situações complexas”, diz.

A noite ainda vai a meio. “Estamos a reposicionar meios, o incêndio está perigoso e violento na zona norte do nosso concelho, sobretudo nas freguesia de Branca e Ribeira de Fráguas”, diz o comandante João Oliveira. “Já fizemos alguma retirada de pessoas para as zonas de concentração e apoio, o nosso foco é a proteção da população e das habitações. Estamos com máquinas industriais, de arrasto, a abrir caminhos, fazer a divisão para não chegar às habitações, e fazemos a concentração de meios no ponto para onde sabemos que o fogo se está a dirigir.”

O posto de comando das operações de combate ao incêndio em Oliveira de Azeméis foi transferido de Palmaz para Travanca. (Imagem: Sofia Marvão)

“Hoje todos os momentos foram críticos. Sempre que temos um incêndio ou, neste caso, vários incêndios, que afetam populações todos os momentos são críticos, de grande stress e grande ansiedade", diz o 2.º comandante nacional Mário Silvestre, que é o responsável pelo posto de comando instalado em Travanca, a poucos quilómetros de Oliveira de Azeméis, que está a gerir “os três incêndios, que neste momento praticamente é só um: de Oliveira de Azeméis, de Sever do Vouga (que está já a bater na zona de Águeda) e de Albergaria”. “O objetivo é a partir daqui fazermos uma gestão melhor dos recursos que temos alocados a estas zonas, tratando tudo isto apenas como um incêndio”, explica. São cerca de 720 os elementos das diversas forças de proteção que estão a combater o complexo de incêndios e prevê-se “uma noite e um dia muito complicados. Temos muito trabalho pela frente e há muitas localidades em risco.”

Neste momento as duas preocupações maiores são a frente de Sever e Águeda e a zona industrial de Albergaria: “operacionalmente são as zonas com maior possibilidade de abertura do incêndio, isto mantendo-se as condições meteorológicas e o cenário que temos agora”, explica. 

Ignições visíveis a partir do posto de comando instalado em Travanca, entre a igreja e o cemitério. (Imagem: Sofia Marvão)
(Imagem: DR)

Anabela Valente está a pé desde as sete manhã, é quase meia-noite e não sabe quando se irá deitar. “Eu deveria deitar-me um bocadinho com os miúdos, mas uma pessoa está em sobressalto, e se é preciso acudir a alguma casa?” Para acalmar a ansiedade, veio com a família toda ao posto de comando instalado entre a igreja e o cemitério, em Travanca. Enquanto o marido fala com os bombeiros, Anabela segura o filho Lourenço de cinco anos no colo, encaixado na anca esquerda. 

O dia começou com o céu cinzento de fumo. “Saímos de casa e parecia tudo calmo. Sabíamos que havia um incêndio e que havia estradas cortadas, mas era mais para a zona do Curval. Numa fração de um quarto de hora, talvez nem tanto, tínhamos tudo a arder aqui em volta. Deixei o menino na escola eram 9 da manhã, às 10 menos 10 já me estavam a ligar para ir buscá-lo, por precaução. O vento estava terrível. Entretanto, a gente já não sabia de que lado é que vinha o fogo, era da Macinhata, era da zona do Pinheiro, de Albergaria, foi mesmo muito mau.” Na escola, a filha Beatriz, de doze anos, ouvia constantemente as sirenes dos bombeiros e não parava de telefonar para saber o que se passava.

Anabela mostra imagens surpreendentes, que vai recebendo de conhecidos em tempo real. (Imagem: Sofia Marvão)

“Fiquei muito assustada, era uma imagem… não dá para explicar. Muitas fagulhas no ar. Nós estávamos aqui e víamos a arder da parte da frente, depois de trás, incontrolável. Acalmava daqui, começava ali. Os bombeiros já não têm mãos a medir. A minha casa nunca esteve em risco, graças a Deus. Mas tenho uma prima na Branca que ainda há pouco tinha o fogo à porta de casa. E estamos de precaução, alguma coisa, vamos lá prestar auxílio porque aquilo está mesmo muito mau.” Anabela semicerra os olhos para ver o fogo que se levanta num monte não muito longe: “Está a levantar-se vento outra vez, isto é muito preocupante”, desabafa. “Quem é que consegue dormir?”

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