"As reinfeções não estão a dar vantagem às pessoas". À sexta vaga da covid-19, ainda podemos esperar pela imunidade de grupo?

28 mai 2022, 08:00
Covid-19 em Portugal

"As infeções por SARS-CoV-2 têm um problema, que é uma provável desregulação dos linfócitos T, e, nesta circunstância, não se vê com bons olhos a questão da reinfeção sucessiva que garanta imunidade. Há um universo de consequências da presença deste vírus que não estão apreendidas", diz Bernardo Gomes

Quando as vacinas contra a covid-19 chegaram a Portugal, admitia-se que seria necessário vacinar 70% da população para atingir a imunidade de grupo. Uma hipótese que deixou muitos a fazer contas, sempre à espera do momento em que o SARS-CoV-2 deixava de ser uma ameaça e sucumbia aos reforçados sistemas imunitários dos portugueses.

Não foi bem assim. “Mudou o paradigma”, afirma Bernardo Gomes, médico de Saúde Pública. “Mudou a circunstância de percebermos que a evolução do vírus tem sido bastante rápida e com uma componente de invasão imunitária. As novas variantes vão escapando, até certo ponto, à imunidade estabelecida pela vacinação e infeções anteriores, ainda que exista alguma retenção de memória imunitária útil, nomeadamente na proteção de consequências mais graves. Mas isso não é garantido”, acrescenta o especialista. “Sem uma vacina esterilizante que acabe por bloquear a transmissão de forma mais marcada do que esta, sem imunidade adquirida 'a la longue', persistente, em relação a um vírus que até está em mutação, não faz sentido falar em imunidade de grupo”, refere Bernardo Gomes. 

Também para Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, o conceito de imunidade de grupo soa “algo difuso”, lembrando que, ao longo da pandemia, já foram apresentadas “várias percentagens que constituíam a imunidade”. Mas assinala que, “mais importante do que falar de imunidade de grupo, é falar em proteção de grupo, ou seja, termos uma percentagem muito significativa da população com algum tipo de proteção contra a doença. E aqui faço questão de distinguir entre infeção e doença, porque são dois conceitos que estão ligados mas são diferentes”, refere o investigador.

“Uma coisa é não estarmos protegidos da infeção, não termos resposta imunitária que nos impeça de contrair a infeção. Coisa diferente é termos respostas imunitárias que, apesar de não impedirem por completo que a infeção aconteça, reduzem fortemente a possibilidade de essa infeção conduzir a doença grave e a morte. E, desse ponto de vista, quer as vacinas quer a exposição ao vírus têm um papel fundamental”, indica Miguel Prudêncio.

O investigador questiona mesmo a utilidade de conceitos como o da imunidade de grupo por serem associados a um eventual momento de erradicação do vírus. "É contraproducente, não é aí que temos de chegar", ressalva. "Temos de chegar ao ponto em que o vírus circula mas não causa consequências graves, ou o mínimo possível de consequências graves, como acontece com outras infeções respiratórias. Nunca ninguém falou em erradicar outros vírus respiratórios, mas aprendemos a conviver com eles", lembra o investigador. 

E a imunidade natural?

E como se comporta a nossa imunidade natural perante o SARS-CoV-2? Dar-nos-á a exposição ao vírus uma proteção maior e mais duradoura? Nesta altura, diz Bernardo Gomes, "pensar na imunidade como algo perene não é real, pelas circunstâncias da infeção, pela queda dos anticorpos e pela variação do vírus". Trata-se, afinal, de um vírus de rápida mutação que se tem multiplicado em variantes distintas e "embora se apresente agora um cenário que é aparentemente menos severo este é um cenário enviesado, já que a menor severidade surge depois de uma população ter sido exposta ao vírus e às suas variantes e, naturalmente, retém maior capacidade de responder de forma coletiva ao vírus". "Mas é preciso cavar margem para que a possibilidade de o vírus mutar ainda de forma mais marcada nos leve a outro cenário em que possamos ter de tomar medidas que ninguém quer", avisa o médico de saúde pública.

"Vamos ter reinfeções, não sabemos que variante vai estar connosco, é necessária uma preparação coletiva universal", frisa Bernardo Gomes, acrescentando que, mais do que pensar em imunidade, é importante trazer à discussão formas de prevenção de contágio, nomeadamente apostando na melhoria da qualidade do ar e ventilação, bem como a melhoria das estruturas escolares no próximo ano letivo, "mantendo o acesso aos testes rápidos gratuitos". 

