Francisco, o Papa que não dispensa abraços e gosta de gelados e de vinho do Porto

5 set 2022, 07:00
Papa na viagem de regresso do Canadá

Não vê televisão, não navega na Internet, gosta de ler o jornal e não dispensa um bom livro. Os hábitos do dia-a-dia de um homem simples, alguns confessados pelo próprio

Eram seis da manhã, quando Frei Fernando Ventura, que estava alojado na casa de Santa Marta, uma residência em Roma, desceu para ir à máquina da receção beber um café e se deparou com o Papa Francisco a tentar consolar uma das funcionárias. “Estava de bruços no balcão da rececção, a segurar as mãos da rececionista, que chorava compulsivamente. Nunca soube qual era o motivo do desespero da senhora, mas o que é certo é que ela não estava bem e ele estava ali a confortá-la. E assim esteve demoradamente", conta o franciscano português, recordando que aquela foi a primeira vez que viu o Papa Francisco. "Tinha ele sido eleito poucos meses antes e eu tinha ido trabalhar como tradutor para a Santa Sé”.

Para Frei Fernando Ventura, este episódio é mais uma prova do humanismo que o atual Papa defende e pratica. "Ele faz questão, quando se cruza com alguém no corredor, de tomar a iniciativa de ir cumprimentar. Como somos muitos a trabalhar na casa de Santa Marta, ele não consegue recordar-se se já cumprimentou este ou aquele. Então, cumprimenta-nos sempre que nos vê, nem que seja 20 vezes ao dia”, relata, acrescentando: “Nós que lá trabalhamos e conhecemos esse hábito, sabendo que ele anda pelos corredores, já procuramos nem sair dos gabinetes para ele não ter de nos cumprimentar de novo". 

"Não posso viver sem pessoas"

Desde o início que o Sumo Pontífice deu sinais de como seria durante o seu pontificado. Estava alojado num hotel em Roma, onde aliás era costume ficar sempre que necessitava de se deslocar ao Vaticano enquanto bispo e cardeal, quando aconteceu o conclave que o elegeu Papa, em 2013. Depois de sair o fumo branco e ser conhecido o seu nome como o sucessor de Bento XVI, Jorge Mário Bergoglio regressou, pelos próprios meios, ao hotel, arrumou a mala e pagou a conta. 

Quem o conhecia antes de 2013 já adivinhava a postura que o Papa assumiria. O jornalista Joaquim Franco, especialista em questões religiosas, lembra uma conversa que teve com um padre argentino, na praça de São Pedro, quando foi conhecido o nome de Bergoglio para Papa: "Ele conhecia o padre Bergolio e o bispo Bergolo do trabalho que fazia nos bairros pobres de Buenos Aires. Disse-me: 'Eu não estou a vê-lo a viver aqui no meio destes palácios. Ele em Buenos Aires vivia num apartamento'".

E assim foi. Depois de eleito, abdicou de viver no Palácio Pontifício e optou pela Casa de Santa Marta, onde se alojam hóspedes do Vaticano, como os cardeais que se deslocam para os encontros com o Papa.

O mesmo padre argentino disse ainda a Joaquim Franco: "Vocês vão habituar-se a ouvir o tango nos discursos dele". "O tango é uma dança de deslize e depois tem os momentos de maior calor. Os discursos do papa são como o tango: tem momentos de calma e momentos de muito calor. E normalmente esses momentos de calor é quando ele tira os olhos do papel, quando fala de improviso", analisa o jornalista. 

Bergoglio tornou-se Francisco, mas não abdicou de velhos hábitos. E também não se afastou das pessoas. Fisicamente falando. Gosta do tato, dos abraços, das conversas simples.

Não posso viver sem pessoas. Não sirvo para monge. Por isso fiquei a viver aqui, nesta casa [residência de Santa Marta]. É uma casa de hóspedes, com 210 quartos, onde vivem 40 pessoas que trabalham na Santa Sé. Os outros são hóspedes, bispos, padres e laicos que passam e aqui se alojam. Isto faz-me muito bem. Vir aqui, comer no refeitório, onde está toda a gente, ter a missa onde quatro dias por semana vem gente de fora, das paróquias… Gosto muito disso. Tornei-me padre para estar com pessoas”, confessou o Papa Francisco, numa entrevista ao jornal argentino “La Voz del Pueblo”, publicada em maio de 2015. 

Conta quem já teve se alojou diversas vezes na Casa de Santa Marta que o Papa Francisco não só almoça e janta no refeitório da casa de hóspedes da Santa Sé, como gosta de ir para a fila para se servir. “Agora não sei se assim será, porque está muito debilitado fisicamente, mas ficava muito ofendido quando insistiam para que passasse à frente na fila”, diz frei Fernando Ventura, em conversa com a CNN Portugal.

