Na velha tradição portuguesa de agir ao sabor do vento ‒ gabinetes anticorrupção depois de buscas, planos de drenagem depois de cheias e renegociações de palcos depois de assinar contratos ‒, o país político decidiu ter uma opinião sobre a imigração depois do vil assalto a um nepalês em Olhão e da trágica morte de dois indianos (um deles menor de idade) num incêndio em Lisboa.
No primeiro caso, o Presidente da República deixou claro como se faz: foi, esteve, escutou e mostrou. O abraço de Marcelo Rebelo de Sousa a Nirmal Beniya, de 26 anos, simbolizou um pedido de desculpas do Portugal Democrático a um ser humano merecedor, como todos os seres humanos, da dignidade mais primordial de todas: que não lhe façam mal. A auscultação do Presidente à comunidade local, visitando escolas, ouvindo famílias e trabalhadores, pretendia dar um sinal de exemplo às restantes lideranças políticas.
A mensagem, infelizmente, não chegou ao destinatário.
Na reação ao segundo caso, o líder da oposição reservou o direito ao acolhimento para “aqueles de que precisamos”, numa perspetiva utilitarista, e para “as comunidades que melhor se possam integrar na nossa identidade”, numa perspetiva uniformizadora. O presidente da Câmara de Lisboa, do mesmo partido, criticou a atribuição de vistos a quem não apresente um contrato de trabalho.
Luís Montenegro, que há mais de um ano defende um programa nacional de imigração, nunca havia sido tão restrito do ponto de vista cultural, ainda que tenha recusado a possibilidade levantada por Carlos Moedas: impedir a entrada a imigrantes sem vínculo contratual.
Ambos, certamente com o inverno demográfico e a sustentabilidade da Segurança Social em mente, estão bem-intencionados mas fora de tom. Segundo dados da Pordata, o número de imigrantes com mais do que o ensino básico cresceu 17,4% em apenas seis anos, o que torna a prioridade dada pela direita às qualificações de quem entra algo desligado da realidade.
O PS, que não resiste a uma oportunidade para confundir o PSD com o Chega, amalgamou os dois sociais-democratas discordantes e acusou-os prontamente de nutrirem “profundo desprezo” pelos imigrantes. Zero pessoas terão ficado surpreendidas.
As duas barricadas têm a sua quota parte de responsabilidade na degradação do debate sobre a imigração em Portugal. A aposta numa economia dependente do turismo de massas, que vale hoje cerca de 16% do PIB, é comum a governos de ambos os partidos e a demora em criar soluções para os problemas daí oriundos também. Nenhum país no planeta, com uma população envelhecida e sem mão-de-obra suficiente para um setor tão central da sua economia, estaria isento das exigências dessa aposta.
A liberalização do nosso regime de imigração, os tais seis meses de visto para procurar emprego, ao contrário do percecionado no nosso espaço público, não encontrou na esquerda ou nos ativistas os seus maiores promotores. Ironicamente, foi nas empresas, no capital, na indústria hoteleira que a ideia encontrou os seus embaixadores. Nem os empresários nem o governo, afinal, se podiam dar ao luxo de um verão frouxo no 2022 do desconfinamento.
Milhares de imigrantes descobriram oportunidades e ajudaram o país a levantar-se da pandemia ‒ e ainda bem que foi assim. Mas centenas caíram em redes de tráfico humano, trabalhos forçados e condições de vida miseráveis ‒ e não está nada bem que seja assim.
A demora no processo de reestruturação do SEF, com o protocolo entre polícias e forças de segurança a ser assinado no final do ano passado e a agência de acolhimento até hoje sem sair do papel, é um problema que toda a retórica anti-Chega do mundo não resolverá ‒ e era bom que o PS percebesse isso a tempo. A reestruturação do SEF foi anunciada em 2021.
Hoje, já há mais patrulhas fronteiriças em Portugal nas suas três vertentes (terrestre, marítima e área) do que alguma vez houve, mas não existe um processo de integração, fiscalização e acompanhamento de quem fica devidamente financiado e institucionalizado. As intermináveis filas nos balcões do SEF, que não aceitam marcação há mais de um ano, tornaram-se viveiros de advogados abutres, que vendem serviços a preços exorbitantes a gente pobre, que nem inglês fala, debaixo do nariz do Estado português.
Nos grandes centros urbanos, onde há mais imigrantes, são os mais ricos (vistos gold, etc.) que têm realmente acesso ao SEF porque são os únicos com capacidade para pagar a deslocação aos balcões dispersos pelo território (Guarda, Viseu, Algarve), o que provoca a elitização de um serviço que lida, por natureza, com todas as realidades sociais do globo.
Portugal tem um ministro da Administração Interna capaz, humano e empenhado e deputados na Assembleia da República atentos e conscientes de que não há soluções perfeitas para problemas que não desaparecem de um dia para o outro, como a demografia, o racismo ou as carências do nosso mercado de trabalho. Na academia, o país conta com um dos maiores especialistas europeus em direito das migrações, que atualmente preside a uma das fundações mais destacadas da sociedade civil: a FFMS.
Somos e podemos ser capazes de um debate digno, informado e construtivo sobre a imigração.
Esta semana, não aconteceu.