opinião
Comentador

Quando a Igreja esquece Deus

14 fev 2023, 09:26

Se a Igreja Católica portuguesa houvesse convidado uma comissão independente a estudar os abusos sexuais perpetrados debaixo do seu teto, colaborado totalmente com as suas averiguações, instado as suas comunidades a reportar e denunciar quaisquer suspeitas, participado integralmente nos seus trabalhos, o dia de ontem teria sido terrível ‒ teria sempre sido terrível ‒, mas teria também sido o princípio de algo menos mau, eventualmente até de uma esperança, de um futuro em que um pai e uma mãe nunca mais hesitariam em deixar o seu filho numa paróquia, num grupo de jovens, numa catequese, num infantário. 

Infelizmente, não foi isso que sucedeu. 

Além dos relatos absolutamente aterradores e dos números que nos deixam sem palavras (a média de idade das vítimas nos 11 anos, o silêncio de 48% delas, a estimativa de 4815 casos, de apenas 512 terem chegado à comissão e 25 à Justiça), há um dado do dia de ontem que impede a contrição de ser consumada, a redenção de ser real e a Igreja de se salvar do que fez: 

Ela própria. 

Escutando os membros da comissão independente e lendo o seu relatório final, a Igreja continua em negação sobre a realidade dos abusos sexuais cometidos no seu universo (“aparentemente negada pela maioria”) e mantém em posições-chave personalidades que se recusam a lidar com essa realidade (“clara distância defensiva”). 

Tal ficou evidente na apresentação das conclusões, com dois dos 21 bispos a recusarem interagir com a comissão, somente um setor da Igreja ‒ os jesuítas ‒ a manifestar a iniciativa de colaborar e os 19 bispos entrevistados a afirmarem nunca ter lidado com abusos sexuais ao longo do seu percurso como padres.

No documento tornado público ontem, a comissão denuncia “práticas de menorização da importância” dos abusos na Igreja, que terão levado ao seu perpetuamento e ao “silenciamento das vítimas”. “Ocultação” é a palavra que sobressai, quase como se, caso pudesse, o nosso clero preferisse rasgar os livros de História recheados de erros da Santa Sé na vez de assumi-los, debatê-los e não voltar a repeti-los. 

A prioridade dada à “defesa da reputação institucional da Igreja” mantém-se, tendo um dos bispos entrevistados pela comissão independente recomendado que esta agisse “em silêncio” ‒ pormenor verdadeiramente chocante, na medida em que foi precisamente “o silêncio” que conduziu à perpetuação dos abusos dentro da Igreja. 

Se a desvalorização dos casos oferece obviamente um sentimento de impunidade aos abusadores, é inacreditável que ainda haja bispos em Portugal que insistem neste tipo de complacência perante um mal tão explícito, com factos reportados, confirmados e frequentemente reincididos. 

É sobretudo por isso que a Igreja, que instalou a comissão independente e lhe abriu os seus arquivos, sai profundamente fragilizada do dia de ontem. 

Porque pede desculpa, hesitando em reconhecer culpas. Porque pediu que se olhasse, mas não quis que se visse. Porque diz que “acontece em todo o lado”, quando é o primeiro sítio onde não podia acontecer. Porque, como organização comunitarista, devia proteger as comunidades acima dos seus. Porque, carregando uma mensagem moral, não se pode dar ao luxo da ambiguidade. 

Porque Ele representou o oposto de tudo o que aqueles crimes são. 

E porque uma Igreja que esquece Deus não é igreja nenhuma. 


 

Colunistas

Mais Colunistas

Mais Lidas

Patrocinados