Execução orçamental do primeiro trimestre é "coerente" com o objetivo anual mas "temos uma situação desafiante" pela frente

24 jun, 07:01
Fernando Medina na apresentação do OE2024 (LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO)

ENTREVISTA || O coordenador da UTAO, Rui Baleiras, admite que a execução orçamental de 2024 é mais desafiante do que em anos anteriores, mas não vê, com a informação existente, perigos de desvio face aos objetivos previstos no Orçamento do Estado para 2024. Para o futuro, face aos sucessivos anúncios de medidas de descida de impostos e de aumento de despesa, deixa um alerta: "Os políticos, às vezes, parecem envolvidos numa corrida a ver quem é que dá mais"

A UTAO já avaliou os dados de execução orçamental do primeiro trimestre e considerou que, com a informação disponível, os dados são “coerentes com o objetivo anual”. Como estamos? Qual foi a herança do atual Governo? ‘Contas certas’ ou uma situação muito pior do que a apregoada?

Com a informação que tenho, a conclusão que extraio do nosso relatório continua a ser atual. Mas temos uma situação desafiante, diria mais desafiante do que no ano anterior.

Porque já não temos tanta inflação e sem essa inflação o crescimento das receitas abranda…

E esse é um facto com que vamos ter de contar. Mas a verdade também é que os Orçamentos do Estado, pelo menos nos últimos oito ou nove anos, têm determinadas características de prudência que podem atenuar o risco de degradação significativa da meta do saldo para este ano. Têm almofadas. Tradicionalmente, quando fechamos os livros e se fazem as contas à execução, verificamos que a receita de impostos diretos, a receita de impostos indiretos, a receita de contribuições sociais, excede largamente, às vezes em pontos percentuais do PIB, a previsão de entrada destes recursos.

E se esse foi o caso, até porque é um Orçamento que vem do anterior Governo, é natural que haja uma almofada que compense a desaceleração da inflação.

Se para 2024 foi seguido o padrão, é provável que alguma perda possa ser acomodada. Um outro mecanismo de precaução é a despesa de capital [investimento público], que é sempre prevista muito acima do que é realista assumir. Mesmo com a aceleração da execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), provavelmente vamos chegar ao fim deste ano com uma taxa de execução um bom bocado abaixo, muito abaixo dos 100%. É o padrão de todos os anos.

Depois, uma boa parte do aumento na despesa acima das taxas de crescimento verificadas em anos anteriores tem a ver com situações irrepetíveis. Por exemplo, o pagamento de uma indemnização de 200 e tal milhões de euros à EDP.

E há ainda o crescimento das despesas com pessoal e pensões, que também estão a crescer muito.

Estão a crescer um bocadinho acima do que haviam crescido no período homólogo, sobretudo as despesas com pensões. Aqui é preciso ter em conta que a distribuição ao longo do ano destes encargos em 2024 é diferente da que aconteceu em 2023. No caso das pensões, recordo que houve um acréscimo significativo, penso que em média de 6% nas pensões de reforma, mas este acréscimo em 2023 não começou a ser pago no dia 1 de janeiro. Metade do acréscimo foi pago no ano anterior, de uma vez só e, portanto, essa metade não entra na execução do ano de 2023. E a segunda metade entra na execução do ano de 2024. 

Quando chegamos à segunda metade de 2024 não vamos ter o crescimento que temos agora com a despesa de pensões?

Correto.

Com os dados que existem não há razão para acreditar que haja algum problema na execução de 2024, quer em contabilidade pública, quer em contabilidade nacional?

Sim, com as medidas de política que são conhecidas, e a evolução da economia, julgo que... 

... o Banco de Portugal, há dias, apontava para um excedente em contabilidade nacional até maior do que o que está previsto no Orçamento do Estado para 2024.

Sim. Do ponto de vista macroeconómico temos um efeito de desaceleração, mas não é de diminuição da receita, é desaceleração da receita fiscal, como já referi, particularmente no IVA. Mas o PIB está a crescer mais do que havia sido previsto em outubro, quando o Orçamento foi desenhado. O emprego está bem em termos absolutos, infelizmente depende demasiado de emprego pouco qualificado, mas, enfim, esse é um problema estrutural que tardamos em lhe dar a devida atenção política, esse e muitos outros. 

De qualquer das maneiras, ouvimos também o governador do Banco de Portugal a fazer alertas sobre o futuro próximo, tendo em conta a quantidade de medidas que têm sido anunciadas, muitas delas sem quantificação do impacto orçamental. Não sabemos o que é que o plano de emergência para a saúde realmente vai custar... 

Não sabemos os polícias… 

Há uma série de medidas. Há razão para estarmos preocupados?

