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Investigador universitário doutorado. Estuda a crise da democracia liberal, com foco nas guerras culturais, polarização e impactos nos direitos fundamentais

A vez da Burka – precisávamos mesmo desta lei?

30 jun, 12:07

O Direito segue a reboque da realidade. Esta é uma máxima conhecida na ciência jurídica. Quer isto dizer que, mal ou bem, as leis respondem a desafios sociais emergentes. De algum modo, também a política surge como um processo de resposta à realidade, através de mecanismos de negociação entre forças distintas para encontrar uma plataforma de convivência, a que se deu o nome de «chão comum».

Contudo, o aparecimento de políticos e movimentos populistas e demagógicos altera as regras do jogo, em que os «factos políticos» deixam de ser acontecimentos que, pela sua natureza, se tornam incontornáveis, política e socialmente relevantes, para passarem a ser fabricações políticas.

É neste terreno que estamos com o projeto de lei do Chega, que pretende proibir a utilização, em espaços públicos, de vestuário que cubra o rosto e esconda a identidade, mesmo que por razões religiosas.

Embora envolta em princípios essenciais de convivência social, como a garantia da segurança pública – isto é, a salvaguarda de que ninguém, sob a cobertura da permissão de velar o rosto, possa escapar ileso após cometer um crime –, a verdade é que a medida pode ser vista como uma fabricação de um facto político, destinada a alimentar a guerra cultural contra a “islamização” do Ocidente. Não é por acaso que, nas redes sociais, membros do partido têm apresentado a medida não como um combate à ocultação do rosto de forma genérica, mas especificamente como um combate à burka.

Ora, onde é que a situação se torna um facto político fabricado? Quando se toma consciência de que, em Portugal, o uso da burka não é uma prática conhecida. De forma benevolente, é possível dizer que o partido pretende antecipar futuros problemas sociais nesta matéria, mas, numa base de razoabilidade e tendo em conta o seu modus operandi, torna-se evidente que, depois da AD (Aliança Democrática) ter assumido o tema da imigração e da Lei da Nacionalidade – com todas as dúvidas constitucionais e críticas de cedência à agenda nativista –, o Chega teve de ir mais longe, fabricando um problema onde ele não existe e agudizando um sentimento anti-islâmico, profundamente importado de outras geografias europeias.
É prova disso a forma como o Chega – cuja base jovem é alimentada por um sentimento de regresso ao masculino dominante do “chefe de família” – faz uso da defesa dos direitos das mulheres contra a ameaça islâmica, ao inscrever na proposta legislativa que quem obrigue alguém a esconder o rosto “por ameaça, violência, constrangimento, abuso de autoridade ou abuso de poder, por causa do seu sexo” deve ser punido nos termos do artigo 154.º do Código Penal, relativo à ofensa à integridade física qualificada.

Os termos do combate cultural adensam-se com a defesa de que o Estado português é laico, pelo que não existem motivos para permitir “a exibição de símbolos religiosos em instituições públicas, como escolas não religiosas, hospitais, transportes públicos e demais locais regidos ou pertencentes ao Estado”.

É, pois, evidente a forma como o Chega navega as águas populistas da «grande substituição», adotando uma narrativa laicista – contrária à ideia de um Estado e uma sociedade de pendor moral cristão, genética destes partidos de direita radical e bem patente no governo de Viktor Orbán – e pró-direitos das mulheres, traduzindo a estratégia da direita radical de adoção temporária de um «homonacionalismo» – tratado por Jean-Yves Camus e Nicolas Lebourg (2017) – e de um «femonacionalismo» – descrito por Sara R. Farris em In the Name of Women’s Rights: The Rise of Femonationalism (2017) –, para opor os valores civilizacionais europeus à ameaça da islamização do Ocidente.

Tudo isto confirma a teoria de que o populismo, mais do que uma ideologia, é uma forma de discurso e representação (como defende Ernesto Laclau), perfeitamente maleável em função das circunstâncias, tendo sempre por base uma batalha permanente entre “nós” e “eles”, em favor de uma ideia de «nação» e tendo por objetivo a conquista do poder.

Em última análise, esta proposta legislativa não é sobre segurança, igualdade ou liberdade religiosa. É sobre marcar terreno numa guerra cultural importada e sobre alimentar, com roupa alheia, o fogo identitário de uma direita radical que se reinventa a cada nova oportunidade.
 

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