Francisco abdicou do Palácio Apostólico e optou por viver na casa de Santa Marta. (Eric VANDEVILLE/Gamma-Rapho via Getty Images)

Insiste por ser autossuficiente: é ele quem escreve alguns discursos mais simples e muitas das cartas que envia. É ele também quem faz os próprios telefonemas. Não pede a ninguém que estabeleça a ligação quando quer falar com alguém. É pública também a história de quando necessitou de arranjar os óculos e se deslocou, pelo próprio pé, a uma ótica em Roma, para surpresa de funcionários e clientes da loja.

Sem TV e Internet, mas com livros e um jornal

Pelo menos antes de os joelhos lhe pregarem algumas partidas, costumava sair e passear-se discretamente pelas ruas de Roma, sem temer pela sua segurança. “Na verdade, se pensarmos bem, é até a forma mais segura de sair. Há lá coisa mais discreta do que um padre vestido de preto numa rua de Roma? Dá muito menos nas vistas do que o Papa, vestido de branco, num carro ladeado por um batalhão”, brinca frei Fernando Ventura.

Não vê televisão. "Foi uma promessa que fiz a Nossa Senhora do Carmo, na noite de 15 de julho de 1990. Dei-me conta que não é para mim", disse ao “La Voz del Pueblo”.

Mas garante que não dispensa a leitura de um jornal. “Jornal leio somente um, o La Repubblica, que é um diário para setores médios. Leio-o pela manhã e não demoro mais do que 10 minutos”, confessou na entrevista de 2015

Ainda na mesma entrevista, quando lhe perguntaram se costumava navegar na Internet, respondeu prontamente: “Nada”.

Porém, gosta de um bom livro e é apreciador de José Luís Borges, Mário Benedetti e do poeta alemão Friedrich Hölderlin.

Também gosta de música clássica. Como Arcebispo de Buenos Aires, comprava discos sempre vinha a Roma, numa loja perto do Panteão. Ainda há pouco tempo, a 11 de janeiro de 2022, visitou essa loja para cumprimentar os proprietários, seus amigos. 

Tem como hábito legitimar o pensamento e a opinião, com duas ferramentas: a memória de momentos importantes que viveu (pessoas, histórias, circunstâncias...) e o evangelho. Relaciona sempre o pensamento com exemplos da vida real e com o evangelho.

Deitar cedo e cedo erguer, mas sem dispensar a sesta

Já confessou, em diversas ocasiões, sofrer de alguma intolerância à dor física. Os vaticanistas adivinham que essa pode ser uma das razões que pode conduzir a uma eventual resignação. Contudo, ao longo dos anos desenvolveu alguma resiliência a esta fragilidade. Sofre há anos de dor ciática crónica e, mais recentemente, tem sido acometido de fortes dores nos joelhos.

Francisco levanta-se muito cedo: entre as 04:30 e as 05:00. Começa o dia com oração, meditação e reflexão. Prepara a missa diária das 07:00, onde costuma fazer uma homilia de improviso. As suas homilias são, aliás, conhecidas pela simplicidade e espontaneidade.

Capela da Casa de Santa Marta, onde o Papa reza missa diariamente. (Arturo Mari-Pool/Getty Images)

A prática de o Papa celebrar uma missa pública todos os dias é uma inovação do pontificado de Francisco. No fim da celebração, senta-se sozinho na capela da casa de Santa Marta e reza durante 10 ou 15 minutos diante do sacrário. Depois disso, faz questão de cumprimentar, um a um os participantes da missa, na porta da capela, que tem capacidade para cerca de 80 pessoas.

"Fica possesso quando lhe tentam beijar o anel. Se são pessoas pouco habituadas a lidar com ele, tira a mão delicadamente, se é alguém que já tem obrigação e ser conhecedor, retira a mão com mais veemência, como quem diz 'já tinhas obrigação de saber'. Não gosta de salamaleques. Não se faz rogado a um beijo ou um abraço. É desta normalidade ou desta informalidade que ele é feito", conta Fernando Ventura. 

Joaquim Franco, autor, com o também jornalista António Marujo, do livro "Papa Francisco - A Revolução Imparável", já se cruzou com o Papa Francisco diversas vezes. Testemunhou sempre este Papa de afetos: "Quando ele fala dos afetos e da ternura, não é só palavras. Ele cumprimenta toda a gente".

E assim foi também nos bastidores da entrevista exclusiva que deu à TVI e à CNN Portugal. "Quando chegou, cumprimentou toda a gente na sala e, quando se foi sentar na cadeira em que pedimos para se acomodar, reparou que não tinha cumprimentado o repórter de imagem João Franco, que estava atrás da camara a filmar a sua chegada. Ele disse-lhe 'olá, olá!' e ficou à espera que o João o fosse cumprimentar", lembra.