Há razão para estarmos muito atentos, porque naturalmente há riscos. O enquadramento político que vivemos, extremamente crispado, de governação bicéfala entre o Executivo e o Parlamento, gera muitas surpresas. E não há uma carta de navegação sobre o impacto no saldo e, infelizmente, muito pouco sobre o impacto junto dos beneficiários, a eficácia das próprias medidas.

Temos de estar atentos. É muito importante estar-se vigilante. Espero que pessoas com responsabilidade e autoridade no espaço público possam chamar à razão os contendedores políticos ou partidários que, com toda a legitimidade, cumprindo as regras do jogo democrático que a Constituição consagra, às vezes me parecem envolvidos numa corrida a ver quem é que dá mais. 

Andamos sempre do oito ao oitenta. Ou é preciso poupar, ou podemos gastar…

É um traço sociológico que nos caracteriza, não apenas a nós. Às vezes vive-se a vida de uma forma demasiado apaixonada e pouco racionalizada. Mas há razões institucionais que têm a ver como nós, portugueses, favorecemos a ação em função do curto prazo. Em função do pequeno ganho e da falta de profissionalismo no modo como as políticas são gizadas. Em março de 2022 produzimos um relatório de fundo sobre a qualidade do nosso processo orçamental, as regras do jogo que ditam o modo como as decisões com efeitos nas finanças públicas são tomadas. E há várias regras que, de facto, concorrem para isto. E uma delas, à cabeça, é o facto de se fazer da lei orçamental de um ano o alfa e o ómega de todas as políticas públicas setoriais. As que têm impacto nas contas públicas e as que não têm impacto nas contas públicas. Sedimentou-se no espírito das pessoas que tem de ser assim, que não há alternativa. Fazemos sempre da época de outubro e novembro um momento decisivo da vida política do país. Não tem de ser assim. E o próprio modo como o Parlamento aprecia a proposta de Orçamento pode ser diferente.

Agora, é preciso saber pensar fora da caixa. Olhar para o mundo e não apenas para Portugal e a área do euro e ter uma visão holística do modo como o Orçamento do Estado se compagina com as outras políticas públicas e a vida económica em geral do país.

E quais são as consequências práticas dessa falta de pensamento?

Por exemplo, há uma coisa que é estruturalmente má em Portugal, que é a falta de aconselhamento económico nas leis fiscais. Não há a mais pequena preocupação em refletir sobre os incentivos que determinada iniciativa legislativa em matéria tributária tem sobre os agentes económicos. E se há uma área da economia em que raramente aquilo que parece ser é o que efetivamente vai acontecer, é na matéria de impostos. 

Por ano passam pela Comissão de Orçamento e Finanças, que agora tem também a valência da Administração Pública, mais de uma centena de iniciativas legislativas fiscais. Uma centena! Há anos que são mais. São aprovadas 50, 60, 70 alterações à lei. É só ir à Lei do Orçamento do Estado de qualquer ano e contar o número de artigos, sem qualquer reflexão económica. Já nem falo em previsão de impactos económicos. Não deveria o legislador fiscal mais importante, que é o Parlamento, ter um conjunto de assessores capacitados para dar esse contributo? Gostava muito de ter uma divisão dentro da UTAO dedicada a estes estudos, mas ninguém ouve.

Falando em propostas fiscais, está no Parlamento uma proposta de descida de IRS que se pressupõe ter um impacto superior a 340 milhões de euros em 2024. A UTAO disse não haver condições para avaliar essa proposta e mais seis que a acompanhavam. Alguém sabe qual é o impacto daquela medida em concreto?

Eu não sei. Mesmo que houvesse microdados é uma coisa humanamente impossível. Seria trabalho para vários meses e com pessoas com formação nesta área. Estamos a brincar. Admitamos que são 300 e tal milhões de euros, admitamos que sim. Agora vamos medir a eficácia. São 300 e tal milhões para mudar que comportamento dos contribuintes? Estamos a falar do quê? Cem euros por ano, 300 euros por ano. Mas isso muda a vida de alguém? Veja a quantidade de horas que o país ficou a discutir essa questão. Tem um impacto pífio na vida das pessoas. Não há verdadeiramente uma noção da realidade. Ter uma noção da eficácia, do resultado que se pretende atingir, deveria ser um exercício intelectual obrigatório para quem concebe medidas de política. Mas as medidas de política são concebidas em função da perceção de acolhimento. E quanto mais se falar no espaço público sobre a medida, acham que maior é a perceção do destinatário final sobre a bondade da mesma. A vida já me ensinou que não é assim.

Economia

Mais Economia

Patrocinados