As alterações à lei da nacionalidade assumiram uma dimensão do que se chama, em Ciência Política, de “facto político”: um assunto politicamente incontornável. O nó górdio tem sido de natureza jurídica, porém o assunto é, na sua essência, político. Longe de pretender esgotar o tema, proponho sistematizar a discussão e abrir caminho a uma reflexão pluralista.
As mudanças legais em cima da mesa são significativas, desde o aumento do período mínimo de residência legal para naturalização até a mudanças no reagrupamento familiar, que para o cônjuge e filhos maiores só poderá ser solicitado após um período mínimo de dois anos de residência legal em Portugal por parte do imigrante. Esta questão exige uma leitura fina. Embora possa redundar em injustiças, e possa desconsiderar que a integração migratória é facilitada quando existe uma almofada emocional proporcionada pela família, a ideia subjacente é a de garantir uma estabilidade prévia, ou seja, a ideia de que o imigrante precisa estabilizar a sua situação para posteriormente poder “chamar” a família, considerando que uma parte significativa da nova imigração portuguesa é extremamente precária, com situações sub-humanas de habitação. Não obstante, a medida não anda em águas cristalinas.
Adicionalmente, as exceções previstas para imigrantes altamente qualificados suscitam entorses constitucionais, nomeadamente nos princípios da igualdade e da proporcionalidade, além de representarem uma potencial conflitualidade entre mão-de-obra qualificada nacional e estrangeira, e prejudicarem onde ela é mais necessária, isto é, nas profissões técnicas e agrícolas.
Mas tirando essa matéria de equação, parece evidente que as novas medidas confirmam um aspeto essencial do direito – a sua natureza dinâmica, que resulta da sua necessidade de se adaptar às contingências.
A imigração tornou-se o tema político e social mais relevante nas sociedades ocidentais, alterando não apenas a demografia, mas a própria natureza do voto, tendo aberto caminho para movimentos, partidos e líderes iliberais nativistas. Com efeito, o assunto tornou-se relevante não porque as sociedades ocidentais são menos propensas a acolher, mas porque enfrentam fluxos migratórios não apenas numericamente significativos, mas excecionalmente culturalmente diversos. Nesse sentido, o maior desafio suscitado pela imigração é o da integração da diferença nas sociedades contemporâneas, que embora multiculturais precisam de uma gramática social de identidade e identificação mínimas.
Quer isto dizer que a integração é um processo de construção de pertença na diferença, um processo mútuo de respeito e diálogo, sem medo dos encontros e “apropriações” culturais, conformado pelos limites da lei e dos direitos humanos incontestáveis, expondo que o relativismo cultural tem limites.
Portugal viu crescer exponencialmente a sua imigração, atingindo um total próximo de um milhão de pessoas, um aumento sem paralelo face às duas décadas anteriores. Hoje, um terço dos nascidos em Portugal e em alguns lugares metade, são de origem não-portuguesa, uma grande fatia dos pequenos negócios são de populações da Ásia, entre chineses e indostânicos, e nas escolas nunca como hoje os professores tiveram de lidar com tão grande variedade de nacionalidades, com crianças que não falam nem português, nem inglês.
Este desafio de integração torna-se particularmente sensível quando envolve universos culturais cuja matriz normativa difere substancialmente da europeia. É o caso de parte das comunidades muçulmanas, onde a convivência entre fé e valores democráticos ocidentais exige um processo de acomodação ativa. Entramos aqui no que chamaria de “doutrina Sheik Munir” (líder da Mesquita Central de Lisboa) – a diferenciação entre um Islão integrado às sociedades ocidentais e um Islão de latitudes diversas, com dificuldades de integração por diferenciação cultural, e que precisa de acelerar a sua acomodação cultural.
Este reconhecimento convoca a cautelas políticas, que acabam por ter tradução em mudanças legais. O direito é uma ciência viva que pretende salvaguardar a convivência social. Portugal atravessa um inverno demográfico, com o envelhecimento da população e a emigração excessiva de jovens e menos jovens, qualificados e menos qualificados, num movimento de procura de melhores condições de vida, exatamente igual ao que traz os imigrantes para cá.
É preciso ter presente que Portugal não é viável sem imigração, bem como que a narrativa de que os portugueses foram para a Europa e se integraram rapidamente é uma memória inventada. No entanto, em última análise, cabe a qualquer governo garantir a salvaguarda do “chão comum” que configura um sentido de comunidade. O difícil é fazê-lo sem utopias ou pânicos morais.