Abraça ou cumprimenta toda a gente com quem se cruza. Por vezes, "está uma imensidão de tempo a conversar com uma pessoa, embaraçando os protocolos e atrapalhando a agenda", que ele próprio gosta de controlar.

De acordo com o portal brasileiro UOL, que cita fontes da Santa Sé, Francisco toma o pequeno almoço depois das 08:00 e, até às 09:30, permanece sozinho no seu escritório particular, onde lê então o jornal e outros documentos e escreve pequenos discursos.

A manhã é ocupada com audiências oficiais, em que recebe bispos, chefes de Estado e de Governo e outros altos dignatários ou representantes de instituições. As tardes são dedicadas a telefonemas e audiências pessoais, em que, por vezes, recebe amigos e familiares.  

Pelo meio, não dispensa uma sesta: "Preciso de uma siesta todos os dias. Devo dormir de 40 minutos a uma hora. Tiro os sapatos e estiro-me na cama”. Quando não consegue fazer esta pausa diária, confessa que se sente cansado o resto do dia.

Janta cedo, pelas 20:00, e às 10:30, no máximo, já está na cama. Antes de adormecer, confessa que gosta de ler um pouco. "Durmo seis horas por noite, como uma pedra", contou, numa entrevista ao canal de televisão italiano TV2000.

Na já referida entrevista ao “La Voz del Pueblo” de 2015, conta também: "Tenho um sono tão profundo que deito na cama e já adormeço. Normalmente, às 21:00, estou na cama e, às 04:00, desperto, é um relógio biológico.”

Futebol, gelado e vinho do Porto

Amante de futebol, é adepto ferrenho do clube argentino San Lorenzo. Como não vê televisão e não frequenta a Internet, revela que acompanha a vida do clube através de um guarda suíço da Santa Sé.

Nunca viu jogar Messi, logo o craque que agora veste a camisola do Paris Saint Germain que o visitou já no Vaticano. “O Messi veio cá duas vezes, mas nunca o vi jogar”, revelava em 2015.

Visita de Messi ao Vaticano, em 2013. (Claudio Villa/Getty Images)

Gosta de gelado e conta-se que é frequente pedir a um funcionário do Vaticano que vá a uma gelataria artesanal às portas da Santa Sé comprar-lhe um sorvete.

No verão do ano passado, decidiu dividir esse pequeno vício com os reclusos das prisões de Roma. Enviou 15 mil gelados às duas prisões da cidade — Regina Coeli, no centro da cidade, e Rebibbia, nos arredores. Foi a forma que encontrou de amezinar um dos verões mais quentes registados em Itália, com as temperaturas a chegarem a um máximo de 48,8ºC.

Os mais necessitados, os mais fragilizados os marginalizados da sociedade, como os reclusos, os sem abrigo ou os idosos, são alvo de uma atenção especial do Papa Francisco. Joaquim Franco ainda se comove com um gesto a que assistiu numa das audiências com o Papa: "Cumprimentou um invisual creio que argentino, que esteve cerca de um minuto a falar-lhe ao ouvido. Segurou-lhe na mão que o homem tinha em cima da baia que limitava o corredor por onde passava o Papa. Depois, falou comigo e falou com outro português, sempre com a mão dele a segurar a do homem, e só quando não tinha alternativa é que voltou atrás, deu-lhe mais uma palavrinha e largou-lhe a mão. Isto é de uma sensibilidade incrível, porque ele percebeu que era o único sentido que o cego tinha para se certificar que era o Papa que estava com ele de facto".

Passámos de um papa que cumprimenta à distància de um braço para um papa à distância de um abraço", resume Joaquim Franco.

Aquando da gravação da entrevista à TVI e à CNN Portugal, a 11 de agosto, Joaquim Franco ofereceu ao Papa o último livro que escreveu, em parceria com Frei Fernando Ventura, "Todos Nós Somos Sendo - O Primado da Liberdade e a Cautela da Consciência". Seis dias depois recebeu uma carta pessoal do Santo Padre, onde incentiva o jornalista a continuar com as suas reflexões. É algo que o Papa tem por hábito fazer: personalizar o agradecimento de presentes mais pessoais.

Joaquim Franco oferece livro que escreveu com Frei Fernando Ventura ao Papa Francisco. (Arquivo Pessoal Joaquim Franco)

É também apreciador de um cálice de vinho do Porto. A CNN Portugal sabe que há um amigo português que costuma enviar-lhe uma garrafa, “de vez em quando”.

Entre os hábitos que manteve depois de se tornar Papa, Francisco não dispensa os seus sapatos ortopédicos pretos. A cruz peitoral que usa habitualmente é em prata, o metal precioso que o identifica com a Argentina.

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