Proprietários dizem que arrendamento obrigatório de casas devolutas "é inconstitucional" e que os emigrantes devem estar "em pânico"

17 fev 2023, 14:05
Habitação (Manuel de Almeida/Lusa)

Governo anunciou que vai obrigar proprietários de casas devolutas a colocarem-nas no mercado de arrendamento. Medida é controversa e os donos dos imóveis rejeitam arrendamento compulsivo, considerando que pode estar em causa "o colapso total"

O primeiro-ministro já garantiu que não acredita em problemas de inconstitucionalidade, mas a medida não deixa de ser controversa: o Governo anunciou na quinta-feira que o Estado vai tomar "posse administrativa" de casas devolutas, realizando obras se necessário para garantir as condições de habitabilidade, e colocar essas mesmas casas no mercado de arrendamento, pagando ao proprietário. Esta é uma das ações previstas no pacote dedicado ao sector da habitação, que ainda não tem data para entrar em vigor. 

Luís Menezes Leitão, advogado e presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, acredita que a medida é "claramente inconstitucional". 

"Esperamos que o Tribunal Constitucional tenha a oportunidade de se pronunciar sobre o assunto e não deixaremos de fazer tudo para que isso aconteça, junto do Presidente da República, da Provedora da Justiça, e apoiando os nossos associados se aparecer alguma tentativa de arrendamento compulsivo", garantiu à CNN Portugal. 

Lançando fortes críticas à medida, Menezes Leitão recorda que situação semelhante "já existiu no governo de Vasco Gonçalves, em 1975", quando "as câmaras municipais arrendaram casas à força, colocando inquilinos a troco de rendas miseráveis" e que foi precisamente essa decisão histórica, na altura do PREC (Processo Revolucionário em Curso), que deixou "um traumatismo tão grande nos proprietários que não houve arrendamento por décadas", frisa o dirigente. 

"O Governo está a voltar a 1975 e com isto vai conseguir, naturalmente, o colapso total do arrendamento", defende. Menezes Leitão diz mesmo que as reações dos proprietários a esta medida foram de pânico. "Estou convencido de que os nossos emigrantes que têm casa em Portugal ficaram em pânico", reforça. "Já não estamos no PREC, estamos num Estado de Direito, mas isto não deixa de ser preocupante. Até porque o primeiro-ministro tem um historial de tomar medidas inconstitucionais, fez isto toda a pandemia", sublinha. 

Sobre o número de casas devolutas em Portugal, o presidente da Associação Lisbonense de Proprietários diz que os "grandes números" apresentados pelo Governo (que fala em mais de 700 mil casas vazias) não espelham a realidade e que grande parte destes imóveis desocupados "estão em sítios onde as pessoas não querem arrendar" ou fechados por litígios de heranças. "Por outro lado, grande parte das casas devolutas pertence ao próprio Estado e é o Estado que não as arrenda", realça ainda.

Segundo a legislação em vigor, considera-se devoluto "o prédio urbano ou a fração autónoma que durante um ano se encontre desocupada, sendo indícios de desocupação a inexistência de contratos em vigor com empresas de telecomunicações, de fornecimento de água, gás e eletricidade e a inexistência de faturação relativa a consumos de água, gás, eletricidade e telecomunicações".

A lei prevê, no entanto, exceções: caso o imóvel se destine a habitação "por curtos períodos em praias, campo, termas e quaisquer outros lugares de vilegiatura, para arrendamento temporário ou para uso próprio", não pode ser considerado devoluto. Uma casa também não pode ser considerada devoluta durante o período em que são realizadas obras de reabilitação, desde que certificadas pelos municípios, ou se for "a residência em território nacional de emigrante português, tal como definido no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 323/95, de 29 de Novembro, considerando-se como tal a sua residência fiscal, na falta de outra indicação". 

"No caso de as casas terem condições para serem arrendadas, muitas são casas de emigrantes", garante Menezes Leitão, que insiste que as medidas anunciadas pelo Governo "são desastrosas" e vão levar à perda de confiança no mercado de arrendamento. O regime jurídico para este arrendamento obrigatório, porém, ainda não foi criado, pelo que poderá haver diferenças no tratamento dos imóveis de emigrantes que tenham uma casa vazia - ou várias - em Portugal, excluindo-as de forma definitiva do mercado compulsivo.