Miguel Prudêncio refere ainda que "qualquer contacto com um agente infeccioso vai espoletar uma resposta imunitária e vai robustecer a nossa resposta contra esse agente". É uma consequência biológica que "as nossas defesas saiam reforçadas", indica o investigador, que no entanto sublinha: "Obviamente que as nossas defesas só saem reforçadas se sobrevivermos a esse contacto, pelo que faço uma distinção claríssima entre a generalidade da população e os grupos de risco, as pessoas mais vulneráveis", aponta o investigador. 

"Para a generalidade da população, sendo saudável e estando vacinada, o vírus tem probabilidade baixa de conduzir a doenças graves. E o outro lado da moeda, desse robustecimento da imunidade, está lá sem que haja um lado negativo. Mas para pessoas idosas ou vulneráveis esse contacto com o vírus pode ter consequências graves. Numa linguagem simplificada, não compensa o risco", resume Miguel Prudêncio. E, mesmo após um contacto com o vírus, que resulte em infeção assintomática ou doença, sabe-se que os anticorpos não são duradouros, vindo a descrescer com o tempo, nem preservam a mesma capacidade de bloquear a infeção quando se trata de uma variante diferente. 

"Aquilo que aparentemente está a acontecer é que as reinfeções não estão a dar vantagem às pessoas", admite Bernardo Gomes. "As infeções por SARS-CoV-2 têm um problema, que é uma provável desregulação dos linfócitos T, e, nesta circunstância, não se vê com bons olhos a questão da reinfeção sucessiva que garanta imunidade. Não é só por não deixar memória perene ou pela incapacidade de reter uma resposta perene para este vírus, mas também pelos danos provocados pela própria infeção. Há um universo de consequências da presença deste vírus que não estão apreendidas", reforça o médico de saúde pública.

Vacinação, vacinação, vacinação

A vacina contra a covid-19 foi feita tendo em consideração a variante ancestral, pelo que os anticorpos que resultam desta forma de imunização não são tão eficazes a bloquear a infeção atual como eram a bloquear a variante que os gerou, explica Miguel Prudêncio.  "As variantes fazem com que a imunidade baseada nos anticorpos não seja tão eficaz a impedir que a infeção aconteça e isso é válido tanto para as vacinas como para a exposição a variantes diferentes", indica o investigador. 

Ainda assim, Miguel Prudêncio lembra que, além dos anticorpos, as células T, que fazem parte da resposta imunitária do nosso organismo, são menos sensíveis a variações do vírus, motivo pela qual a vacinação nunca perde importância: "Com as novas variantes, a imunidade que nos protege da infeção é porventura menos eficaz", admite o investigador. "Mas as células T estão lá para garantir que não se desenvolve doença grave."

Bernardo Gomes destaca ainda a "dinâmica da doença" a cada vaga que chega: "Agora estamos na onda BA.5, mas há um momento a partir do qual, numa fase aguda, a possibilidade de a pessoa ser reinfetada com essa mesma variante praticamente não existe, é muito remota". Ou seja, dentro de cada onda existe um "ponto de saturação da infeção" que faz desacelerar os contágios porque se verifica "o chamado esgotamento de suscetíveis". Começa um período de inversão da tendência de subida de contágios mas apenas porque diminui o número de pessoas que ainda é possível infetar. "Na prática, não se trata de imunidade de grupo, é mais um fenómeno pandémico que mostra que a pandemia ainda não acabou e que há necessidade de, além da vacina, manter alguma noção de cuidados a longo prazo", diz o especialista de saúde pública.

"Julgo que entrámos numa espécie de crédito de risco da infeção. A mensagem, quando caiu a obrigatoriedade da máscara em espaços fechados, não foi a adequada", reflete Bernardo Gomes. "No meio desta onda que estamos a viver, com níveis de infeção muito altos, pelo contexto em que as medidas foram determinadas e como foram comunicadas, não parece haver espaço para medidas restritivas adicionais e só estaremos a desacelerar nos contágios pela infeção em massa", diz o médico, recordando que a infeção em massa não traz, do que já se sabe, a imunidade de grupo. "A comunicação e a ciência do comportamento populacional foram subestimadas", lamenta. "Promovemos uma retórica de libertação e vitória e depois queixamo-nos de que há faltas ao trabalho e falta de mão de obra."

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