O PREC imobiliário

O fiscalista Tiago Caiado Guerreiro descreve o conjunto das medidas apresentadas pelo Governo para a habitação como o "PREC imobiliário", e considera que o arrendamento de imóveis considerados devolutos não é constitucional.

"Qualquer exercício relativamente a propriedade privada terá de ter em causa bens públicos superiores a esse valor, por exemplo, direitos fundamentais. Não me parece que aqui a questão seja de direitos fundamentais. Trata-se de um problema, essencialmente, de má gestão", diz o fiscalista, lembrando que a Constituição prevê o direito à propriedade privada e à proteção da propriedade privada, ainda que seja "absolutamente legítimo o direito à habitação".

Sobre a utilização das casas devolutas, afirma mesmo que não é uma necessidade pública: "Se houvesse um terramoto como houve na Turquia, por exemplo, a situação era diferente. Isto é uma péssima gestão que tem sido feita nesta área, em que o Estado tem um património imobiliário brutal e não faz nada nem deixa ninguém fazer", critica. Pede ainda "critérios realistas" para a classificação das casas como devolutas, lembrando também os emigrantes que conseguiram comprar casa em Portugal e que podem ser obrigados, neste novo regime, a arrendar esses imóveis. "Não podem voltar para as casas deles?", questiona.

Caiado Guerreiro aponta problemas também ao licenciamento de projetos imobiliários, acrescentando que é nesta área que o Estado tem de ter uma função importante. "Pelo menos 20 ou 30% dos projetos imobiliários deveriam ser património do Estado, que nunca poderia vender", defende. "O Estado tem muitos imóveis, as câmaras têm imensos imóveis, muitos fechados, não utilizados. Em Lisboa, venderam os terrenos da antiga Feira Popular, dava para fazer centenas de habitações para gente jovem", lamenta.

O fiscalista diz ainda que o mercado de arrendamento sairia favorecido se o Governo tivesse colocado em prática um mecanismo que permitisse despejar inquilinos em poucas semanas, em caso de incumprimento. "Não há um mecanismo que, quando as pessoas deixam de pagar, permita pô-las fora em 15 dias", acrescenta, dando o exemplo do que se faz na Suíça: "Quando o inquilino entra, a casa é filmada, há uma cópia para o inquilino e outra para o proprietário. Enquanto a pessoa pagar, fica, se deixar de pagar o Estado tem um mecanismo para a obrigar a sair. Se for preciso arrombam a porta e o inquilino é que paga os prejuízos causados. Se fizessem isso em Portugal, de certeza que entravam casas no mercado de arrendamento", observa. "E os inquilinos que destroem casas deveriam ir para uma lista negra", dramatiza ainda.

Tiago Caiado Guerra considera que o pacote de medidas do Governo foi feito "em cima do joelho" e vê apenas um ponto positivo, a promessa de desburocratização. "Há muitos projetos de empresas de construção mas quase não há casas a entrarem no mercado", acrescenta. "A intenção por trás talvez seja boa, mas nunca põe o ónus no Estado para agir, fazer coisas", refere, dizendo que o Governo deveria catalogar todo o património imobiliário e colocar casas no mercado de arrendamento a preços controlados. "Vamos fazer regras de licenciamento simplificado para que isto seja executado quase de imediato", sugere também. 

Em entrevista na TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) na noite de quinta-feira, o primeiro-ministro afirmou que o objetivo do Governo passa por construir até 2026 cerca de 26 mil casas para as famílias mais vulneráveis, ao mesmo tempo que se reforça o programa de arrendamento acessível, estabelecendo valores máximos para o arrendamento nos diferentes municípios portugueses. "Não vamos roubar casas", garantiu. 

António Costa referiu ainda que "há mais de 700 mil casas desocupadas em Portugal", mas não existe um número exato de quantas destas casas serão consideradas devolutas. Os números mais aproximados têm por base os Censos de 2021: segundo os dados recolhidos, existiam em Portugal mais de 723 mil casas vagas e, destas, 348 mil estavam vazias por estarem à venda ou para arrendamento. As restantes 375 mil estavam vagas por outros motivos não especificados.

Relacionados

Economia

Mais Economia

Patrocinados